David Daley, pesquisador e integrante sênior da organização apartidária norte-americana FairVote, dedica-se há anos ao estudo do fenômeno do extremismo de direita. É autor, entre outros, do best seller Ratf**ked: Por Que Seu Voto Não Conta, base do premiado documentário Slay The Dragon. Na entrevista a seguir, Daley explica como ideologias extremas ganharam força e relevância no cenário contemporâneo. Detalha o projeto de longo prazo do Partido Republicano, reforçado pela vitória de Donald Trump, de ocupar todas as esferas de poder e limitar direitos dos cidadãos conquistados ao longo de décadas. E aponta o dedo para as Big Techs: “Os novos senhores conservadores da tecnologia não estão do lado da democracia”.
CartaCapital: Quais as semelhanças entre a extrema-direita atual e os movimentos que desembocaram no nazismo e no fascismo nas primeiras décadas do século passado?
David Daley: Certamente, há um populismo de direita assustador em marcha em grande parte da América Latina, em países da Europa, lugares onde em tese eles saberiam lidar melhor com a situação, dado o histórico, e também nos Estados Unidos. As causas são complexas, e muitas têm a ver com situações específicas em cada país, mas podemos traçar muitos paralelos, como entre o Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia) e a ascensão de Donald Trump. Ainda assim me parece que parte do que acontece nos EUA é um pouco diferente do que ocorre em outros lugares do mundo. As crises econômicas, como a Grande Depressão nos anos 1930, tendem a acentuar movimentos populistas, mas nos Estados Unidos de hoje, quando pensamos em desemprego, taxas de juro, não é um problema. A inflação, que aumentou após a pandemia, está de volta a patamares históricos. Aqui, ocorre uma perda de confiança nas instituições em todos os níveis, o que tem gerado essa expansão da extrema-direita. Essa perda de fé nas entidades e no sistema atinge a mídia, a política, a educação e, certamente, a ciência. Nos EUA, frequentar ou não a faculdade tornou-se um dos fatores determinantes para se votar nos democratas ou nos republicanos. Cerca de 40% do país vive em uma bolha de comunicação de direita hermeticamente fechada, na qual circula muita desinformação. Quando se leva em consideração todos esses fatores, desde os níveis de educação até o fato de que essas outras instituições de verificação mais tradicionais perderam sua credibilidade em amplo espectro, encontramos o ambiente propício para a reação populista.
CC: Qual é a responsabilidade das Big Techs?
DD: Vimos na última campanha presidencial dos EUA qual o lado dos bilionários da tecnologia. Os primeiros relatos de imigrantes haitianos a comer gatos e cachorros em Springfield, Ohio, não vieram da campanha de Trump ou mesmo de JD Vance. Começou no Facebook com um amigo de um amigo e o “assunto” saltou da esfera da mídia de direita e acabou absorvido por aquele ecossistema fumegante e tóxico de Vance. Um ou dois dias depois, Trump trouxe o tema para o debate assistido por 67 milhões de espectadores. E não importa não ser verdade. São histórias que começam como um meme, como um relato na rede social, abrem caminho pela mídia de direita e então inundam a política. Às vezes, presumíamos que era a campanha de Trump que trazia essas coisas à tona e a mídia de direita amplificava, mas a realidade é outra. A rede social e a política de direita executam, só então as campanhas se apropriam.
CC: Nada é feito para impedir…
DD: …Exatamente. Na campanha presidencial dos Estados Unidos, as plataformas digitais retrocederam em relação a qualquer verificação de fatos, a qualquer regulamentação. Mark Zuckerberg até tentou, mas foi intimidado e agora chama Trump de “um cara durão”. Elon Musk comprou o Twitter, renomeou de X e estará no governo. Há sete anos, quando Trump foi eleito pela primeira vez, The Washington Post afirmava em seu editorial que “a democracia morre na escuridão”. Agora, com Jeff Bezos no comando, o jornal simplesmente recusou-se a apoiar um candidato. São muitos casos que deixam bem claro que os nossos novos senhores conservadores da tecnologia não estão do lado da democracia.
CC: É covardia, oportunismo ou identificação?
DD: Eles sabem muito bem o que fazem e controlam os algoritmos que determinam o que vemos e lemos. Os algoritmos estão se tornando cada vez mais fortes e precisos. A Inteligência Artificial só vai aumentar a capacidade de falsificar uma realidade. Quando alguém se opõe a um aspirante a autoritário, aflora o medo. Vamos voltar a 2020, quando Zuckerberg, por meio de sua fundação, distribuiu subsídios para apoiar cidades e vilas com dificuldade em levantar dinheiro para todos os requisitos de votação necessários para lidar com uma eleição durante a pandemia. Trump não gostou do gesto. Desta vez, sob ameaças, Zuckerberg recuou, certo? Então os bilionários, como poder e influência, não querem arriscar. Lembra os plutocratas ricos em torno de Vladimir Putin. Há uma sensação real de medo do que eles podem perder. Este é um dos problemas mais sérios diante da escalada do autoritarismo. Quem terá coragem de se levantar e impedir? E se ninguém tiver influência para tanto? É muito difícil olhar para a nossa mídia, o cenário empresarial ou político e enxergar quem é o líder, quem tem autoridade, credibilidade e coragem para se apresentar neste momento. Muitos covardes pegaram o caminho mais fácil e saudaram seu novo líder.
CC: Em agosto, foi publicado seu livro Antidemocrático: Por Dentro da Conspiração de 50 Anos da Extrema-direita para Controlar as Eleições Americanas. Nele, o senhor descreve o sequestro da Suprema Corte pela ala radical do Partido Republicano. Agora, eles também vão controlar, além da Casa Branca, o Senado e a Câmara. O que podemos esperar?
DD: Que eles usem o poder construído assiduamente para si mesmos. Os conservadores e a extrema-direita passaram a controlar cada pedaço do espectro político. O que realmente me preocupa é a Suprema Corte. Se, nos próximos quatro anos, Trump substituir alguns dos conservadores mais velhos na Corte por mais jovens, eles servirão pelas próximas quatro décadas. Ou, pior, se substituir alguns dos três liberais, então todas as apostas progressistas estarão canceladas. Difícil ver uma saída, a direita tem usado essa dinâmica, seja nos estados, seja nos tribunais, para se entrincheirar no poder e construir uma força resistente e duradoura.
CC: É exagerado temer o surgimento de um líder autoritário como Hitler? Trump tem esse perfil?
DD: Honestamente, Trump está mais para um palhaço perigoso do que para Hitler. E pode muito bem estar sob o domínio de sabe-se lá que tipo de influência. Quando olhamos para as primeiras nomeações do gabinete, vemos gente como Tulsi Gabbard na Inteligência e Pete Hegseth, ex-apresentador da Fox News, na Defesa…. Não acho que esses palhaços poderiam comandar essas instituições, eles não são autoritários brilhantes. O risco aqui é a estupidez que, assim como o autoritarismo, insistimos muitas vezes em ignorar, ao permitir que essas instituições sejam assumidas por figuras pouco sérias, indignas de comandá-las e, provavelmente, sem capacidade, que podem causar danos extraordinários enquanto estiverem nessas posições. Não me preocupo tanto com um cenário semelhante àquele da Segunda Guerra Mundial, quando penso na extrema-direita atual. O perigo real está mais próximo quando as instituições são corrompidas e controladas por palhaços.
CC: É inegável a influência de Trump sobre outros líderes mundiais. Veremos um efeito em cascata?
DD: Sim, ele pode criar mini-Trumps ao redor do mundo, uma ideia absolutamente perturbadora. Mas Trump e seus mini são, por mais difícil que possa parecer, apenas uma parte pequena do que estamos analisando sobre o extremismo. O problema real, novamente, é a retirada das instituições democráticas da estrada. Se isso acontecer, será muito, muito difícil retomá-las ou reconstruí-las. Falamos da possibilidade concreta de os nossos tribunais serem sequestrados tão completamente, a ponto de que as nossas eleições e os nossos processos políticos quase não importarem mais. Tomemos os Estados Unidos novamente como exemplo. Nesta última eleição, a consequência real é o controle conservador que tende a ser apoiado pelos tribunais e capaz de impor o que quiser por quanto tempo quiser. Trump e outros líderes como ele, provavelmente, não têm agenda política, habilidade política ou habilidade legislativa para promover qualquer agenda real, mas há nomes em vários think tanks conservadores que sabem muito bem o que querem e o que esperam ver acontecer. Nos Estados Unidos, vamos ver as coisas desenrolarem a partir dos tipos de legislação em trâmite a partir de 2025, seja sobre armas ou saúde ou imigração ou eleições ou aborto e, sim, sobre os direitos de voto e como os norte-americanos poderão votar. Todos seremos muito radicais. Parte disso caminhará até e, provavelmente, dançará para o outro lado dos limites constitucionais. Mas como os limites constitucionais são determinados pelos tribunais, e porque os tribunais se tornaram outro ramo do Partido Republicano de extrema-direita, não é uma boa ideia esperar que eles interponham quaisquer barreiras.
CC: Há esperança?
DD: Estamos em águas desconhecidas e ninguém sabe como sairemos do outro lado. Este será um longo e desesperado caminho para o movimento democrático voltar ao poder. Para começar, é preciso tentar identificar as instituições onde é possível reconquistar um pequeno assento na mesa e focar nisso com toda a sua vontade, tentar resistir. Esta foi a estratégia que a direita usou há 50 anos e agora deu frutos. O caminho de volta pode exigir apenas esse esforço meticuloso e histórico.