Trump e o Dólar: é hora de pensar no “impensável”?
por André Moreira Cunha e Luiza Peruffo
Alta ou Baixa?
Recentemente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou as estimativas para a composição das reservas internacionais das Autoridades Monetárias ao redor do mundo. Ativos denominados em dólares estadunidenses responderam por 57,4% dos US$ 11,8 trilhões alocados. Trata-se da menor participação relativa em três décadas. A diversificação de ativos de reserva tem sido um movimento contínuo, que se aprofundou no período recente. No começo dos anos 2000, a moeda estadunidense ancorava pouco mais de 70% das reservas.
Esse movimento de “baixa”, aparentemente estrutural, vem acompanhado da pressão altista adicionais sobre “Greenback”. Desde o final de setembro de 2024, o dólar ficou entre +7% (índice do FED) e +9% (DXY) mais forte frente às demais moedas. Os investidores correm para os ativos estadunidenses, tanto em busca de proteção diante dos movimentos disruptivos esperados com o retorno de Trump à Casa Branca, quanto por apostar que suas políticas serão benéficas ao mercado acionário e ao segmento de criptoativos.
Tanto asoscilações conjunturais, quanto os movimentos longos de redução ou de aumento na participação de ativos denominados em dólares na carteira de investidores privados e de Bancos Centrais, têm ocorrido ao longo dos oitenta anos de hegemonia “verde”. Desde os anos 1940, os EUA moldaram as relações financeiras internacionais à luz dos seus interesses. Sua moeda se consolidou com o principal veículo para a realização de transações comerciais e financeiras. É a moeda internacional “de facto”, ainda que não “de jure”. Seus ativos, particularmente da dívida pública federal, são os mais demandados e representam os instrumentos mais líquidos e seguros disponíveis. Os demais ativos se “precificam” em comparação com as Treasuries de dez e trinta anos.
Peter McGuire, chefe do Departamento de Estatísticas do Bank for International Settlements (BIS), e seus colegas, demonstraram que o dólar segue imbatível como veículo principal de denominação dos contratos comerciais internacionais. Euro, iene, libra, renminbi ou outras moedas conversíveis internacionalmente não conseguem rivalizar tal posição. Para eles: “As principais moedas moldam o padrão dos fluxos globais de capitais e as decisões políticas tomadas nos países que as emitem repercutem no resto do mundo.”. E isso se origina na sua função de unidade de conta, conforme sugerido por Keynes no Tract on Monetary Reform (1923).
A existência de uma ampla rede de agentes financeiros dispostos a ofertar crédito em dólares fora dos EUA contribui para que, por um lado, haja a liquidez necessária para a liquidação dos contratos internacionais, com elevada segurança para as partes; por outro lado, incentiva-se a acumulação de ativos denominados em dólares por agentes privados e públicos. Os Bancos Centrais ao redor do mundo precisam manter níveis mínimos de reservas em títulos nesta moeda para viabilizar a inserção internacional de suas economias e garantir alguma margem de manobra para gerir seus preços macroeconômicos, particularmente a taxa de câmbio e a taxa básica de juros[1]. Não importa se possuem regimes de câmbio fixo, administrado ou de livre flutuação.
Ainda não está claro se as transformações recentes no ambiente geopolítico produzirão ajustes suficientemente profundos para alterar estruturalmente o status da moeda estadunidense. Essa hipótese não pode ser descarta a priori, tampouco deve ser superestimada.
Os Tentáculos do Dólar
A solidez da moeda estadunidense se revela no fato de que enquanto os EUA respondem por pouco mais de 20% do PIB global e um pouco menos do comércio de mercadorias, os ativos denominados em dólares conformam ao redor de 60% das reservas oficiais, dos créditos bancários e dos demais instrumentos de dívida gerados por instituições financeiras em nível internacional. Metade das transações realizadas internacionalmente são liquidadas em dólares. O mundo acumula riqueza em instrumentos denominados em dólares, o que torna o financiamento de suas empresas e governos mais elástico e barato. Isso amplia os espaços de autonomia para o exercício da política macroeconômica dos EUA. Tal privilégio, por vezes considerado “ultrajante”, se ancorou em um processo histórico onde as potências europeias que dominavam as finanças internacionais perderam poder relativo na primeira metade do século XX.
Depois da Segunda Grande Guerra Mundial, as capacidades econômicas e militares dos EUA permitiram o estabelecimento das novas regras do jogo dos mercados, as quais garantiram a recuperação da Europa e do Japão no pós-guerra. Mesmo após implodir o sistema de câmbio fixo centrado no dólar, no começo dos anos 1970, a elite estadunidense manteve o compromisso implícito de garantir a funcionalidade do sistema global de pagamentos. Em momentos de stress, normalmente provocados pelos excessos em seus mercados ou por “choques exógenos”, agentes privados e governos recorrem ao dólar, seu porto seguro, e contam com a ação contracíclica do FED. Após a crise financeira de 2007-2009, o mundo testemunhou a maior expansão de ativos dos bancos centrais da história, sob a liderança da autoridade monetária dos EUA. Sem isso, o colapso das finanças globais seria quase inevitável.
Se o dólar é uma inequívoca fonte do poder estadunidense, sua posição depende da capacidade do país em atuar como “estabilizador hegemônico”, nos termos consagrados por Charles P. Kindleberger em seu “The World In Depression, 1919-1939”. Isso implica na manutenção de um sistema multilateral aberto, hígido e “confiável”. Ou, pelo menos, implicava.
No horizonte de seu retorno à presidência, Trump não dá margem a dúvidas sobre suas intenções e seus métodos. Pretende usar o “big stick” tarifário como a primeira linha de ataque para fazer a “América Grande Mais uma Vez”. Aliados tradicionais, parceiros comerciais e rivais estratégicos estão na sua mira. Para Trump, basta dosar os incentivos corretos para resolver problemas complexos como a imigração ilegal, o tráfico de drogas, o financiamento do guarda-chuva securitário da OTAN, as disputas pela fronteira tecnológicas, a expansão territorial e a manutenção da hegemonia do dólar.
Neste último tópico, o aviso foi dado em uma data simbólica, 11 de setembro de 2024, durante o único debate da campanha presidencial em que enfrentou a democrata Kamala Harris. Em meio às diatribes e promessas, Trump manifestou sua disposição em “punir” os países que deixarem de usar o dólar. Após a eleição, em 30 de novembro, voltou ao tema em sua rede social: “Exigimos um compromisso destes países de que não criarão uma nova moeda do BRICS, nem apoiarão qualquer outra moeda para substituir o poderoso dólar; caso contrário enfrentarão tarifas de 100% e dirão adeus às vendas para os maravilhosos EUA.”
As tarifas e as ameaças de Trump certamente não contribuem para que as grandes economias emergentes, particularmente as que estão em ascensão, se sintam confortáveis na teia de aranha global do dólar.
Desdolarização e a Armadilha de Tucídides
“O dólar é nosso, o problema é de vocês!”. Com essa frase, o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Connally, decretou o fim do padrão dólar-ouro na reunião do G-10, em Roma, em 1971. Nesse momento, ao redor de 75% da renda global e da produção de bens e serviços se concentravam nos EUA e em seus aliados. Atualmente, somente a China responde para 18% da renda e 25% da produção de bens manufaturados. Medido em paridade poder de compra, os BRICS já têm um peso econômico que rivaliza com o G7. De acordo com as mais recentes projeções do Goldman Sachs, banco de investimento que criou o acrônimo “BRIC”, em 2075, os países “avançados” deterão apenas 1/3 da renda global, um pouco menos do que os BRICS, sendo que o 1/3 restante adviria dos demais países emergentes e em desenvolvimento. Os EUA seriam a terceira maior economia, atrás de China e Índia.
É muito difícil supor que o dólar conseguirá ser a principal moeda para a realização e liquidação de contratos internacionais de comércio ou de transferência de direitos de propriedade nessa nova realidade. Sua posição tenderia a seguir relevante, mas não necessariamente dominante. Trump ameaça impor tarifas para enfrentar fantasmas de um futuro possível, mas que não reflete a dinâmica financeira recente.
No mais recente relatório direcionado ao Congresso dos EUA para temas de Economia e Segurança atinentes à China, um capítulo é dedicado aos esforços do Império do Meio em estruturar meios de controle e resiliência, como a ampliação nos estoques estratégicos de alimentos e matérias-primas estratégicas, e a construção de redes de infraestrutura e finanças que reduzam a exposição do país às eventuais medidas de contenção e/ou agressão externas vindas dos EUA. A internacionalização do RMB faria parte dessa estratégia. In verbis: “A China promove ativamente a internacionalização do RMB para reduzir a dependência do dólar. As autoridades chinesas são motivadas pelos benefícios econômicos e de segurança que adviriam do controle de uma moeda utilizada internacionalmente. A China está a tentar internacionalizar o RMB através do desenvolvimento de pools offshore de RMB e da liquidação do comércio bilateral em RMB.” (p. 477).
De fato, mais de ¼ do comércio exterior chinês já é liquidado em sua própria moeda. Em paralelo, ativos denominados em RBM sob propriedade de não residentes atingiram o montante de aproximadamente USD 1,5 trilhão (RMB 10 trilhões) no começo de 2024, um estoque que cresceu três vez em dez anos. Só que isso ainda é uma gota no oceano das finanças globais[2]. Nas estimativas do Congresso dos EUA, a participação do RMB nos pagamentos globais é de 3%, contra 44,4% do dólar; em termos de denominação de contratos de comércio, a diferença é de 4,8% para 84%; em reservas oficiais, de 2,5% para 58,9%; e nos mercados de dívida, de 0,7% para 47,9%. Há um Golias e um Davi nas finanças globais. E talvez essa seja a preocupação central de Trump, pois nem sempre o maior vence a batalha final.
No livro “A Armadilha de Tucídides”, o historiador Graham Allison, inspira-se na Guerra do Peloponeso e em outros momentos em que potências em ascensão ameaçaram o status quo, para avaliar as perspectivas das relações sino-estadunidenses. Na maioria dos eventos-chave analisados, a guerra predominou, tanto pela ação preventiva dos atores que se sentiam ameaçados pela perda relativa de poder, quanto pela iniciativa dos novos polos de poder. Em alguma medida, tal “guerra de contenção” já está em curso em áreas como comércio, tecnologia e finanças. E os primeiros tiros partiram de Washington, na medida em que seus líderes políticos e estrategistas perderam a confiança na tese de que o fim da Guerra Fria garantir um novo século “americano”.
A simples possibilidade de que haja outra distribuição dos fluxos e estoques de renda e de riqueza, de geração e controle das tecnologias-chave, de poder militar, de capacidade de projeção de valores e, assim, de outras perspectivas sobre a própria humanidade, causa desconforto do atual hegemon, cujas elites querem determinar, com exclusividade, os destinos do planeta.
China e os BRICS: uma alternativa real?
Há muito tempo se discute a criação de novos instrumentos capazes de reduzir o uso do dólar nas transações internacionais. A morte do Greenback foi anunciada muitas vezes. Substitutos em potencial, como iene, marco e euro, surgiram e se ofuscaram. Agora, o renminbi emerge no bojo do processo de ascensão da China à condição de potência global.
O Império do Meio já tem uma economia maior que a estadunidense, quando mensurada em dólares internacionais em paridade poder de compra. É o maior trader global e disputa o domínio das tecnologias de fronteira com os EUA. A moeda chinesa avança na rígida hierarquia global, mas ainda tem um papel limitado. Como parte de seu processo de internacionalização, Beijing vem construindo uma rede tão ampla quanto a dos EUA de acordos de swaps com sua moeda e a de parceiros. Seu sistema de pagamentos, o CIPS (Cross-border Interbank Payment System (CIPS), concorre com o SWIFT e já tem entre 1.300 e 1.500 participantes. Em 2023, contabilizou transações da ordem de US$ 4,8 trilhões. O país saiu na frente de outras grandes economias na criação de uma moeda digital estatal.
Tais desenvolvimentos ganharam particular força após a Guerra da Ucrânia, quando a Rússia experimentou o arsenal de sanções comerciais, bloqueios de ativos financeiros (inclusive reservas oficiais) e exclusão dos sistemas de pagamentos controlados pela elite financeira Ocidental, especialmente o SWIFT. O efeito-demonstração foi claro, não apenas para a China, como para outros países emergentes. Não à toa, as reuniões de Cúpula dos BRICS de 2023, em Joanesburgo, e 2024, em Kazan, testemunharam a ampliação do bloco e o avanço nas discussões sobre a criação da “moeda dos BRICS”.
No Departamento de Pesquisa do FMI, Jakree Koosakul e seus coautores produziram uma interessante análise sobre a fragmentação da economia global, constatando que elementos geopolíticos contribuem para ampliar o uso internacional de moedas como o RMB: “…num mundo mais fragmentado, as moedas alternativas poderiam desempenhar um maior papel nas transações transfronteiriças. Embora a velocidade de transição para tal reconfiguração seja incerta, a transição poderá ser acompanhada por volatilidade financeira, tornando a coordenação internacional mais importante para ajudar a prevenir e mitigar quaisquer potenciais efeitos adversos sobre o IMS e proteger a estabilidade econômica global.” (p. 17)
Trump não parece se preocupar com os riscos de volatilidade, mas com a possibilidade de o RMB ser bem-sucedido no mesmo jogo que levou o dólar ao topo da hierarquia do sistema monetário e financeiro global. Tentará impor a “coordenação internacional” pelo uso da força.
Resta saber se essa estratégia terá os efeitos desejados ou se acelerará a fragmentação global. Nesse caso, terá de lidar com o risco de que as águas turbulentas das finanças abasteçam ainda mais o moinho das alternativas que Trump deseja inviabilizar. Esse cenário nos remente ao comentário atribuído à Winston Churchill de que “… os americanos sempre farão a coisa certa depois de tentar todas as alternativas erradas.”. A eleição de Donald Trump e seus primeiros movimentos reverberam como um alerta de que o hegemon global insiste no caminho da experimentação disruptiva.
[1] Em estudo recente sobre os ciclos financeiros originados nos EUA, pesquisadores do FMI constataram que os estímulos originados no circuito Washington-Wall Street explicam 30% variação no crédito interno nas economias receptoras de capitais, 40% dos retornos do mercado de ações, 605 dos preços dos imóveis e 7% das taxas de juro e spreads de títulos governamentais locais. Ver: Eugenio M Cerutti e Stijn Claessens, “The Global Financial Cycle: Quantities versus Prices”, 2024.
[2] Entre 2023 e 2024, o estoque global de títulos de dívida era de US$ 150 bilhões (ver JP Morgan Guide to the Markets, Q4 2024), a capitalização do mercado acionário era de US$ 115 bilhões (SFMA Capital Markets Fact Book 2024) e o estoque de crédito bancário para o setor não-financeiro era de US$ 232 bilhões (BIS Data Portal), com um total desses três segmentos em US$ 497 bilhões.
André Moreira Cunha e Luiza Peruffo – professores na UFRGS
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