Trump, Los Angeles e o ataque ao federalismo americano

por Gisele Agnelli

              No dia 8 de junho de 2025, o presidente Donald Trump ordenou o envio de dois mil soldados da Guarda Nacional a Los Angeles para conter protestos contra suas operações migratórias. Não invocou formalmente o Insurrection Act, mas o efeito foi o mesmo: manifestantes tratados como inimigos, bairros latinos militarizados e uma cidade ocupada. Além da óbvia escalada repressiva, este episódio reforça a tese de Ernst Fraenkel, em “The Dual State”(1941), sobre o funcionamento de regimes autoritários que operam simultaneamente com duas engrenagens: onde Há a coexistência de um “Estado normativo”, de leis e instituições formais, e um “Estado prerrogativo”, guiado por decretos de exceção, normalmente com foco no “inimigo interno”. A coexistência de legalidade aparente e autoritarismo estrutural é a forma de governo que emerge no segundo mandato de Trump.

              Ao usar a Seção 12406 do Título 10 do Código dos EUA para federalizar a Guarda Nacional da Califórnia sem o consentimento do governador, o presidente contorna a exigência legal de “rebelião armada”, distorcendo uma lei ambígua para fins políticos. Assim, governa como se tivesse declarado o Insurrection Act, sem os custos jurídicos e simbólicos de fazê-lo. Esse uso tático da legalidade lembra o que Fraenkel observou no regime nazista: leis de emergência não suspensas, mas normalizadas, transformando exceções em rotina. Com isso, militares substituem a polícia civil, opositores e o dissenso são enquadrados como ameaças internas, e o espaço público, especialmente nas comunidades latinas, é convertido em zona de controle.

              O caso de Los Angeles é apenas o exemplo mais visível de uma ofensiva sistemática contra o federalismo norte-americano. Desde o início de 2025, a Casa Branca adotou uma série de medidas com esse objetivo:

  • Congelamento de verbas para estados com políticas ditas “woke”;
  • Suspensão de US$ 1,2 bilhão destinados à Pensilvânia, mesmo com aprovação do Congresso;
  • Ações judiciais contra leis estaduais de proteção a imigrantes;
  • Tarifas unilaterais com impacto direto nas economias estaduais;
  • Tentativa de reinterpretação da 14ª Emenda via decreto; e
  • Submissão de agências reguladoras ao gabinete presidencial.

              Essas iniciativas têm alvo definido: Califórnia, Illinois, Pensilvânia e Nova York, todos governados por democratas ou com maioria legislativa progressista. Este foco específico em Estados Democratas parece ser uma tentativa deliberada do executivo de subverter o pacto federativo estadunidense por uma federação subordinada ao Executivo,

              Mais alarmante que os atos autoritários é o fato de que eles rendem dividendos eleitorais. Segundo a pesquisa CBS News (4-6 Junho), Trump registra em 2025 sua maior aprovação histórica na área de imigração. A aprovação da população como o programa de deportações de ilegais de Trump é de 54%, incluindo a aprovação a operações táticas em locais de trabalho e operações em bairros residenciais (51%  de apoio), mesmo diante de imagens de violência.

              Como mostra o New York Times, Trump “pede por uma briga” com governadores como Gavin Newsom ou prefeitos como Karen Bass. E faz isso por cálculo: a confrontação reforça sua imagem de “homem de ação” diante de um eleitorado que já não confia nos democratas para lidar com a imigração. Em pelo menos três pesquisas (CBS, CNN, Ipsos), os republicanos lideram com até 19 pontos de vantagem nesse tema.

               Trump tenta transformar seu autoritarismo em espetáculo com estas ações do ICE, uma cortina de fumaça estratégica e bem-vinda numa época em que a economia, seu principal tema de campanha, não vai nada bem. Cada decreto, cada militar na rua, cada verba congelada, compõe um teatro político em que repressão se apresenta como liderança e concentração de poder se vende como eficácia.

              O que se passa em Los Angeles é sintoma de algo mais profundo: a consolidação do Estado prerrogativo como modelo de governo eleitoralmente viável. Trump governa com as ferramentas da exceção, mas o faz dentro dos marcos legais, ou se esforça em usa-los até chegarem ao Judiciário. Chegando a Suprema Corte, se maioria conservadora, tem ganhado algumas causas importantes. Essa é sua inovação autoritária. E o faz com o respaldo de uma parcela expressiva do eleitorado americano, que hoje parece disposto a trocar garantias constitucionais por promessas de ordem, força e controle.

              Fraenkel alertava que o Estado dual não é uma transição para o autoritarismo: ele é o autoritarismo. E, ao que tudo indica, o experimento americano de 2025 resolveu abraçá-lo com convicção.

Gisele Agnelli – Socióloga com especialização em ciências políticas, graduada pela PUC-SP, pós-graduada em Marketing e em Gestão da Informação, ambos pela ESPM. Fundadora do #VoteNelas. Atualmente reside nos EUA e faz parte do Movimento de Lideranças Femininas do Partido Democrata, Hoosier Women Forward.

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Last Update: 11/06/2025