Thomas Müntzer e a Guerra dos Camponeses Alemães
por Jenny Farrell
Praticamente desconhecido na narrativa ocidental, o radical teólogo, pregador e revolucionário alemão Thomas Müntzer (c. 1489-1525) tornou-se uma das figuras mais incendiárias do início da Reforma. Embora Martinho Lutero seja universalmente lembrado como o pai do protestantismo, ele procurou reformar a Igreja dentro dos limites da autoridade feudal. Müntzer imaginou uma revolução social completa, o que o tornou um precursor do pensamento comunista posterior. Sua liderança na Guerra dos Camponeses Alemães (1524-1525) e seu afastamento teológico de Lutero refletem a mistura volátil de fermentação teológica e social que definiu a Europa do início do século XVI.
O Sacro Império Romano-Germânico no início dos anos 1500 era uma colcha de retalhos de territórios semiautônomos. A maioria da população era composta de camponeses, sobrecarregados por pesados impostos, obrigações feudais e a autoridade arbitrária dos governantes locais. Enquanto isso, a Igreja exercia um imenso poder, tanto teológico quanto econômico. Em toda a Europa, a tradução da Bíblia para o vernáculo provocou revoltas, pois os camponeses começaram a entender que todos os seres humanos eram iguais. Exemplos anteriores são a revolta liderada por John Ball e Wat Tyler na Inglaterra (1381), ou as Guerras Hussitas na Boêmia (1419-1436).
Assim, as correntes renascentistas e humanistas já haviam começado a desafiar as visões de mundo medievais. Nesse cenário, as 95 Teses de Martinho Lutero (1517) eletrizaram a Europa, denunciando a corrupção da Igreja e pedindo um retorno às Escrituras. Isso provocou uma onda de reformas – religiosas, intelectuais e logo políticas.
Quando Martinho Lutero se opôs pela primeira vez às doutrinas e à estrutura da Igreja Católica em 1517, seu desafio era amplo e indefinido, unindo várias vertentes de dissidência. Inicialmente, os apelos de Lutero por reformas provocaram uma poderosa onda de vontade revolucionária entre camponeses, plebeus e patrícios. Seus ataques ao clero e a ênfase na liberdade cristã foram vistos por muitos como um sinal de revolta. No entanto, à medida que o movimento crescia e ameaçava engolfar toda a Alemanha, Lutero – protegido por príncipes poderosos e cercado por aliados da nobreza e da classe média urbana – escolheu ficar do lado dos elementos conservadores e proprietários. Distanciando-se dos insurgentes radicais, especialmente da facção revolucionária de Müntzer, ele começou a pregar a moderação e a obediência à autoridade secular. Quando a revolta se intensificou e eclodiu a Guerra dos Camponeses, Lutero se voltou contra os camponeses e pediu sua supressão violenta: “Eles deveriam ser despedaçados, estrangulados e esfaqueados, secreta e abertamente, por todos que pudessem fazê-lo, assim como se deve matar um cachorro louco!” Sua mudança de agitador radical para defensor ferrenho da ordem feudal refletiu uma traição mais ampla dos movimentos de reforma populares e até mesmo burgueses, reduzindo sua mensagem a uma de obediência passiva e justificação divina da autoridade. A Bíblia que ele antes usava contra os poderes eclesiásticos e feudais agora era usada para santificar as próprias estruturas de dominação que os camponeses esperavam derrubar. Lutero publicou seu panfleto Against the Murderous, Thieving Hordes of Peasants (1525), pedindo a supressão violenta da revolta. Müntzer, por outro lado, tornou-se a principal voz e guia dos rebeldes, especialmente na Turíngia.
Embora a Reforma de Lutero tenha sido em grande parte teológica e cautelosa em sua relação com a autoridade política, outros viram nela um mandato para a transformação total, inclusive da própria ordem social. Entre eles estava Thomas Müntzer.
Nascido por volta de 1498 na pequena cidade de Stolberg, a vida de Thomas Müntzer foi moldada pela opressão desde o início. De acordo com a tradição, seu pai foi vítima da crueldade arbitrária da nobreza local, sendo executado por enforcamento – uma lição precoce sobre a violência do poder feudal. Essa injustiça deixou sua marca no jovem Müntzer, que, aos quinze anos de idade, já estava organizando uma resistência secreta contra a Igreja. Enquanto estudava em Halle, ele formou um grupo clandestino que se opunha ao arcebispo de Magdeburgo e à corrupção do catolicismo romano. Seu intelecto aguçado lhe rendeu um doutorado em teologia, mas, em vez de subir na hierarquia do clero, ele ficou cada vez mais desgostoso com os rituais e os dogmas da Igreja. Como capelão em um convento de Halle, ele zombava abertamente dos ritos católicos, chegando a pular a consagração da Eucaristia – um ato desafiador que prenunciava sua rebelião posterior.
O radicalismo de Müntzer foi profundamente influenciado pelos místicos medievais e sua profecia de um “Reino Milenar” de justiça divina. Para Müntzer, o tumulto da Reforma foi o prelúdio desse grande acerto de contas – uma chance de derrubar não apenas os padres corruptos, mas toda a ordem social. Em 1520, ele se tornou um pregador em Zwickau, onde conheceu os anabatistas, uma seita radical que esperava o retorno iminente de Cristo. Embora nunca tenha se juntado totalmente a eles, suas visões de um mundo virado de cabeça para baixo ressoavam com seu próprio fervor revolucionário. Quando as autoridades reprimiram o movimento, Müntzer fugiu para Praga, na esperança de reviver as tradições militantes dos hussitas. Mas suas proclamações inflamadas só o levaram a ser expulso, forçando-o a voltar para a Alemanha.
Em 1522, ele encontrou sua verdadeira vocação em Allstedt, uma pequena cidade da Turíngia que se tornou o epicentro de sua rebelião. Lá, ele fez o que nem mesmo Lutero havia ousado: abolir a missa em latim e substituí-la por sermões inflamados no idioma do povo. Ele não apenas pregou a reforma; ele incitou a revolta, convocando os camponeses e até mesmo nobres simpáticos a pegar em armas contra o clero e a nobreza “sem Deus”. Citando as palavras de Cristo – “Eu vim trazer, não a paz, mas a espada” – ele declarou que a verdadeira fé exigia ação. A velha ordem tinha de ser arrancada como “ervas daninhas na vinha de Deus” e, se os príncipes não agissem, o povo deveria agir.
À medida que seu pensamento se tornava mais militante, Müntzer rompeu decisivamente com Lutero, que havia começado a se aliar à classe dominante. Enquanto Lutero pregava a submissão, Müntzer clamava pela revolução. Ele denunciou a propriedade privada, ecoando os ideais comunitários dos primeiros cristãos, e argumentou que os pobres tinham o direito divino de tomar a terra e a riqueza de seus opressores. Em 1524, ele havia se transformado de um padre radical em um líder revolucionário de pleno direito, organizando exércitos de camponeses em toda a Turíngia.
Sua rebelião atingiu o clímax na Batalha de Frankenhausen, em 1525, onde milhares de camponeses mal armados enfrentaram as forças dos senhores feudais alemães. O resultado foi um massacre. Capturado e torturado, Müntzer foi executado como herege e rebelde. No entanto, sua visão sobreviveu a ele. Mais tarde, Friedrich Engels o aclamou como um homem que via a religião não como uma ferramenta para a obediência, mas como uma arma para a libertação:
A doutrina política de Müntzer seguiu de perto suas concepções religiosas revolucionárias e, assim como sua teologia foi muito além das concepções atuais de seu tempo, sua doutrina política foi além das condições sociais e políticas existentes. Assim como a filosofia da religião de Müntzer tocava o ateísmo, seu programa político tocava o comunismo (…) Seu programa, menos uma compilação das demandas dos plebeus então existentes do que uma antecipação genial das condições para a emancipação do elemento proletário que havia acabado de começar a se desenvolver entre os plebeus, exigia o estabelecimento imediato do reino de Deus, do milênio profetizado na Terra.
No final, Thomas Müntzer foi mais do que um teólogo. Ele foi um revolucionário que ousou imaginar que o reino dos céus poderia ser construído na Terra, pelas mãos dos oprimidos. E, por isso, os poderes de sua época garantiram que ele não sobreviveria.
A Guerra dos Camponeses foi a maior revolta popular da Europa antes da Revolução Francesa, envolvendo dezenas de milhares de camponeses e plebeus. Suas reivindicações foram delineadas nos Doze Artigos dos Camponeses da Suábia (1525), que pediam a abolição da servidão, aluguéis justos e acesso comunitário a florestas e águas – pedidos inspirados em parte por princípios bíblicos. Esse radicalismo plebeu, embora condenado por condições materiais imaturas, representou a primeira antecipação do comunismo na história. Embora suas exigências de propriedade comum só pudessem se manifestar como caridade grosseira naquela época, e seu igualitarismo como mera igualdade legal, o movimento de Müntzer deu a essas aspirações sua primeira expressão coerente. Sua rebelião marcou o ponto de convergência entre as revoltas camponesas medievais e a consciência proletária emergente. E enquanto a desigualdade perdurar, seu espírito continuará sendo uma faísca esperando para se acender.
Em maio de 1525, a Revolta dos Camponeses foi brutalmente esmagada pelas forças feudais, resultando em milhares de mortes. Müntzer foi capturado, torturado e executado em 27 de maio de 1525. Embora a historiografia oficial alemã (ocidental) tenha sistematicamente apagado Müntzer da narrativa oficial da Alemanha, ele foi celebrado e ainda é lembrado no leste da Alemanha. Assim como a existência da RDA, o legado revolucionário de Müntzer se recusa a desaparecer e é muito mais do que uma nota de rodapé da história.
Este artigo é baseado em F. Engels: A Guerra dos Camponeses na Alemanha.
Jenny Farrell, nascida na República Democrática Alemã, vive na Irlanda desde 1985, é professora, escritora e editora. Escreve para a imprensa comunista na Irlanda, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha, Brasil e Portugal e editou antologias de escrita da classe trabalhadora na Irlanda
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “