Trabalho Social na Política Urbana: Entre a Resistência e a Mercantilização da Cidade
por Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz, Rosangela Dias Oliveira da Paz, Nuria Pardillos e Ivaloo Giorge Gusmão
Em meio à captura das políticas públicas pelo capital, o trabalho social resiste como prática de fortalecimento da cidadania nos territórios periféricos
Nunca se falou tanto em trabalho social como nos tempos atuais. Tem-se ouvido falar de trabalho social nas políticas públicas, nos programas sociais, nos discursos institucionais e por meio das vozes populares. E, muitas vezes, sob a defesa desse trabalho social, o que se tem são definições equivocadas, uma redução do seu significado, uma prescrição fragmentada e moldada em “caixinhas” sobre o que fazer. Tão longe do trabalho social como foi defendido arduamente quando pudemos participar da construção das políticas habitacional e urbana.
Se considerarmos especificamente as políticas habitacionais, estamos diante de uma questão fundamental: afinal, o que é trabalho social? O que se espera do trabalho social? A direção político pedagógica do trabalho social é elemento em disputa? O desafio de desfazer equívocos e construir respostas a essas indagações precisa ser buscado nos territórios da vida cotidiana. Por isso, afirmamos que ele pode estar tão perto e tão longe.
Espera-se do trabalho social contribuições importantes para o acesso aos direitos. Afinal, estamos falando de um trabalho que possui conteúdos profissionais relevantes nesse sentido, que impulsionam processos de fortalecimento da cidadania, de uma consciência de direitos e por uma melhor qualidade de vida nas cidades através do acesso aos serviços públicos. É importante lembrar que são várias as profissões que afirmam desenvolver o trabalho social nas políticas habitacionais. O que é verdade! Mas, não se pode silenciar sobre as contribuições e sobre o significado que é dado ao trabalho social por profissionais do Serviço Social, assistentes sociais, que participaram ativamente do reconhecimento do trabalho social como parte constitutiva e indissociável das políticas habitacionais. Uma luta política de décadas, travada em aliança com os movimentos sociais.
A urbanização brasileira e a disputa pela terra
Luta essa que não deixou de evidenciar o processo de urbanização brasileiro, que ocorreu marcado por silêncios e ausências às expectativas de trabalhadores e trabalhadoras, chamados a construir a cidade e que receberam em troca alternativas precárias de morar e viver nessas mesmas cidades. A disputa pela terra, pelo espaço urbano é elemento constitutivo dessa nossa sociedade.
O mercado imobiliário, hoje representado não só pelo capital de empreiteiras, construtoras e incorporadoras, mas fundamentalmente pelo capital financeiro, disputa a terra urbana com ainda maior ferocidade, gerando remoções em massa de territórios ocupados pelos segmentos mais pauperizados; não sem resistência popular, como demonstra a rede Despejo Zero, que cresce nacionalmente desde a pandemia e que vem agregando mais e mais movimentos, organizações sociais de defesa de direitos e profissionais.
Estamos em um contexto muito custoso para os direitos humanos. Nas cidades, agentes de mercado têm avançado na captura das políticas públicas, seja pela privatização da gestão e terceirização da oferta dos serviços, seja pela incorporação da lógica de mercado na própria organização do Estado. A precarização e deterioração da oferta de serviços públicos precede, em muitos casos, a privatização das políticas sociais. Mais que isso: serviços públicos, equipamentos, espaços públicos – como praças, parques, estradas… – uma vez mercadorizados, tornam-se novos nichos de rentabilidade para capitais privados. Isso reforça as desigualdades e a segregação social de amplas parcelas de trabalhadores e trabalhadoras.
A onda conservadora, conjugada à estrutura racista da nossa sociedade, está presente em todos os territórios da cidade. Nos territórios periféricos, de maioria negra, resiste um processo de convivência heterogênea, perpassado pela desigualdade social, falta de acesso a serviços urbanos e sociais, com repressão de agentes de Estado e escassas políticas públicas. Compreender os sujeitos coletivos em disputa nesses territórios e a convivência, nem sempre pacífica entre eles, é tarefa complexa que precisa partir do reconhecimento da capacidade de seus moradores para lidar com as contradições e elaborar mecanismos de sobrevivência coletiva.
Também nesses territórios periféricos vão se construindo manifestações de resistência e sujeitos coletivos que compreendem, fazem e se posicionam politicamente de maneiras novas, fora dos padrões da era moderna que pressupunha partidos e sindicatos como mediadores. Sujeitos coletivos que evocam a cultura como forma de construção de identidades fortes e ativas e que reafirmam que não há transformação sem intersecções entre raça, classe, gênero, sexualidade e território.
Possivelmente, não se trata mais de reivindicações relacionadas à inclusão dos territórios periféricos na moderna e instável contemporaneidade, após anos de segregação, desigualdades, violência e dificuldades de acesso a serviços e infraestrutura urbana, mas da tentativa de construção autônoma de alternativas para o bem viver, que coletivamente ensaiam outras possibilidades de lidar com as diversas violências cotidianas.
Nesse mesmo universo, a precarização do mundo do trabalho e os atrativos e modernos mercados de consumo se expandem pelas periferias das cidades. Importante lembrar que as periferias também refletem as ambiguidades dos modos de vida, formal e informal, legal ou ilegal, que perpassa o conjunto da sociedade brasileira, incluindo as instituições públicas.
Como tudo que viabiliza a vida nos grandes centros urbanos é mercadoria, não há como trabalhadores e trabalhadoras sobreviverem num mundo sem trabalho. A “sevirologia”, a capacidade de “se virar com o que se tem” como definia o mestre José Soró, referência de luta e resistência periférica, é, ao mesmo tempo, reconhecimento da capacidade inventiva e combativa das periferias e denúncia de um mundo do trabalho fragmentado, que atualiza formas violentas e arcaicas de superexploração do/da trabalhador/a e controla o tempo de vida 24 horas por dia, 7 dias da semana. É dentro desse universo complexo que precisamos pensar o trabalho social e a/o trabalhador/a social, na condição de trabalhador/a e exercendo sua cidadania ativa nas lutas sociais.
Trabalho social na política urbana habitacional
São muitas as exigências para o trabalho social na política urbana habitacional. Com o status de trabalho e, portanto, realizado por profissionais assalariados, o trabalho social afirma-se sob condições históricas e políticas e opera a partir de conhecimentos sobre a realidade social e de um exercício cotidiano processual. A realização do trabalho social nos diferentes programas habitacionais deve resultar da escuta do que os sujeitos sociais vivenciam cotidianamente nos territórios de vida, e do diálogo permanente, que resultará em escolhas de intervenções que sempre terão um componente político. A participação social, ativa e crítica, é parte indissociável do trabalho social desenvolvido na política habitacional.
E mais ainda! Nas alianças estabelecidas com movimentos sociais se materializam compromissos éticos e políticos e reforçam que as referências do trabalho social estão no enfrentamento das desigualdades, das diferentes expressões dos racismos, das opressões das mulheres e de grupos minoritários, sem deixar de dialogar democraticamente com as respostas institucionais.
O território e as dinâmicas socioterritoriais constituem o chão da política urbana e habitacional. Esse é o lócus privilegiado de atuação do trabalho social, territórios de vida da população e de suas relações, territórios de disputa pela terra e pelo valor produzido nas cidades, territórios de sobrevivência, resistência e de luta coletiva pelo direito à cidade e à moradia. A leitura e análise de um território pressupõe conhecer as trajetórias de vida e da história de formação do território, as relações e dinâmicas sociais, suas contradições, os sofrimentos e anseios, as necessidades, iniciativas e experiências de sobrevivência e resistência dos (as) trabalhadores (as) urbanos e rurais, dos negros, mulheres, jovens, pessoas com deficiências, pessoas LGBTQIAPN+, indígenas, ribeirinhos e quilombolas.
Defendemos que o Trabalho Social na política habitacional e urbana precisa, necessariamente, priorizar a perspectiva coletiva, a participação social e organização política dos moradores e dos envolvidos nas intervenções públicas, como parte do enfrentamento às desigualdades sociais. Não estamos falando de participação instrumental, que em muitos projetos busca apenas a validação das proposições e intervenções públicas. Falamos de uma direção emancipatória, onde a participação busca desenvolver o sentido de coletividade, de solidariedade, de construção de uma sociabilidade coletiva, que fortaleça organizações autônomas da sociedade civil.
O trabalho social na política habitacional pode estar tão perto e tão longe dos propósitos que defendemos aqui. Afirmamos: o trabalho social, em aliança com movimentos sociais, deve estar comprometido com o projeto de sociedade igualitária e cidades mais justas. Nossa direção profissional e política precisa estar na contramão do modelo de privatização e mercadorização dos serviços e das políticas públicas.
Precisamos nos somar na contracorrente da fragmentação das políticas públicas e do trabalho social, que ignora os processos com foco apenas em resultados imediatos. A população e suas organizações devem estar no centro das decisões das políticas urbanas e na construção de outras e novas alternativas coletivas para as cidades.
Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz é assistente social, doutora em Serviço Social, professora do Programa de Pos Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Unifesp-Baixada Santista, integrante do Fórum de Trabalho Social em Habitação de São Paulo e colaborada da Rede BrCidades.
Rosangela Dias Oliveira da Paz é assistente social, doutora em Serviço Social, professora do Programa de Pós Graduação em Serviço Social da PUC-SP, coordenadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais (Nemos/PUCSP) e integrante do Fórum de Trabalho Social em Habitação de São Paulo.
Nuria Pardillos é assistente social, doutora em Serviço Social e pesquisadora no Programa de Pós Graduação em Serviço Social da PUC-SP e integrante do Fórum de Trabalho Social em Habitação de São Paulo.
Ivaloo Giorge Gusmão é assistente social, doutora em Serviço Social, professora na FAPSS-SC e na USF, assessora de trabalho social na Marandu e integrante do Fórum de Trabalho Social em Habitação de São Paulo.
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