“Quando estive lá no ano passado, parecia que eu era o único americano em toda a China; agora, a sensação é de dois elefantes que se encaram ‘pelo buraco de uma agulha’.” A metáfora de Thomas L. Friedman resume o abismo que se abriu entre Washington e Pequim — um hiato que, segundo ele, cega os Estados Unidos justamente no momento em que mais precisariam de nitidez.

“Basicamente todos os executivos americanos deixaram a China durante a Covid. E, depois da Covid, começamos esse processo de ‘desacoplamento’. Resultado: passamos seis anos com pouquíssima presença lá”, narrou o colunista do New York Times.

Há alguns dias (15/abr), Friedman detalhou essa preocupação no The Ezra Klein Show, podcast de opinião do jornal. O bloco da conversa dedicado a “por que os americanos não entendem a China” girou todo em torno de suas viagens recentes ao país — e de como a saída de empresários, acadêmicos e estudantes dos EUA transformou o intercâmbio antes vital em um “cano finíssimo”.

Estrago silencioso

Para Friedman, o dano não é apenas quantitativo, mas qualitativo. A elite empresarial americana funcionava como contrapeso nas crises bilaterais: “Enquanto eles ganhavam dinheiro, diziam ao governo: ‘acalme-se, ainda vale a pena ficar’. Esse balastro sumiu.” Sem executivos à mesa, a informação chega filtrada por assessores de segurança nacional, lobistas ou redes sociais — ambientes onde “vira quase crime dizer algo positivo sobre a China”.

“Hoje, entre republicanos e democratas, virou lei não escrita: elogiar qualquer aspecto da China é pedir para ser cancelado”, ironizou.

A mesma fuga contaminou universidades. Friedman lembra que, antes da pandemia, centenas de campi americanos disputavam bolsas para enviar alunos a Xangai ou Pequim. Agora, “são poucos milhares de jovens dos EUA ali, contra mais de 260 mil chineses estudando aqui”. A assimetria, alerta, cria gerações que planejam a política externa “olhando para a Ásia pelo retrovisor”.

A virada de Xi Jinping

Se o afastamento foi acelerado do lado americano, Friedman reconhece que o terreno também mudou em Pequim. Ele situa o ponto de inflexão na ascensão de Xi Jinping, em 2012/13. Com Xi, “a China fez uma inversão de marcha: parou o ciclo de dois passos pra frente, um pra trás, em direção a mais abertura”. E não foi só política; veio o projeto Made in China 2025, que ambicionava dominar “todas as indústrias do século XXI, de aeronáutica a robótica”. A meta acendeu o sinal de alerta em Washington.

“Quando eles decidiram que queriam controlar cada peça da cadeia de valor, mexeram no nosso bolso — e no nosso ego”, provocou.

Mas o colunista insiste que a resposta americana — sobretudo o discurso bélico de 2016 em diante — embaralhou análise séria com slogan eleitoral. Segundo ele, a Casa Branca passou a tratar a disputa como “jogo de soma zero”, sem admitir nenhuma lição que pudesse vir do outro lado do Pacífico: “Se alguém ousa dizer que a China inova, já aparece político gritando que eles só sabem roubar”.

A janela que se fechou

Friedman usa a imagem do “canudo virando agulha” para ilustrar o colapso do intercâmbio — e conta um episódio que viveu in loco. Ao passear por Xangai, estranhou não ver ocidentais na rua. “Não havia turistas, nem executivos, nem estudantes. Parecia um país fantasma para americanos.” O contraste mais forte veio ao conversar com gerentes europeus, que continuaram no país e agora desfrutam do que chama de China Fitness Club:

“Eles dizem: ‘ou você treina aqui, ou vai ser atropelado lá fora’. Essa academia forjou cadeias produtivas gigantescas. Cinco sobrevivem, após 70 morrerem — e esses cinco saem tão em forma que esmagam concorrentes no resto do mundo.”

Sem americanos na pista, afirma, as empresas dos EUA perdem musculatura criativa. “A gente briga no Twitter enquanto eles evoluem praticamente sem plateia.”

Eco em Washington

O efeito político, argumenta, é perverso: quanto menos informação confiável, mais espaço para paranoia. Friedman não minimiza questões reais — espionagem, autoritarismo, Xinjiang —, mas alerta contra o risco de o debate virar caricatura. “Quando você transforma a China no novo inimigo consensual, a discordância vira suspeita de traição. Isso é péssimo para pensar política séria.”

No Congresso, diz, a prova é empírica: entre 2019 e 2024, houve apenas uma delegação bipartidária que topou ir a Pequim. Resultado? “Legisladores aprovam leis sobre semicondutores sem nunca ter falado com um engenheiro que fabrique chips em Shenzhen.”

Cegueira estratégica

Friedman teme que essa miopia custe caro em três frentes: inteligência artificial, transição energética e estabilidade global. “Só dois atores têm escala para lidar com IA, clima e colapso de Estados frágeis: Estados Unidos e China. Eles vão ter de colaborar cedo ou tarde — a questão é se vão aprender isso pela dor ou pela razão.”

Para ilustrar o perigo, recorre à ironia. Conta que, em Washington, um ex-funcionário de Trump afirmou: “O objetivo da China é espalhar marxismo autoritário.” Friedman retrucou: “A China quer é espalhar MU, não Marx — Market Uber Alles. Querem ganhar o nosso jogo, não o do Karl.”

O espelho necessário

Embora reconheça que elogios à China “viraram quase crime”, Friedman se diz disposto a pagar o preço. Seu objetivo, insiste, não é ser “abraçador de panda”, mas sacudir a complacência americana: “Uso a China como Sputnik permanente. Se eles nos assustarem um pouco, talvez voltemos a investir em educação, infraestrutura, pesquisa”.

Ele conclui o bloco lembrando que a história cobra visão de longo prazo. “A gente sabotou a Janela China que Nixon abriu. Precisamos decidir se queremos outra janela — ou se preferimos pregar tábuas e reclamar da escuridão.”

Aqui a minutagem do vídeo. O texto acima se refere ao capítulo “Por que os americanos não entendem a China, que começa a partir do minuto 1:36”:
0:00 Introdução
1:36 Por que os americanos não entendem a China
10:30 Os avanços tecnológicos da China
15:23 Consenso de Washington sobre a China
30:15 As tarifas de Trump
51:42 Democratas sobre a China
56:17 A revolução cultural americana?
1:02:11 Impressões da China
1:04:55 Recomendações de livros.

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Last Update: 20/04/2025