“Na terra magia ninguém matava, ninguém morria / Nas trincheiras da alegria / O que explodia era o amor…” – Festa do Interior, Moraes Moreira e Abel Silva
Numa noite em que o céu do Rio de Janeiro deveria ser riscado apenas pelas fagulhas coloridas das festas juninas, mais uma vez o Estado disparou sua mira contra a população negra e periférica. Herus Guimarães, office-boy, trabalhador, homem negro, foi morto durante uma operação policial em plena festa junina. Ele não era um alvo. Não tinha antecedentes. Tinha vida, rotinas, sonhos. E isso não impediu que fosse alvejado.
A explosão que rasgou o arraial não foi de um rojão, mas de tiros. E o que ardeu naquela noite não foi o coração aquecido pela dança ao redor da fogueira, mas a carne negra, tombada mais uma vez sob o peso do racismo estrutural — desta vez, mascarado de patrulhamento ostensivo.
Herus não morreu num confronto, foi assassinado por uma política de segurança pública que naturaliza a morte de corpos negros como efeito colateral aceitável. Sua morte, como tantas outras, não foi exceção: foi política de Estado.
Sim, os policiais foram afastados. Há exoneração envolvida. Mas quem exonera o sistema? Quem afasta o racismo do protocolo? Quem interdita a lógica da guerra permanente nas favelas?
Enquanto isso, o que sobra para as famílias negras é o dano existencial — esse conceito jurídico que se concretiza com dor e ausência: é a impossibilidade de viver a própria vida em plenitude, de planejar o futuro, de ser apenas filho, mãe, amigo, trabalhador. A morte de Herus rompeu com seu projeto de vida, com sua possibilidade de amar e ser amado, de construir, de permanecer.
E que não se diga que foi erro, acaso, tragédia: foi estrutura. A cada corpo que tomba, o Estado confirma que nossas vidas negras valem menos. A cada operação em festa, baile ou celebração, o Estado demonstra que a alegria negra também é considerada uma ameaça. Somos punidos por existir, por amar, por dançar.
“Segura as pontas do meu coração”, canta o verso de Moraes Moreira e Abel Silva. Mas quem segura o coração da mãe de Hermes? Quem segura o coração dos vizinhos, das crianças que viram a festa virar cena de guerra? Quem segura o coração da comunidade quando a pólvora toma o lugar do milho assado?
O medo se torna cotidiano, e o cotidiano se torna trincheira. O que deveria ser território de riso vira campo de batalha. E nessas trincheiras, o que explode não é amor — é bala.
No sincretismo que sustenta e embala nossa resistência, São João é também Xangô. E Xangô é justiça. É o trovão que ruge diante da injustiça, é o machado que corta os laços da impunidade. Que a fogueira de São João se erga como símbolo de vida, e não de luto. Que os raios de Xangô protejam essa gente que não pode mais festejar a peleja da vida. Que a festa volte a ser festa — e não cena de execução. Que o oráculo da justiça, nesse terreiro chamado Brasil, não se cale diante da dor do nosso povo.
E nós, mulheres negras, feministas, mães, companheiras, juristas, gritamos: basta.
Não aceitaremos que a “ordem pública” seja sinônimo de genocídio. Não aceitaremos que os afastamentos administrativos sejam tratados como justiça. Não aceitaremos a naturalização da morte negra em nome de uma paz que nunca nos foi oferecida.
Enquanto nos tentarem calar com estatísticas, nós responderemos com nomes. E Herus Guimarães será lembrado, não como número, mas como vida. Uma vida ceifada pelo braço armado do Estado — esse que diz nos proteger, mas nos extermina.
Que as estrelas de São João iluminem agora não só os arraiais, mas as consciências. Que os fogos não sejam confundidos com tiros. E que possamos, um dia, cantar:
“Na terra magia ninguém matava, ninguém morria …”
Até lá, seguiremos em marcha — com poesia, com direito, com dor, com Xangô e com coragem — para que a alegria volte a ser território nosso.