Trump e aliados trataram a morte como combustível, culpando a esquerda radical sem provas e pavimentando terreno para narrativas autoritárias
A violência política é uma chaga aberta na sociedade norte-americana. A morte de Charlie Kirk, um ativista conservador conhecido por sua retórica inflamada e divisiva, é, antes de tudo, uma tragédia humana. É o fracasso último do diálogo, o ponto final mais sombrio em um debate que deveria ser travado com ideias, e não com armas. Em uma sociedade minimamente saudável, um evento desses serviria como um momento de pausa coletiva, de luto e de uma reflexão profunda sobre os rumos do país.
Não foi o que aconteceu. Como era de se esperar de uma máquina política que há anos se alimenta do ódio e da polarização, a extrema-direita norte-americana, capitaneada por sua figura máxima, Donald Trump, não perdeu um segundo sequer. Antes mesmo que o corpo esfriasse, antes de qualquer investigação, antes de um pingo de respeito pela vida perdida, a tragédia foi sequestrada, embalada e transformada em munição bruta para a guerra cultural que eles mesmos alimentam.
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O episódio revela, de forma cristalina e assustadora, o modus operandi da nova extrema-direita: a exploração cinica do sofrimento para avançar uma agenda autoritária. As declarações de figuras como Elon Musk, classificando a esquerda como o “partido do assassinato”, não são apenas hiperbólicas; são calculadas. É a estratégia do strawman levada ao paroxismo: criar uma caricatura monstruosa do oponente político para justificar qualquer medida, por mais extrema que seja, contra ele.
A reação de Trump, no entanto, vai além do oportunismo. É a peça central de um projeto de poder. Ao atribuir imediatamente a autoria moral à “esquerda radical”, sem uma única prova, o ex-presidente fez exatamente o que especialistas como Steven Levitsky, de Harvard, temiam: puxou o gatilho de uma narrativa perigosa que tem, como único objetivo, a repressão. Suas palavras não buscaram acalmar, unir ou refletir. Elas foram projetadas para incendiar, dividir e, crucualmente, preparar o terreno para a próxima escalada.
A comparação deliberada e repetida com o Incêndio do Reichstag não é um acidente retórico. É um manual aberto. Matt Forney e outros ideólogos da direita sabem exatamente o que estão invocando: o momento em que os nazistas, após culparem os comunistas por um crime, usaram o pânico justificado para suspender liberdades civis, prender opositores e desmontar a frágil democracia de Weimar. Ao gritarem “Reichstag”, eles não estão fazendo uma análise histórica; estão anunciando suas intenções. Estão dizendo, a plenos pulmões, que desejam usar a morte de Kirk como pretexto para “uma repressão total”, para prender políticos de oposição e banir um partido rival.
É aqui que o perigo deixa de ser teórico. Trump já demonstrou, em seu primeiro mandato, um profundo desprezo pelas normas democráticas. Agora, com o poder executivo ampliado e um partido republicano completamente subjugado à sua persona, ele tem os instrumentos para transformar essa retórica em ação. A ameaça de “tropas nas ruas”, alertada por Levitsky, não é um delírio paranoico. É uma extrapolação lógica das ações passadas de um presidente que já usou forças federais de forma ostensiva e ilegal contra manifestantes.
É fundamental, contudo, não cair na armadilha da falsa equivalência. A chamada para a moderação de ambos os lados, embora bem-intencionada, muitas vezes ignora a assimetria fundamental do momento. Sim, existem vozes marginalizadas e condenáveis à esquerda que celebram a violência, e devem ser veementemente rejeitadas. Mas não há equivalência de poder, de plataforma ou de intenção estratégica. De um lado, há indivíduos isolados nas redes sociais. Do outro, há um ex-presidente, o partido majoritário no Congresso, magnatas da mídia e uma máquina de comunicação integrada que coordena, em uníssono, uma narrativa que visa explicitamente a deslegitimação total da oposição e o esvaziamento das instituições democráticas.
A morte de Charlie Kirk é trágica. Mas a resposta da extrema-direita à sua morte é uma ameaça existencial à democracia dos Estados Unidos. Eles não choram a perda de uma vida; celebram a aquisição de um novo martelo para desferir golpes contra o próprio alicerce do sistema político. Em vez de um momento de união, estamos testemunhando um ensaio aberto para o autoritarismo, onde o luto é um luxo que não podem ter, pois há muito trabalho a ser feito na construção do inimigo interno.
A esperança, tênue, reside na capacidade de resistência das instituições que ainda permanecem de pé e no discernimento de uma população que, cansada da violência, pode finalmente enxergar o jogo cínico que se desenrola. A tragédia de Kirk não precisa ser o Reichstag americano. Pode ser o momento em que a sociedade, horrorizada com a instrumentalização do ódio, decide dizer “basta” e escolhe, mais uma vez, a difícil e desgastada, porém vital, estrada da democracia. O abismo está à vista, e apenas uma rejeição coletiva e firme dessa lógica de guerra civil impedirá a queda.