Trump, Fernando de Noronha e Amazônia Azul
por Paulo Kliass
A estratégia adotada por Donald Trump desde que assumiu a Presidência dos Estados Unidos em seu segundo mandato tem sido marcada por uma certa inconstância no que se refere às relações internacionais. Os sinais de uma ofensiva em larga escala relativamente à imposição de tarifas sobre o comércio exterior em todo o globo foram sendo paulatinamente flexibilizados. Tendo em vista o grau de isolamento em que o governo se encontrou, optou-se pela adoção de medidas menos impactantes nas negociações individuais com cada país ou bloco. Apesar de identificar na China o adversário mais relevante a combater na disputa global, a Casa Branca se viu obrigada a recuar de forma significativa também neste caso.
No que refere à disputa por espaços e territórios pelo planeta afora, Trump iniciou sua nova gestão com propostas e ameaças variadas, como a ideia de anexação do Canadá, a tomada de controle sobre a Groenlândia e a retomada dos direitos sobre o Canal do Panamá, dentre tantas outras sinalizações que oscilam entre bravata e decisão estratégica. De toda forma, com avanços e recuos em cada uma destas iniciativas, o traço comum é a sinalização de alguma tentativa de expressar ao mundo o potencial do avanço unilateral por parte daquela que insiste em se afirmar como a maior potência imperialista global.
No caso brasileiro, a possibilidade mais recente refere-se a um vazamento de documentos oficiais do governo estadunidense em que ficaria clara a intenção de ocupar a base aérea de Natal no Rio Grande do Norte e do território de Fernando de Noronha. De acordo com material publicado pelo site “defesanet.com.br”, especializado em questões militares, o interesse daquele governo seria pelo elemento estratégico representado por tais sítios. O frágil argumento de natureza jurídica repousa no fato de que os Estados Unidos teriam direito a operar em tais espaços de soberania brasileira em razão de terem colaborado para a construção de bases aéreas ainda na época da Segunda Guerra Mundial.
(…) “Diplomatas vinculados a setores republicanos dos Estados Unidos, diretamente associados ao núcleo político do presidente Donald Trump, vêm articulando informalmente com interlocutores brasileiros o uso irrestrito do Aeroporto de Fernando de Noronha (SBFN) e da Base Aérea de Natal (BANT), no Rio Grande do Norte. O argumento empregado remete ao conceito de “direito histórico de retorno operacional”, com base em investimentos realizados pelos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e o período da Guerra Fria.” (…) [GN]
Como se sabe, o que menos interessa em termos desse tipo de ameaça é a solidez jurídica da proposição. Afinal, o argumento não se sustenta se houver alguma racionalidade no debate. Em clara demonstração de seu poderio bélico, a Casa Branca pretende se apossar de pontos estratégicos na rota do Atlântico Sul. Natal se localiza no ponto de menor distância em relação ao continente europeu, enquanto Fernando de Noronha ocupa uma posição central nas águas oceânicas entre a África e a América do Sul. Muito provavelmente por se tratar de tema bastante sensível e controverso, até o momento não houve nenhuma manifestação oficial de integrantes do governo norte-americano a esse respeito. Mas fica o alerta para que o governo brasileiro incorpore a questão em sua agenda e que o movimento social e as entidades da sociedade civil se manifestem contra mais essa ingerência absurda do império em vias de perder a condição de sua hegemonia.
Na verdade, o vazamento das intenções ianques abre o espaço para discutirmos de forma mais séria a questão de soberania nacional e as necessidades que o Brasil tem de aprofundar medidas nesta direção. Um dos aspectos que merecem ser trazidos à tona neste debate é o conceito de “Amazônia Azul”, tal como estabelecido pela legislação e pela institucionalidade brasileiras. Trata-se da aplicação de um direito internacional aos nossos domínios. Refiro-me à “Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar”, que foi aprovada pela ONU em 1982 e que posteriormente foi ratificada pelo Brasil e internalizada em nossa legislação por meio do Decreto 99.165 de 1990.
De acordo com tal dispositivo, nosso País passou a ter o direito de exercer sua soberania sobre uma região marítima de 200 milhas náuticas contadas a partir do limite de nosso litoral. Assim, tendo em vista a grande extensão de nossa costa, o espaço ganhou o nome de Amazônia Azul. Isso porque a Amazônia Legal conta com uma área de aproximadamente 5 milhões de km², ao passo que a região marítima chega a superá-la, atingindo 5,7 milhões de km². Trata-se de um universo que possui um inquestionável valor estratégico de segurança nacional, além dos aspectos de pesquisa científica, potencial econômico e valor ambiental. De acordo com a Marinha:
(…) “Pela Amazônia Azul, mais de 95% de nosso comércio exterior trafega e cerca de 95% do petróleo nacional é extraído, sendo, ainda, acervo de incontáveis recursos vivos, minerais e sítios ambientais, com a existência de estratégicos portos, centros industriais e de energia.” (…)
Isso significa que o governo brasileiro tem a seu dispor todo o arsenal diplomático e jurídico para se contrapor a tais intenções da Casa Branca. Basta se apresentar com a vontade política de defender a soberania nacional para isolar mais uma vez tais pretensões imperialistas. Ao contrário das recentes manifestações do Ministro da Fazenda, é fundamental que a posição oficial do Palácio do Planalto não deixe qualquer dúvida esse respeito. Lembremos que Haddad esteve recentemente um evento organizado pelos lobistas do Instituto Milken em Los Angeles, onde chegou a afirmar que:
(…) “Temos interesse de nos aproximarmos mais dos Estados Unidos. Fizemos isso na administração Biden e faremos isso na administração Trump” (…)
Declarações desastradas como essa, comparando uma eventual linha de continuidade entre Biden e Trump, por exemplo, não colaboram em nada para aperfeiçoar as relações entre os dois países. Além disso, expressa um sentimento de submissão aos interesses dos norte-americanos que infelizmente se traduziu nas negociações que o seu Ministério começou a estabelecer no tema das chamadas “big techs”. Em sua ânsia por se apresentar como o bom moço em todas as inciativas envolvendo representações das classes dominantes, ele ofereceu tudo e mais pouco para conseguir a vinda das empresas de tecnologia digital sediadas no país governado por Trump e Elon Musk. Artigo de autoria do professor Sérgio Amadeu, uma das maiores autoridades brasileiras no tema, é bastante claro:
(…) “Fernando Haddad oferece pacote de bondades a empresas transnacionais sem que haja plano para a IA, política para os chips ou sequer caminho para proteger os dados das universidades. Em tais condições, país arrisca-se a embarcar alegremente na cilada do colonialismo digital” (…) [GN]
Esperamos que a postura oficial do governo brasileiro seja bastante distinta no assunto das bases aéreas de Natal e Fernando de Noronha. A importância estratégica do Brasil é inegável no plano das relações internacionais. Sob qualquer aspecto, seja por nossa posição geográfica, seja por nosso papel no jogo geopolítico e diplomático, nossas autoridades não podem aceitar passivamente esse tipo de provocação. Os Estados Unidos recriaram em 2008 sua Quarta Frota Marítima para atuar militarmente no Atlântico Sul. Em 2024, houve uma série de manobras e exercícios militares próximos à costa brasileira. Tal movimento conta inclusive com a participação de oficiais da Marinha brasileira e de outros países da América do Sul.

O mapa acima evidencia a importância fundamental dos limites da Amazônia Azul para expandir os limites da soberania nacional brasileira, bem como o papel estratégico desempenhado pelo arquipélago de Fernando de Noronha, além das ilhas de Trindade e Martim Vaz e o próprio arquipélago de São Pedro e São Paulo. Assim, para além das provocações atuais de Trump, trata-se de uma decisão que o Estado brasileiro deveria adotar de maneira forme e urgente. Por isso é bastante preocupante que a Ministério da Defesa tenha estabelecido contratos com empresas estrangeiras para fins de monitoramento e controle dos espaços amazônicos, tanto o verde como o azul. Matéria publicada na imprensa no começo de abril relata o fato preocupante:
(…) “O Censipam (Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia), vinculado ao Ministério da Defesa, firmou nesta 3ª feira (1º.abr.2025) um acordo com o Edge, grupo de tecnologia e defesa dos Emirados Árabes Unidos, para aumentar a segurança das comunicações no monitoramento da Amazônia Legal e da Amazônia Azul, como é chamada a área marítima brasileira” (…) [GN]
É essencial consolidar a ocupação de tal espaço marítimo de forma soberana e evitar que ameaças externas possam comprometer a possibilidade de explorar o enorme potencial que a Amazônia Azul representa para nosso País e para o futuro da própria Humanidade.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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