Trump e a Desordem Ocidental

por Maria Luiza Falcão

O retorno de Donald Trump ao centro da cena política internacional, no início de 2025, reacendeu tensões históricas entre os Estados Unidos e seus aliados europeus, trazendo de volta uma agenda marcada pelo isolacionismo agressivo, pelo protecionismo econômico e por um desprezo deliberado pelas instituições multilaterais que sustentaram a ordem liberal internacional desde o pós-guerra.

Em meio às renegociações que ocorrem entre Washington e as capitais europeias, evidencia-se um projeto geopolítico profundamente revisionista por parte de Trump, cujo objetivo é não apenas reconfigurar os termos da relação transatlântica, mas também enfraquecer a própria ideia de coesão europeia — como ele já vinha sinalizando desde seu primeiro mandato, quando foi um dos únicos líderes ocidentais a apoiar abertamente o Brexit.

“Brexit será uma coisa maravilhosa”, disse Trump em 2016, poucos dias após o referendo britânico, celebrando o resultado como uma vitória da soberania nacional contra os “burocratas de Bruxelas”. Não se tratava apenas de solidariedade ideológica com os conservadores britânicos, mas da expressão de uma visão estratégica que enxerga a União Europeia não como aliada, mas como competidora. Trump entende a integração europeia como um entrave para a hegemonia americana e uma ameaça à sua ideia de “America First”. Ao saudar o Brexit, Trump não apenas incentivava o nacionalismo britânico, mas apostava na fragmentação do bloco europeu como forma de minar a capacidade da Europa de atuar como potência autônoma no cenário global.

Essa lógica se mantém — e se radicaliza — em 2025. As atuais negociações comerciais entre os EUA e a Europa estão marcadas por mais ameaças tarifárias, principalmente contra setores estratégicos como o automotivo e o agrícola. Trump busca impor à Europa termos que favoreçam os interesses da indústria americana, ignorando os marcos da Organização Mundial do Comércio (OMC) e ressuscitando práticas abertamente mercantilistas.

Em artigo nesse domingo (10 de junho) no New York Times de Jeanna Smialek, intitulado: A direita dos EUA detesta a UE. Como eles vão negociar o comércio? A jornalista observa que “O MAGA tem uma profunda aversão à União Europeia…Não é apenas o presidente Trump, que afirmou que a União Europeia foi formada para tirar vantagem dos Estados Unidos. Ou apenas o vice-presidente J.D. Vance, que alertou que a Europa estava se afastando de seus “valores fundamentais” durante um discurso em Munique este ano. O secretário de Defesa, Pete Hegseth,  em um bate-papo vazado no Signal, chamou os aliados continentais dos Estados Unidos de “patéticos”.”

As políticas ambientais da União Europeia, que seguem avançando com o Green Deal, também viraram alvo de ataques da Casa Branca, sob a acusação de que impõem barreiras “injustas” aos produtos americanos. “Eles [os europeus] querem nos forçar a comprar carros elétricos e turbinas eólicas, enquanto destroem nossos empregos”, afirmou Trump em um comício recente, desferindo críticas populistas contra as metas climáticas europeias.

Além da esfera econômica, Trump tem se mostrado cada vez mais hostil à OTAN, voltando a cobrar que os países europeus aumentem seus gastos militares sob pena de verem os EUA se retirarem de compromissos de defesa mútua. Trata-se de uma chantagem que desestabiliza a arquitetura de segurança do Ocidente quando a guerra na Ucrânia, que na verdade surgiu como uma guerra entre Estados Unidos/OTAN/Ucrânia contra a Rússia, ainda impõe riscos à estabilidade europeia. Em fevereiro, ele chegou a declarar que “os Estados Unidos não vão mais proteger países que não pagam a sua parte”. A dubiedade de Trump diante da Rússia de Vladimir Putin e sua hesitação em manter o apoio militar a Kiev têm gerado crescente desconfiança entre os europeus. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, alertou recentemente: “O que está em jogo não é apenas a segurança da Europa, mas a própria credibilidade do Ocidente”.

Enquanto isso, o desequilibrado Donald Trump continua aparecendo nos palanques. Não seria de surpreender que, diante de um impasse com a Alemanha ou a França, ele simplesmente “chicken out” — fugindo de compromissos, culpando os outros, e tuitando frases como “Let them defend themselves!” entre uma rodada de golfe e outra em Mar-a-Lago. Afinal, nada mais consistente com a diplomacia do improviso do que ameaçar abandonar a OTAN pela manhã, para depois, à tarde, se declarar “o maior defensor da paz na Europa desde Churchill” — com direito a aplausos ensaiados de apoiadores e um boné vermelho personalizado com os dizeres Make NATO Pay Again.

A reação do presidente estaduniense à pergunta de uma repórter esta semana, mostra que Trump não gosta quando lhe perguntam sobre “TACO” — a suposta sigla de Wall Street para “Trump Always Chickens Out” (Trump sempre se acovarda). Mas é a mais pura realidade.

Outro fator de atrito tem sido a crescente pressão americana para que a Europa rompa laços estratégicos com a China, principalmente nos setores de tecnologia e energia. Embora os países europeus compartilhem algumas preocupações com a ascensão chinesa, a abordagem de Trump — baseada em imposição e confronto — contrasta com a busca europeia por uma estratégia mais equilibrada, que preserve canais de cooperação comercial e diplomática com Pequim. “Não queremos ser arrastados para uma nova Guerra Fria”, disse Emmanuel Macron no Fórum de Davos, numa crítica velada à visão binária e conflitiva da política externa trumpista.

É nesse contexto que o papel de Trump deve ser interpretado com preocupação por analistas e governos do Sul Global, incluindo o Brasil. A desestabilização da ordem multilateral, a fragmentação dos mecanismos de governança global e a corrosão das instituições internacionais têm impactos diretos sobre a economia e a segurança global. O que se vê, na prática, é um esforço deliberado de Trump para enfraquecer a “solidariedade ocidental” — não em nome de uma nova multipolaridade, mas em nome de uma supremacia americana fundada na força bruta, na desconfiança e no unilateralismo.

Se na Europa cresce o temor de uma nova era de instabilidade transatlântica, no mundo também se reforça a percepção de que um eventual novo mandato de Trump consolidará um retrocesso civilizatório. Seu apoio ao Brexit foi apenas o prenúncio de um projeto maior: o desmonte das formas cooperativas de ação internacional. Frente a isso, cabe à imprensa crítica, aos acadêmicos e aos líderes democráticos denunciar essa agenda e construir alternativas que defendam a democracia, a justiça internacional e a solidariedade entre os povos. Como advertiu o historiador Timothy Snyder, “os autoritários vencem quando a confusão substitui a verdade, e quando o medo destrói a solidariedade”. E quando se escondem atrás de bravatas, memes e bonés ridículos.

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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Last Update: 02/06/2025