Os protestos na Califórnia eram o evento que Donald Trump esperava para desviar o foco dos seus fracassos. Quando as manifestações contra a expulsão de imigrantes explodiram nas ruas de Los Angeles na sexta-feira 6, o republicano atravessava um péssimo momento, acossado pelas críticas ao Big Beautiful Bill, a proposta orçamentária aprovada no Congresso que, sob o pretexto de simplificação tributária, vai aumentar o peso fiscal sobre os trabalhadores e as pequenas empresas em mais de 2,6 trilhões de dólares, e pela crise no “bromance” com o bilionário Elon Musk, com quem lavou roupa suja nas redes sociais, para o constrangimento de alguns e diversão de outros.
Nada melhor, portanto, do que investir contra um novo “bode expiatório”. O escolhido foi o governador californiano, Gavin Newsom, do Partido Democrata. Em poucos dias, a Casa Branca desafiou a autonomia do estado e o equilíbrio federativo que marcam a história dos Estados Unidos, ao enviar a Guarda Nacional e soldados navais sem solicitação e ameaçar prender Newsom por “incompetência”. Também insurgiu contra a “esquerda radical”, defensora, segundo ele, da “invasão” de estrangeiros que coloca em risco o poder do império. Em reação, manifestantes passaram a ocupar as ruas em mais de 20 grandes cidades do país, entre elas Nova York. Na quarta-feira 11, a prefeita de Los Angeles, Karen Bass, foi obrigada a determinar toque de recolher na esperança de conter a escalada de violência dos confrontos entre civis e as tropas enviadas por Washington. Ao contrário da tradição brasileira, não há registros na história norte-americana do uso de militares para reprimir a própria população.
Trump também decidiu redobrar a expulsão em massa de imigrantes. O objetivo agora é deportar ao menos 3 mil indocumentados por dia. O governo prepara operações centradas em Boston, onde reside a maior parte da comunidade brasileira, e Nova York. A abordagem tem sido violenta e humilhante. Agentes federais passaram a saltar de vans sem identificação perto de estacionamentos de lojas, como o da Home Depot, um gigante de materiais de construção, para deter quem tenha traços latinos. Lavadores de pratos, decoradores, trabalhadores braçais e costureiras tornaram-se os alvos preferenciais.
A conduta dos funcionários do ICE, o serviço de imigração, despertaram a indignação da comunidade latina, que representa cerca de 18% da população, e desencadearam os protestos que Washington decidiu sufocar à força. Na sexta 6, quando as manifestações na Califórnia atingiram uma proporção gigante, Trump escreveu no Truth Social: “Los Angeles está sendo invadida e ocupada por turbas violentas” e “os insurgentes deveriam ser presos”, sem mencionar que ele próprio, ao retornar à Casa Branca, perdoou os invasores do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, turba que pretendia anular as eleições e promover um golpe de Estado. No sábado 7, o presidente ignorou a autoridade de Newsom e a competência dos quase 9 mil oficiais da Polícia de Los Angeles ao convocar 2 mil integrantes da Guarda Nacional para reprimir os protestos, um efetivo enviado para obedecer às ordens diretas da Casa Branca. “Eu sempre quis abordar o relacionamento com o presidente dos Estados Unidos de forma respeitosa e responsável, mas não há como trabalhar ‘com’ o presidente, há apenas trabalhar ‘para’ ele, e eu nunca trabalhei para Donald Trump”, afirmou o governador da Califórnia à rede de televisão MSNBC. Na segunda-feira 9, o democrata confirmou a prisão de mais de 220 manifestantes e anunciou uma contestação judicial contra o envio de tropas federais para o estado. Na terça 10, ingressou com uma ordem judicial de emergência para barrar a atuação dos mariners nas ruas de Los Angeles.
Em pronunciamento oficial na mesma noite, Newsom fez novo apelo à resistência pacífica e alertou para os riscos crescentes ao estado de direito. “Regimes autoritários começam mirando nos mais vulneráveis, mas nunca param por aí. Trump e seus apoiadores prosperam na divisão, porque é por meio dela que concentram poder e expandem o controle.”
“A democracia é o próximo alvo”, diz Gavin Newsom, governador da Califórnia
A Califórnia, advertiu Newsom, é apenas o primeiro alvo de uma escalada autoritária: “Claramente não será a última. Outros estados virão. A democracia é o próximo alvo. Ela está sendo atacada diante de nossos olhos, este momento que tanto temíamos chegou. Se vocês foram exercer seus direitos garantidos pela Primeira Emenda, façam-no pacificamente. Sei que muitos são tomados por ansiedade, medo e estresse. Mas quero que saibam: vocês são o antídoto. O que Donald Trump mais deseja neste momento é sua fidelidade cega. O seu silêncio. A sua rendição. Não entreguem isso a ele”.
Horas antes, Trump havia publicado em sua conta no Instagram uma imagem na qual aparece diante das tropas do Exército. Na legenda, uma frase bélica: “Hoje estou mais confiante do que nunca de que, nos dias que virão, e por todas as gerações futuras, o Exército dos EUA acumulará glória sobre glória. Vocês invocarão uma coragem inesgotável. Protegerão cada centímetro do solo americano e defenderão a América até os confins da Terra!”
Novos protestos estão planejados para os próximos dias em Nova York, Chicago, Boston, São Francisco e outras dezenas de localidades. O republicano deixou claro que não pretende recuar e ameaçou “receber” os manifestantes com “força igual ou maior” do que aquela empregada em Los Angeles. A última vez que um presidente dos Estados Unidos enviou a Guarda Nacional para uma operação doméstica sem o aval do governador foi em 1965 e por uma razão totalmente diferente e justificável. Diante da resistência de estados do Sul de obedecer às novas regras contra a segregação racial, Lyndon B. Johnson não teve alternativa a não ser intervir no Alabama, não para atacar os civis, mas para proteger de agressões e linchamentos os negros que ingressaram em escolas ou ambientes antes exclusivos dos brancos.

Pagar para ver. O republicano, em resposta aos protestos, promete praticamente dobrar o número diário de deportações de imigrantes – Imagem: Glenn Fawcett/US Border Protection e Shealah Craighead/The White House
O aumento da cota de deportações de 1,8 mil para 3 mil por dia anunciado no domingo 8 pela secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, coincide com relatos de superlotação em centros de detenção e com a busca acelerada por novas instalações destinadas a empilhar os presos. Atualmente, mais de 48 mil imigrantes estão sob custódia federal, aumento de 20% desde o início do ano.
Neste novo regime criado pela administração Trump, nem mesmo quem tem permissão para viver legalmente no país, por meio de visto ou de residência permanente, o chamado Green Card, está protegido. Estudantes passaram a ser perseguidos nas universidades e escolas, residentes permanentes barrados em aeroportos e enviados a centros de detenção. Em cidades como Boston, Massachusetts, e Newark, New Jersey, onde vivem milhões de estrangeiros em situação irregular, a busca pelo “sonho americano” tem se transformado em um ciclo de terror, estresse e angústia.
Nem mesmo o prefeito de Newark e candidato a governador de New Jersey foi poupado. Em 9 de maio, Ras Baraka ficou preso por algumas horas depois de tentar entrar, ao lado de congressistas, nas instalações de um centro de detenção do ICE na cidade. Por esses e tantos outros motivos, muitos brasileiros evitam sair de casa. As notícias recorrentes de prisão de compatriotas elevam a tensão diária. Um aplicativo chamado Hack Latino foi criado para auxiliar quem busca escapar das garras dos agentes de imigração. Além dos endereços de consulados, o aplicativo informa em tempo real as áreas de batidas policiais e a movimentação de veículos “suspeitos”, normalmente usados como disfarces pelas equipes do ICE.
“É uma política de supremacia branca”, afirma Heloísa Galvão, do Brasil Mulheres Group
Na tentativa de lustrar a imagem, Washington criou um plano de autodeportação, o CBP Home App, programa que oferece assistência financeira, suporte de viagem, tratamento decente e um “prêmio” de mil dólares para quem decidir voltar ao país de origem por livre e espontânea vontade. Os migrantes temem, porém, que as promessas não sejam cumpridas e que tudo não passe de armadilha. Heloísa Galvão, representante do Brasil Mulheres Group, fundado há 30 anos, e Lídia Sousa, diretora do New England Community Centre Stoughton, criado há uma década, são testemunhas do desespero dos brasileiros sem documentos oficiais. As ONGs atuam na região de Boston e se converteram em centros de apoio à comunidade. As duas ativistas se emocionam ao relembrar casos como o de um idoso detido pelo ICE a caminho do hospital para o tratamento com hemodiálise. Também me deram acesso ao áudio de uma mãe que, aos prantos, pergunta se é possível acelerar o processo de certidão de nascimento do filho, pelo medo de ser deportada e o menino, nascido nos Estados Unidos, ser enviado a um abrigo.
Desde janeiro houve um aumento expressivo na procura por documentação brasileira. O número de solicitações de certidão de nascimento aumentou de 15 pedidos diários no primeiro mês do ano para mais de 200 em maio. Dados de 2023 do Ministério das Relações Exteriores estimam que 1,9 milhão de brasileiros vivem nos EUA. O Itamaraty informa que tem realizado mutirões para atender à alta demanda e que o ministério desenvolve um estudo para ampliar o corpo de funcionários nos consulados espalhados pelo país. Para Lídia Sousa, é preciso dar agilidade a esse processo. “Atuamos como bombeiros aqui. O número atual de funcionários nos consulados é insuficiente e eles precisam de reforço urgentemente para atender a tamanha demanda. Vou ser sincera, estou muito cansada. Parece que vivi cinco anos em três meses.”
Residentes há mais de duas décadas nos EUA, as duas brasileiras afirmam nunca ter vivido algo parecido. “O ‘Make America Great Again’, na verdade, é ‘Make America White Again’”, observa Heloísa Galvão. “É uma política fascista proposital, de humilhação, extremamente planejada, uma política de supremacia branca.” •
Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Trump, o sátrapa’