“Acabou o conflito de terra em São Paulo”, anunciou o governador Tarcísio de Freitas, durante um evento no Palácio dos Bandeirantes, na quinta-feira 20, com representantes do agronegócio, entre eles a senadora Tereza Cristina, ex-ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do governo Jair Bolsonaro. De olho no apoio dos ruralistas para as eleições de 2026, Freitas anunciou um novo pacote de benefícios para o setor: destinou 161,2 milhões de reais do programa Nosso Agro Tem Força para investir em projetos de agrologística, com a recuperação de mil quilômetros de rodovias, e para a aquisição de maquinário agrícola em 51 municípios. Vangloriou-se ainda de ter regularizado “mais de 200 mil hectares” de terras em dois anos, afirmando ter colocado fim aos históricos conflitos no campo, especialmente na região do Pontal do Paranapanema.

O governador talvez padeça de lapsos de memória. Ao alardear o “fim dos conflitos no campo”, deve ter se esquecido do recente ataque a tiros no Assentamento Olga Benário, em Tremembé (SP), que resultou na morte de dois militantes sem-terra em janeiro. Segundo investigações conduzidas pela Polícia Civil, os assentados estavam sendo pressionados a permitir a ocupação ilegal de um lote deixado por uma família. Segundo lideranças do MST, desde que Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas começaram a entregar títulos de propriedade aos assentados na região do Vale do Paraíba, eles têm sofrido assédio constante para vender suas terras a grandes fazendeiros ou empresários interessados em abrir condomínios residenciais. Este era, por sinal, o objetivo do bando que atacou os sem-terra na primeira semana do ano: subdividir o lote e comercializar os terrenos para a construção de casas.

Com a venda de terras devolutas a preços módicos, o governador legalizou 50,2 mil hectares de médias e grandes propriedades

A superintendente regional do Incra em São Paulo, Sabrina Diniz Nepomuceno, alerta que a titulação permite ao Estado abrir mão de suas obrigações com os assentados e ainda os deixa vulneráveis à pressão do latifúndio. “Ao entregar o título de propriedade, o governo exime-se da responsabilidade de oferecer assistência técnica e dar condições para esse agricultor trabalhar na terra. É uma cilada”, explica. O correto, com base nas diretrizes do Plano Nacional de Reforma Agrária, seria conceder um “termo de permissão de uso”, explica. Com isso, o assentado tem a posse e pode cultivar a terra, mas a propriedade continua nas mãos do Estado. “Na prática, a titulação permite que esse terreno seja vendido para terceiros.”

A entrega de títulos de propriedade a assentados e quilombolas é, contudo, apenas a ponta da política de regularização fundiária de Tarcísio de Freitas. Nos últimos dois anos, o governo paulista regularizou 16 mil hectares em assentamentos, mas também legalizou ocupações irregulares em 50,2 mil hectares de “médias e grandes propriedades rurais”, segundo a Fundação Instituto de Terras de São Paulo (Itesp). Isso foi possível graças à Lei Estadual nº 17.557, que autorizou o governador a vender terras devolutas no estado. Em outras palavras, essas grandes áreas públicas, que deveriam ser destinadas prioritariamente à reforma agrária, estão sendo vendidas a preços módicos, até 10% do valor de mercado, para quem as ocupa indevidamente.

No ano passado, Freitas também conseguiu aprovar na Assembleia Legislativa a Lei nº 1.589/2023, que estende o prazo para o Estado fechar negócios com grandes fazendeiros até 2026. De acordo com a assessoria de comunicação da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, boa parte dessas áreas foi ocupada há mais de cem anos: “O que o governo está fazendo é dar segurança jurídica aos produtores rurais”.

Lobby. Um representante do governo chamou agricultores para negociar com usineiros – Imagem: iStockphoto

De fato, o processo de grilagem de terras na região do Pontal do Paranapanema teve início na segunda metade do século XIX, quando os primeiros posseiros invadiram glebas pertencentes ao Império brasileiro e se estabeleceram na área. Agora, o governo paulista oferece uma oportunidade para os herdeiros deles regularizarem a situação dos imóveis. As medidas também beneficiam quem adquiriu terras com base na fé pública de escrituras registradas há mais de cem anos. Segundo o Itesp, ainda restam 300 mil hectares em processo de regularização para “pequenas, médias e grandes propriedades rurais”. Para assentamentos, são 153 mil hectares. “Com essa lei, o governador colocou todos no mesmo balaio, assentados e grileiros”, lamenta Nepomuceno, a superintendente regional do Incra.

Gilmar Mauro, da coordenação nacional do MST, afirma que o movimento já ingressou na Justiça para questionar a constitucionalidade da lei paulista. A ADI nº 7.326 está sob relatoria de Cármen Lúcia no Supremo Tribunal Federal, mas ainda não há previsão de quando o tema será levado a plenário. “Enquanto o assunto não é resolvido, Freitas passa a boiada”, observa o advogado Nílcio Costa, assessor jurídico do MST. “Essas áreas poderiam ser usadas para reflorestar o Pontal do Paranapanema, recuperar as margens dos rios, mas o governador destinou o patrimônio público a fazendeiros que se beneficiaram da grilagem”, lamenta Mauro.

Não bastasse, os assentados também estão sendo assediados por representantes do governo paulista para arrendar suas terras a usinas de cana-de-açúcar. “Eles chamam isso de ‘parceria’, porque é proibido arrendar terra de assentamentos, mas, na prática, funciona da mesma forma”, afirma Nepomuceno, que recebeu mensagens de agricultores indignados com a proposta. Uma reunião realizada no município de Sandovalina, no Pontal do Paranapanema, foi convocada pelo chefe de gabinete do Itesp, Lucas ­Bressanin, e contou com a participação de um representante de uma usina da região. Na ocasião, os assentados receberam a proposta de uma “parceria”, segundo a qual 70% dos lotes seriam destinados ao cultivo de cana para abastecer a empresa, e apenas o restante ficaria disponível para o agricultor plantar o que desejasse.

Assentados estão sendo assediados para arrendar suas terras para usinas de cana-de-açúcar

Presente nessa reunião, o produtor de leite Marcos Libório de Oliveira afirma que em nenhum momento eles foram claros sobre quanto os pequenos agricultores receberiam nessa parceria. “Disseram que o contrato seria de 12 anos e a usina teria o direito de estender por mais dois anos se quisesse, sem que nós pudéssemos contestar”, relata. Depois de muita insistência, Oliveira conseguiu uma estimativa de valores, “mas nada oficial”. O representante da usina disse que a empresa estaria disposta a pagar, no máximo, 4 mil reais por alqueire arrendado ao ano. Um alqueire paulista equivale a 24.400 metros quadrados. Os sítios dos assentados em Sandovalina têm, em média, 6 alqueires. “Fiz as contas, e isso não chega a um salário mínimo por mês. Não tem vantagem para o agricultor e ainda destrói outras plantações, porque a cana devasta tudo por onde passa.”

O agricultor Renner Dias Moreira também participou do encontro e chegou a levar algumas abóboras, pensando que se tratava de uma parceria com a indústria de alimentos, não com os usineiros. Segundo ele, a produção açucareira traz impactos negativos para a vizinhança. A pulverização aérea de agrotóxicos atinge outras plantações e, muitas vezes, impede que pequenos produtores desenvolvam produções agroecológicas ou orgânicas. “A indústria da seda, que trazia muitos benefícios, abandonou a região porque o veneno mata o bicho-da-seda. Os sericicultores estão sem fonte de renda devido ao impacto da cana”, denuncia. A ideia de uma parceria com grandes indústrias seria bem-vinda se os agricultores tivessem autonomia sobre suas terras e pudessem produzir com menos impacto ambiental. No entanto, a proposta de ceder terrenos para o cultivo de cana foi rejeitada de tal forma que as reuniões previstas para outros municípios foram canceladas. “Ninguém assinou a carta de intenção”, diz Oliveira. •

Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Trator eleitoral’

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Last Update: 26/02/2025