Trump e o Conclave: um ensaio de restauração do banido ‘jus exclusivae’?
por Celso de Mello
A notícia veiculada pelo UOL (“Conclave: o próximo grande objetivo político de Trump”, por Jamil Chade) , de que o governo de Donald Trump pretende influir (e até mesmo interferir diplomaticamente) no processo de escolha do novo Papa, se e quando a Sé Apostólica se tornar vacante , REVELA , por parte do novo Presidente americano, uma abusiva (e arrogante) pretensão que demonstra sua total ignorância da História pontifícia e do gravíssimo episódio histórico que motivou , em 1904 , a promulgação , pelo Papa Pio X, da Constituição Apostólica “Commissum Nobis” (“Confiado a Nós”).
Como TRUMP e a diplomacia americana deveriam saber , no Conclave de 1903 (foi o primeiro Conclave do século 20), o poderoso Imperador Francisco-José, governante do Império Austro-Húngaro, exerceu uma prerrogativa reivindicada por monarcas católicos europeus, denominada “jus exclusivae”(“direito de exclusão”), que lhes facultava vetar qualquer Cardeal escolhido, em conclave, para o Sumo Pontificado .
Em razão dessa pretensa prerrogativa imperial / real , Francisco-José fez saber aos Cardeais reunidos em conclave, por intermédio do Cardeal Jan Puzyna de Cracóvia, que êle se opunha à escolha , para a Cátedra de Pedro , do Cardeal Mariano Rampolla, que fora Secretário de Estado do Papa Leão XIII !
A despeito das veementes críticas cardinalícias a esse “veto imperial”, manifestadas pelos conclavistas, os Cardeais elegeram o Cardeal Giuseppe Sarto, Patriarca de Veneza, “qui sibi imposuit” o nome de Pio X !
Esse “jus exclusivae” foi exercido pela última vez em 1903, nunca mais tendo havido esse tipo de ostensiva ingerência externa nos Conclaves subsequentes , exceto em 1963, quando o ditador espanhol Francisco Franco atrevidamente esboçou objeção – totalmente repelida – à escolha do Cardeal Giovanni Battista Montini, Arcebispo de Milão , que foi eleito “Pontifex Maximus”, com o nome de Papa Paulo VI !

Importante ressaltar que Pio X, alguns meses após sua eleição, promulgou, em 20 de janeiro de 1904, a Constituição Apostólica “Commissum Nobis” (“Confiado a Nós”) , que expressamente proibiu, sob pena de excomunhão “latae sententiae”, vale dizer , excomunhão automática, independentemente de decisão formal, o exercício do “jus exclusivae”, vetando, em caráter absoluto, a possibilidade de qualquer interferência externa do poder secular no processo de escolha do Romano Pontífice.
A tentativa de querer interferir, política e diplomáticamente, nos rumos do processo eleitoral e de influenciar os Cardeais, seus grandes protagonistas, na escolha do próximo Romano Pontífice , em ocorrendo hipótese de “sede vacante” , SÓ PODE RESULTAR da arrogância desmedida de Trump (a “hybris” grega capaz de despertar a “ira dos Deuses”) e de sua inaceitável (e contraditória) pretensão de agir como verdadeiro “monarca presidencial” (ou inadmissível “imperator mundi”).
Em menos de 50 (cinquenta) dias no exercício da Chefia de Estado e de Governo dos EUA , o Presidente Donald Trump tem demonstrado, de modo inequívoco, por ações, gestos e declarações , (a) que desconhece a História (e que, por isso mesmo, está fadado a repetir-lhe os erros) , (b) que revela ultrajante menosprezo pela dignidade de Povos e grupos vulneráveis , (c) que transgride princípios fundamentais que moldaram as relações internacionais dos Estados modernos , como aqueles consagrados pelos importantes Tratados de Paz de Westfália, de 1648, (d) que desrespeita a Carta de São Francisco de 1945 (ONU), no ponto em que proclama a igualdade soberana dos Estados nacionais (Artigo 1, n. 2, e Artigo 2, n. 1) , (e) que descumpre o postulado básico da boa-fé e do respeito aos tratados e convenções internacionais (“pacta sunt servanda”), proclamado pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (Artigo 26), entre outros expressivos valores que iluminam e fortalecem o catálogo dos direitos e liberdades essenciais da pessoa humana !”
CELSO DE MELLO (Ministro aposentado e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, biênio 1997-1999)
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