Há sempre um lápis ou um pincel antes do grito.
E há sempre uma escola, feita com o gesto de muitas mãos, antes daquilo que virá a se chamar revolução. Uma escola com cheiro de tinta, papel barato e poeira de giz. E, se formos justos, também com cheiro de rua, de greve, de cartaz colado com cola de farinha. Escola onde ninguém sabe tudo, mas todo mundo tem algo a dizer. A revolução não começa no fuzil — ela começa na aula. E, de vez em quando, ela ganha nome próprio: Bauhaus. Vkhutemas. Escola Guignard.
Três escolas. Três experiências. Três tempos. Mas todas atravessadas por um mesmo verbo — esse que não cabe nos dicionários nem nos decretos: revolucionar.
A Bauhaus nasceu em 1919, ano de esperanças e derrotas. Rosa Luxemburgo havia sido jogada no canal de Landwehr, e a Revolução alemã se via derrotada, afogada em sangue. Mas ali, em Weimar, Walter Gropius assinava um manifesto que dizia “Desejemos, imaginemos, criemos juntos a nova construção do futuro, que juntará tudo numa única forma: arquitetura, escultura e pintura que, feita por milhões de mãos de artesãos, se elevará um dia aos céus”. Naquele texto, entre utopia e sobriedade, estava a promessa de um outro mundo que começava pelas coisas — pelas cadeiras, pelas janelas, pelos tecidos. A revolução, então, virava método, composição, planta baixa.
“Arquitetos, escultores, pintores, todos devemos retornar ao artesanato”, dizia Gropius — e com isso ele colocava o pintor ao lado do pedreiro, o gravador junto do encanador. Os ateliês da Bauhaus pareciam fábricas, e talvez fossem mesmo. Não se ensinava a desenhar para galeria, mas para a vida.
É por isso que a Bauhaus assustava. O Partido Nazista entendeu cedo demais que não se tratava de “arte moderna”, mas de arte comunista. “Degenerada”, eles chamaram, em 1933, os nazistas fecharam as portas da escola — mas não do seu sonho. Porque a Bauhaus, como toda escola que ousa ensinar liberdade, era um movimento, não um endereço.
De Moscou, pouco tempo depois, outro edifício surgia. Chamava-se Vkhutemas: oficinas de arte e técnica, fundadas em 1920 pela Revolução Russa. Ali, o desenho era militante, o ângulo, a sombra, a textura — tudo devia servir ao povo. Os artistas não podiam se contentar com formas belas: tinham que ser úteis, transformadoras, acessíveis.
Nadezhda Krupiskaya, pedagoga, bolchevique, dizia com clareza: “a cultura é um campo de batalha e a educação, sua principal trincheira”. E na Vkhutemas, essa trincheira se armava com esquadros e compasso.
As mulheres, na Vkhutemas, não estavam na borda — estavam no centro. Nomes como Lidia Maksimova e Nadezhda Bykova arquitetas de linhas precisas e revolucionárias, mostravam que o futuro também era delas. Não havia separação entre forma e conteúdo, nem entre gênero e criação.
O sonho era imenso. Era uma cidade soviética toda refeita por novas mãos. Mas como toda utopia incomada, principalmente a burocracia que pouco a pouco substituía a classe operária no poder. A Vkhutemas foi fechada em 1930, a burocracia venceu. O realismo socialista, com suas molduras rígidas, sepultou o projeto.
Mas o eco não morreu, porque a Vkhutemas ensinou que a arte pode ser projeto político e que o artista pode ser operário do futuro.
E então, do outro lado do mundo, entre montanhas e esperanças, nasceu outra escola: a Escola Guignard. Inaugurada em 1944, em plena ditadura Vargas, no meio do Parque Municipal de Belo Horizonte, a escola veio como desacato, não tinha grades nem portões, era pura janela para o amanhã.
Guignard, o indivíduo de mão firme e traços fortes, acreditava numa escola sem muros. Cada aluno era também mestre. A cidade era também ateliê e a arte, uma espécie de tradução poética da liberdade.
A Guignard nunca se quis neutra. Estava onde o povo estava. Quando veio o golpe de 64, um de seus alunos, Guido Rocha, dirigente da Polop (organização de esquerda revolucionária), diagramava o jornal O PIQUETE e junto com a estudante secundarista Dilma Rousseff entregava clandestinamente entre os operários da Cidade Industrial na RMBH. Mas uma vez o traço resistiu, a tinta resistiu, a escola resistiu.
Como escreveu Paulo Freire: “A escola é, sobretudo, gente. Gente que trabalha, que estuda, que se alegra, que se conhece, que se estima”. A Escola Guignard entendeu isso — e por isso sobreviveu. Porque era feita de gente, não de grades.
Três escolas. Uma só insistência. Elas não foram apenas centros de ensino, mas trincheiras utopias concretas. Não se limitaram a formar artistas, mas a forjar mundos. Foram revoluções pedagógicas — e, portanto, políticas.
Porque, continuando com Freire, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção”. E essas escolas produziram possibilidade. Possibilidade de mundo, de cor, de gesto, de liberdade.
Duas delas — Bauhaus e Vkhutemas — não existem mais. Foram fechadas por regimes que temiam o que elas ensinavam. Mas a Escola Guignard, apesar dos golpes, das ameaças e dos cortes, ainda resiste. Com seu prédio nas Mangabeiras, seus corredores atravessados de vento -muitas vezes gelado- e sua comunidade que insiste em preenche-los de calor humano, aprendizados e ensinamentos: Ela resiste, resistiu aos ataques do passado e resisti aos atuais e com toda fé no futuro resistirá aos ataques que ainda virão.
Há quem pense que uma escola de arte é só estética. Mas quem já segurou um lápis em meio à greve sabe: a estética também é política, e às vezes, mais que tudo, é estandarte, faixa e lambe-lambes
Se a burguesia soubesse o que se aprende quando se aprende junto, ordenaria seus capachos, fantasiados de governantes, a fechar todas as escolas. Mas não podem. Porque a escola, essa que revoluciona, é feita de gente. E a gente, quando aprende junto, aprende também sobre coragem, sonhos, lutas, ousadia e as vezes sobre tentar vencer.
Pablo Henrique é Bacharel em artes plásticas e diretor da Fenametro