Petróleo, Poder e Pilhagem: Trump, a Venezuela e o Retorno Explícito do Imperialismo
por Maria Luiza Falcão Silva
Trump ordena bloqueio total a petroleiros da Venezuela. A desculpa é afastar Nicolas Maduro ou o pretexto de combater o narcotráfico. Finalmente admite que o interesse é o petróleo.
A declaração do presidente estadunidense segundo a qual o destacamento naval norte-americano no Caribe “apenas ficará maior” até que a Venezuela devolva “todo o petróleo, a terra e outros ativos que roubaram dos Estados Unidos” não é um deslize retórico nem uma bravata isolada. Trata-se de uma afirmação politicamente consciente, historicamente situada e profundamente reveladora de uma inflexão perigosa na ordem internacional.
Ao abandonar qualquer disfarce jurídico ou diplomático, Trump vocaliza uma concepção colonial de poder que muitos em Washington sempre praticaram, mas raramente enunciaram de forma tão crua.
A nacionalização de 1976
Não há, no direito internacional, qualquer base para essa reivindicação. O petróleo venezuelano sempre pertenceu ao Estado venezuelano, especialmente após a nacionalização de 1976, que criou a Petróleos de Venezuela, S.A. (PDVSA) com a função de concentrar a exploração, a produção, o refino e a comercialização do petróleo, que constitucionalmente pertence ao Estado venezuelano.
A criação da PDVSA marcou o rompimento com um modelo no qual grandes multinacionais estrangeiras, sobretudo norte-americanas, controlavam a principal riqueza do país em condições altamente favoráveis aos seus próprios interesses. Desde então, a empresa passou a simbolizar a soberania venezuelana sobre seus recursos naturais — razão pela qual se tornou alvo central de sanções econômicas, disputas políticas e tentativas externas de deslegitimação.
Não existe tratado, sentença, arbitragem ou precedente legal que permita aos Estados Unidos reivindicar recursos naturais de outro país soberano. A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) é explícita ao proibir a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial e os recursos de qualquer Estado. Logo, o que Trump anuncia não é um direito: é um delírio.
A falsa história: quando soberania vira “roubo”
A “base histórica” invocada por Trump não é jurídica, mas ideológica. Ela se ancora numa releitura imperial da história do petróleo na América Latina, segundo a qual períodos em que empresas estrangeiras — majoritariamente norte-americanas — exploravam recursos naturais em condições extremamente favoráveis passam a ser tratados como uma espécie de direito natural perpetuamente violado.
Durante boa parte do século XX, petroleiras dos Estados Unidos (EUA) operaram na Venezuela pagando royalties irrisórios e exercendo influência direta sobre decisões políticas internas. A nacionalização do petróleo, um ato soberano comum a diversos países produtores, é reescrita, nessa narrativa, como “expropriação”, “confisco” ou, no vocabulário trumpista, “roubo”. O que se apaga deliberadamente é o fato de que a soberania sobre recursos naturais é um princípio consagrado do sistema internacional desde o pós-guerra.
Essa inversão semântica é central: quando um país do Sul Global exerce soberania, ele “rouba”; quando o Norte explora, ele “investe”.
Doutrina Monroe revisitada: a América Latina como território disponível
A declaração de Trump reativa, sem mediações, a Doutrina Monroe em sua versão mais agressiva. Formulada em 1823, ela foi gradualmente transformada, ao longo do século XX, em um instrumento de legitimação da hegemonia dos Estados Unidos sobre a América Latina. O subtexto sempre foi claro: soberania plena só existe enquanto não contrariar interesses estratégicos de Washington.
Trump rompe com a retórica contemporânea de “parceria”, “cooperação” ou “defesa da democracia” e retorna à linguagem direta do poder imperial. Ao falar em “terra”, “petróleo” e “ativos”, ele recoloca a região no lugar de espaço disponível, passível de coerção militar e apropriação econômica. É uma linguagem pré-Westfália.
Os Tratados de Westfália, assinados em 1648, consagraram o princípio da soberania dos Estados e da igualdade jurídica entre eles. Antes disso, guerras eram travadas como disputas patrimoniais: territórios, terras e riquezas naturais eram tratados como espólios legítimos de conquista, e não como bens de nações soberanas. Trump resgata essa lógica arcaica, típica de guerras coloniais e de conquista, anterior à ideia moderna de soberania, na qual a força substitui o direito e a posse decorre do poder militar, não da legalidade internacional.
Sanções como arma de expropriação
Outro elemento central dessa engrenagem é o uso das sanções econômicas como instrumento de pilhagem indireta. O caso venezuelano é exemplar. Primeiro, estrangulam a economia, dificultam exportações, bloqueiam transações e reduzem drasticamente a capacidade do Estado de operar. Em seguida, o colapso resultante é atribuído exclusivamente ao “regime”. Por fim, ativos no exterior são congelados, confiscados ou transferidos, como ocorreu com a CITGO Petroleum Corporation empresa de refino, transporte e distribuição de combustíveis sediada nos Estados Unidos e historicamente controlada pela PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana.
Durante décadas, a CITGO funcionou como o principal braço da Venezuela no mercado norte-americano, permitindo acesso direto ao refino e à distribuição de petróleo pesado venezuelano. A partir das sanções impostas pelos Estados Unidos, o controle efetivo da empresa foi retirado da PDVSA e colocado sob administração vinculada à oposição venezuelana reconhecida por Washington, transformando a CITGO em um dos exemplos mais emblemáticos de como sanções econômicas passaram a operar como instrumento de expropriação de ativos de um Estado soberano no exterior.
Cria-se, assim, uma lógica perversa: a punição econômica passa a gerar, retrospectivamente, um suposto direito de propriedade. Trump apenas explicita o último passo dessa escalada ao sugerir que a coerção militar serviria para “recuperar” ativos que jamais pertenceram aos Estados Unidos enquanto Estado, mas a empresas privadas americanas e interesses geopolíticos específicos.
O precedente global: do Iraque à Líbia, agora sem verniz
Há paralelos evidentes com intervenções anteriores. No Iraque, a retórica das “armas de destruição em massa” ocultou uma guerra que reorganizou o controle sobre o petróleo. Na Líbia, a destruição do Estado abriu caminho para a fragmentação e para a disputa por recursos energéticos. A diferença, agora, é que Trump dispensa justificativas morais. Não fala em democracia, direitos humanos ou combate ao terrorismo. Fala em petróleo. Fala em terra. Fala em ativos.
Esse deslocamento é perigoso porque normaliza, no discurso público, a ideia de que a força militar pode substituir o direito internacional como mecanismo legítimo de acesso a recursos estratégicos.
O impacto regional: Caribe, América do Sul e o Brasil
Para a América do Sul, o sinal é alarmante. A militarização do Caribe amplia o risco de instabilidade regional, pressiona países vizinhos e reduz o espaço para soluções diplomáticas. Mais grave ainda, estabelece um precedente que pode ser aplicado a outros países ricos em recursos naturais, inclusive o Brasil.
O Brasil não é um ator neutro nesse tabuleiro. Detém grandes reservas de petróleo, minerais estratégicos, biodiversidade e água doce. A naturalização do discurso de Trump fragiliza o sistema internacional que, com todas as suas limitações, ainda oferece alguma proteção jurídica aos países periféricos. Quando a pilhagem volta a ser verbalizada como política legítima, o recado é claro: desenvolvimento, soberania e autonomia passam a ser tratados como obstáculos.
Uma advertência final
A frase de Trump não deve ser lida como um excesso retórico, mas como um sintoma. Ela revela um mundo no qual a hegemonia em declínio abandona regras que ela mesma ajudou a construir. Para economistas, diplomatas e formuladores de políticas no Sul Global, o alerta é inequívoco: a disputa por recursos estratégicos entrou numa fase mais aberta, mais bruta e menos regulada.
A defesa da soberania, da legalidade internacional e da integração regional deixa de ser apenas um ideal normativo e passa a ser uma necessidade estratégica.
Maria Luiza Falcão Silva – MSc em Economia (University of Wisconsin–Madison), PhD (Heriot-Watt University), Professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB), membro da ABED e do Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC/NEASIA).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN “