A nova estratégia de política externa apresentada pela Casa Branca nesta sexta-feira (5) marca uma reorientação profunda no papel global dos Estados Unidos. Ao contrário do tradicional protagonismo planetário, o governo Trump anuncia que concentrará esforços na América Latina, transferindo responsabilidades para aliados e retirando-se de teatros considerados menos prioritários para sua segurança nacional.
O documento justifica o movimento como um “reajuste militar urgente”, necessário para enfrentar supostas ameaças próximas e para redefinir o papel internacional de Washington. A mudança acontece em meio a uma escalada militar sem precedentes no Caribe e a um acirramento da pressão contra o governo venezuelano de Nicolás Maduro.
No dia 13 de novembro, o secretário de Defesa — que passou a ser tratado oficialmente pelo governo Trump como “secretário de Guerra” — Pete Hegseth anunciou a operação Lança do Sul (Southern Spear), que mobiliza o Comando Sul e uma força-tarefa destinada a atingir organizações envolvidas no tráfico internacional.
Retomada da Doutrina Monroe: a volta explícita da lógica imperial
Em um dos trechos mais alarmantes, a Estratégia afirma que os EUA irão “reafirmar e aplicar a Doutrina Monroe”, estabelecendo uma “retomada poderosa” da predominância norte-americana na América Latina.
A doutrina — utilizada historicamente para legitimar invasões, intervenções e golpes patrocinados por Washington — é reposicionada como eixo de política externa. O texto chega a declarar que competidores externos serão impedidos de controlar ativos estratégicos na região, num gesto direcionado principalmente à China, hoje maior parceira comercial do Brasil.
A mensagem é direta: a América Latina volta a ser tratada como zona de influência exclusiva, sujeita a vigilância militar e à limitação da presença de potências não ocidentais.
Militarização acelerada: frota ampliada, ataques no Caribe e ameaça à Venezuela
O reposicionamento geopolítico vem acompanhado de fatos concretos:
- mobilização de porta-aviões, submarinos nucleares e caças F-35 no Caribe;
- operações bélicas contra embarcações acusadas de tráfico, com dezenas de mortos;
- anúncio da operação Lança do Sul, sob comando do Comando Sul;
- discussões internas sobre possíveis bombardeios em território venezuelano.
O “secretário de Guerra” afirma que os EUA buscarão “remover narcoterroristas do Hemisfério”. O discurso antidrogas, repetido historicamente como justificativa para intervenções, reaparece como base para escalada militar, associada a ataques preventivos e ao controle de rotas marítimas.
A Venezuela reagiu com mobilização militar nacional, alegando que Washington “fabrica uma guerra”. Rumores de ataque terrestre foram alimentados pelo próprio Trump, que declarou: “Não vou dizer o que vou fazer com a Venezuela”.
A tríade da contenção: fronteiras, cartéis e acesso estratégico
A estratégia estabelece três pilares do novo ciclo de intervenção:
1. Controle armado das rotas marítimas
Expansão da Marinha e da Guarda Costeira para monitorar tráfego, migrações e rotas consideradas “essenciais” em crises.
2. Uso de força letal contra cartéis
O documento afirma que políticas de segurança baseadas apenas em repressão policial fracassaram e serão substituídas por ações militares diretas.
3. Ampliação de bases e infraestrutura militar
Os EUA visam instalar ou expandir pontos de apoio em territórios considerados estratégicos — movimento que historicamente antecede intervenções regionais.
China no alvo: disputa geopolítica redefine relações com a América Latina
A estratégia também explicita o objetivo de limitar o avanço chinês na região. Para os EUA, a sino-dependência comercial latino-americana é uma ameaça direta à hegemonia norte-americana. O texto indica esforço diplomático e militar para:
- impedir investimentos chineses em infraestrutura crítica;
- pressionar governos a cortar laços estratégicos com Pequim;
- oferecer acordos econômicos e de segurança como contrapartida;
- recrutar países do “Hemisfério alinhado” para reforçar o cerco geopolítico.
O movimento remete à lógica da Guerra Fria, com a América Latina tratada como palco de disputa entre potências.
Crise nas relações regionais: tensões com Colômbia, Venezuela e impacto no Brasil
A escalada militar já produz efeitos políticos.
Na Colômbia, o presidente Gustavo Petro suspendeu o compartilhamento de inteligência após Trump insultá-lo e intensificar ataques no Caribe.
Na Venezuela, a retórica de Washington é vista como prenúncio de agressão direta.
O governo brasileiro monitora o cenário, alertando para riscos de instabilidade sul-americana e para impactos sobre processos de integração regional.
Especialistas classificam o deslocamento de forças — incluindo o porta-aviões USS Gerald R. Ford, maior navio de guerra do mundo — como o maior movimento naval dos EUA no Caribe em décadas.
Militarização como política de Estado: fronteiras, migração e supremacia
A nova estratégia também reforça o eixo doméstico da agenda trumpista. O documento defende o fim da “era da imigração em massa” e transforma controle de fronteiras em pilar absoluto da “segurança nacional”. Critica abertamente a Europa por sua política migratória e promete apoiar governos que combatam valores da União Europeia.
A militarização global aparece como ferramenta central da política externa: os EUA prometem “assegurar a paz por meio da força”, defender Taiwan contra a China e pressionar aliados no Indo-Pacífico por mais gastos militares.
Um retorno perigoso ao passado
Ao recentralizar a América Latina como prioridade militar, ressuscitar a Doutrina Monroe e ampliar demonstrações bélicas no Caribe, o governo Trump recoloca o continente sob o espectro da ingerência imperial.
A retórica de “estabilidade” e “combate ao narcotráfico” contrasta com a escalada de tensões que ameaça a paz regional.
O resultado é um cenário que combina disputa geopolítica, militarização crescente e risco real de confrontos — com potencial para remodelar a política continental e reviver as sombras de um passado que a América Latina nunca superou completamente.