Decorridos dois anos e quatro meses do governo Lula, a correção do amplo estrago produzido por Jair Bolsonaro nas políticas educacionais voltadas às minorias ainda é uma obra em progresso. Uma situação ainda presa no limbo é a da TV Escola e TV do Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), iniciativas bem-sucedidas e premiadas que deixaram de existir graças ao obscurantismo bolsonarista. Ao lado da Cinemateca Brasileira, as duas tevês formam o trio de projetos mantidos sob o guarda-chuva da Associação de Comunicação Educativa Roquete Pinto após a criação da Empresa Brasileira de Comunicação, em 2007. Os três tiveram os contratos encerrados pelo governo em 2020, por causa de uma crise iniciada no ano anterior com o então ministro da Educação, Abraham Weintraub. Pivô do imbróglio, a TV Escola, segundo relatos da época, entrou na mira do ministro pelas resistências internas à exibição da série Brasil: A Última Cruzada, escrita, produzida e apresentada pelo guru da extrema-direita Olavo de Carvalho. Apesar de a série ter sido exibida, a sensação de que lidava com um potencial ninho de comunistas fez com que Weintraub decidisse desvincular o canal da Acerp, canetada que também afetou a Cinemateca e a TV Ines.

Progressivamente, as produções e transmissões das duas tevês cessaram, bem como o trabalho de conservação e restauração audiovisual realizado pela Cinemateca, deixando mais de uma centena de funcionários das três instituições sem os salários correspondentes aos últimos meses trabalhados e sem os benefícios da rescisão do contrato empregatício. A despeito de vitórias pontuais na Justiça, a situação permanece a mesma até hoje para a maioria dos trabalhadores, fato que motivou o envio, no início do mês, de uma carta ao presidente Lula e a um grupo de dez ministros, entre eles Camilo Santana (Educação), Margareth Menezes (Cultura) e Luiz Marinho (Trabalho), em busca de uma solução para o passivo trabalhista.

A carta afirma que, desde dezembro de 2021, quando a Acerp foi desqualificada pelo governo Bolsonaro como organização social, não houve nenhum esclarecimento sobre a prestação de contas ou a liquidação patrimonial da entidade. “Isso resultou na má administração de recursos públicos e no descumprimento das leis trabalhistas, deixando em dificuldades mais de 250 famílias”, anotam os signatários. Diversos trabalhadores ingressaram com ações na Justiça do Trabalho, obtendo sentenças favoráveis, mas a Acerp, que ainda está legalmente ativa, subordinada à EBC, mas é uma espécie de morta-viva, alega não possuir recursos financeiros ou patrimoniais para cumprir suas obrigações.

Os autores da carta ressaltam que a TV Escola, criada em 1995, oferecia conteúdo educacional a professores e alunos e era uma ferramenta muito utilizada por profissionais da educação e estudantes de regiões ribeirinhas e outras áreas isoladas. “O canal promovia a capacitação e atualização contínua dos professores brasileiros, transmitindo via satélite, em formatos analógico e digital. Infelizmente, enfrentamos demissões de profissionais altamente dedicados, comprometidos com um debate educativo sério e democrático”, prossegue a missiva.

A TV Ines, criada em 2013, é um projeto pioneiro transmitido por satélite e streaming por sete anos antes de ser subitamente abandonado. “Era uma janela inclusiva crucial para a educação acessível da comunidade surda. Com a programação 100% em Libras (Língua Brasileira de Sinais), exibida 24 horas por apresentadores surdos e intérpretes, o canal dava total protagonismo à população surda que, segundo o IBGE, ultrapassa 10 milhões de indivíduos no País. Com a verba suspensa, o canal deixou de cumprir seu importante papel social inclusivo”, diz a carta.

Os trabalhadores ainda esperam uma solução do governo Lula

A Cinemateca é um caso à parte. Depois da comoção nacional diante da possibilidade de deterioração do maior acervo audiovisual da América do Sul, a instituição, que chegou a ser fechada por 16 meses pelo então secretário nacional de Cultura Mário Frias, foi reaberta em 2022 e busca nas parcerias privadas o caminho para a sua sobrevivência. No início de abril, foi anunciado um patrocínio de 5 milhões de reais de uma empresa internacional de streaming para um projeto de modernização da sede, localizada em São Paulo.

“Desde o fechamento, não existia um corpo técnico contratado, o acervo seguiu desacompanhado e não havia qualquer informação sobre suas condições”, diz o produtor e cineasta Fábio Souza, ex-funcionário da Cinemateca. Havia a possibilidade de autocombustão das películas em nitrato de celulose e o consequente risco de incêndio. “A situação do acervo em acetato de celulose, estimado em 240 mil rolos, era crítica. Tal acervo demanda temperatura e umidade constantes e, na falta de tais condições, sofre aceleração drástica de seu processo de deterioração. O acompanhamento técnico e as demais ações de preservação, inclusive processamento em laboratório, também eram vitais, mas deixaram de existir.”

A situação das duas tevês segue indefinida. Jornalista que trabalhou por 22 anos na Acerp, os últimos deles na TV Ines, Isabelle Gomes lembra que, embora tivesse um contrato com o próprio Instituto Nacional de Educação de Surdos, o projeto utilizava o suporte técnico da TV Escola. “Havia toda uma infraestrutura de equipe, transporte, armazenamento de dados e ilhas de edição e sonorização. Tudo era dividido entre a TV Escola e TV Ines. Quando o MEC, com uma canetada, acabou com o contrato, tudo deixou de existir do dia para a noite.”

Em nota, o MEC forneceu a seguinte resposta: “A Acerp manteve Contrato de Gestão com o Ministério da Educação até 31/12/2019, quando houve o encerramento por decurso de prazo. As ações atinentes à TV Escola e à TV Ines foram assumidas pelo Canal Educação e Canal Libras, geridos pela EBC. Atualmente, há ação judicial do MEC em desfavor da Acerp, visando a devolução do patrimônio físico e digital produzido ou adquirido na constância do Contrato, cujo atendimento da decisão proferida em favor do MEC está em fase de execução”. No que diz respeito às ações trabalhistas, diz a nota, “não são de responsabilidade do MEC”.

Segundo ex-funcionários, a venda de um prédio no Centro do Rio de ­Janeiro, único bem de maior valor ainda em ­disputa na Justiça, seria a maneira mais simples e rápida de corrigir as injustiças e sanar o passivo trabalhista. “A questão está judicializada, e se a Acerp perder mesmo esse prédio, perdem-se também as esperanças dos trabalhadores de conseguir suas indenizações e seus direitos”, lamenta Gomes. •

Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘TV Limbo’

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Last Update: 24/04/2025