Por Conceição Lemes
Em 25 de maio, a Folha de S. Paulo publicou uma entrevista com Branko Sevarlic, CEO da Philip Morris Brasil.
Ela saiu com este título: Regular dispositivos para fumar é uma questão de saúde pública, diz CEO da Philip Morris Brasil
Seria cômica, não fosse trágica a súbita ”preocupação” com a saúde da mesma indústria que fabrica até hoje — e em diversos sabores, inclusive no Brasil — o famoso cigarro da marca Marlboro.
O pneumologista Ubiratan de Paula Santos questionou a Folha pelo conteúdo da entrevista.
Resultado: o jornal cedeu-lhe espaço para escrever um artigo sobre o tema na seção Tendências&Debates.
Ubiratan de Paula Santos é o responsável pelos Ambulatórios de Doenças Respiratórias Ambientais, Ocupacionais e de Cessação de Tabagismo, do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP.
O artigo-resposta foi publicado nessa terça-feira, 3 de junho, com o título Cigarro eletrônico é apenas uma estratégia de marketing nociva à saúde.
Devido à história profissional e a preocupação social do doutor Ubiratan perguntei-lhe, então, se a entrevista do CEO da Philip Morris do Brasil causou-lhe espanto.
”Confesso que não, pois parafraseando o Barão de Itararé, ‘De onde menos se espera é que não sai nada mesmo’, de útil”, diz ao Viomundo.
“A entrevista propaganda tem como objetivo incentivar o consumo de produtos da empresa e como efeito contribuir negativamente com a saúde da população, como expresso no recente alerta dado pelas autoridades de saúde”, adverte.
A propósito, na entrevista à Folha, o CEO Philip Morris Brasil ainda teve o desplante de fazer esta recomendação:
“esses produtos [cigarros eletrônicos]] precisam ser adotados por fumantes adultos, e essas pessoas precisam migrar para eles a fim de criar a equação de redução de danos do tabaco. Então, agora temos a ciência, temos o produto, temos a vontade”.
”O entrevistado, se propõe, como representante da indústria que é responsável globalmente por 8,7 milhões de óbitos por ano, mais de 150 mil apenas no Brasil, a ser um influenciador a ditar orientações sobre o que é melhor para a saúde das pessoas”, comentou, indignado, o doutor Ubiratan de Paula Santos.
E, ainda, colocou Branko Sevarlic no devido lugar:
”A história da empresa e o cargo que ocupa não o autorizam que faça essa recomendação, pois trata-se de um tema que interessa à saúde das pessoas, contraditório com toda a trajetória da indústria do tabaco, responsável pela ocorrência de doenças e óbitos em massa, iniciada há cerca de 140 anos”
Segue a íntegra do artigo-resposta.
Cigarro eletrônico é apenas uma estratégia de marketing nociva à saúde
Por Ubiratan de Paula Santos, na Folha de S. Paulo
Sem qualquer comprovação científica, os dispositivos eletrônicos para fumar são apresentados aos público pela indústria do tabaco como alternativas menos nocivas que o cigarro convencional —”não queima, não é tabaco, deve ser melhor”.
Essa estratégica não é nova. Foi assim no passado com os cigarros com filtro e os de baixo teor de alcatrão e nicotina que, diferentemente da propaganda, mostraram-se incapazes de reduzir a morbidade e a mortalidade de fumantes.
É assim agora com os vapes, anunciados como sendo 95% menos nocivos para o organismo, mas que não reduzem em nada os danos para a saúde: aumentam o risco de infarto do miocárdio, infecções respiratórias e doenças pulmonares como bronquite e enfisema até mesmo em jovens fumantes.
As afirmações do CEO da Philip Morris Brasil, Branko Sevarlic, em entrevista publicada nesta Folha (25/5), recomendando e-cig como substitutivo dos cigarros convencionais, só podem ser entendidas, portanto, como estratégia de marketing que visa a redução de danos —não da saúde das pessoas, mas das finanças da indústria do tabaco, impactadas por mais de três décadas de quedas consecutivas de fumantes no planeta: 37,7% entre as mulheres e 27,5% entre os homens.
Essa estratégia de marketing perversa para a saúde pública parece, infelizmente, conquistar resultados.
Segundo o Ministério da Saúde, pela primeira vez em mais de 30 anos de uma política antitabagista exitosa, o Brasil registrou no ano passado crescimento de 25% no número de fumantes nas capitais brasileiras em relação a 2021.
Nesse mesmo período também houve avanço do número de usuários de cigarro eletrônico, com especial ênfase entre as mulheres, grupo que apresentou 100% de crescimento de prevalência de tabagismo nessa modalidade.
Os dados colocam em xeque a falácia da indústria do tabaco, que mais se assemelha a uma fake news, de que o e-cig é eficaz como substitutivo do cigarro convencional, numa estratégia de redução de danos para a saúde do usuário.
Para citar apenas dois entre tantos estudos, pesquisa com jovens de 16 a 19 anos no Canadá, EUA e Reino Unido mostrou que o vape não apenas não substitui o cigarro convencional como também serve de porta de entrada para o vício a novos usuários, muitos deles que nunca haviam fumado antes.
Os e-cigarretes são também mais viciantes, por apresentarem níveis de nicotina superiores aos cigarros convencionais. Ao serem privados do produto, seus fumantes apresentam sintomas mais intensos de abstinência. Esses dispositivos podem ser tão letais quanto o fumo convencional.
Pesquisa recente, que envolveu meta-análise de 107 estudos, provou impacto importante no aumento de riscos cardiovasculares, de acidente vascular cerebral e de distúrbios metabólicos também entre os jovens.
O Brasil dispõe de tratamentos eficazes e seguros para combater o vício com medicamentos aprovados.
O sucesso na cessação do tabagismo, portanto, não requer a introdução de vapes no mercado, como quer fazer crer a cobiça da indústria do tabaco, que coloca em risco a saúde das pessoas e, especialmente, de nossos jovens.
O Ministério da Saúde e as secretárias estaduais e municipais de todo o país, em conjunto com os profissionais de saúde, devem redobrar sua atenção neste momento dramático em que a indústria do tabaco volta a potência financeira de seu marketing para abalar os alicerces da nossa política de saúde pública contra as doenças decorrentes do vício no cigarro, seja na forma tradicional, seja no modelo eletrônico.
Os órgãos públicos competentes, portanto, devem reforçar suas ações para impedir a entrada por contrabando e o comércio ilegal de cigarros eletrônicos, impedindo sua livre comercialização em lojas de varejo, bancas de jornal, padarias, bares e na internet —como tem ocorrido amplamente. Campanhas devem ser reforçadas e ampliadas, especialmente para o público jovem.
Os 30 anos de êxito do programa brasileiro de combate ao fumo nos ensina que não há justificativa, do ponto de vista da ciência, para a aprovação de tal produto no país. Pelo contrário: seu banimento deve ser abraçado pelos órgãos públicos das três esferas, defendido pela ciência médica e reforçado pelo debate na opinião pública.