Um relatório divulgado pelo Atlantic Council, organização com sede em Washington, apontou que os Estados Unidos correm o risco de perder influência geopolítica, econômica e normativa na disputa tecnológica com a China caso mantenham uma postura classificada como “complacente” em relação ao Sul Global.
O documento afirma que os países em desenvolvimento devem se tornar atores centrais no setor de tecnologias emergentes nas próximas décadas, tanto como consumidores quanto como fornecedores e inovadores.
O relatório também projeta um fortalecimento das relações desses países com a China, o que pode comprometer os interesses estratégicos norte-americanos em diversas frentes.
“O Sul Global terá um papel cada vez mais crítico na tecnologia avançada nas próximas décadas”, destaca o texto. “Os Estados Unidos não podem se dar ao luxo de subestimar o papel que será desempenhado pelo Sul Global na formação da competição tecnológica global.”
Potencial do Sul Global e risco de isolamento
O relatório calcula que os países do Sul Global concentram 85% da população mundial e representam aproximadamente 40% do produto interno bruto global.
Segundo o Atlantic Council, essas nações estarão no centro das decisões sobre normas internacionais, fornecimento de insumos e direcionamento da demanda em setores como inteligência artificial, semicondutores e comunicações avançadas.
“Se isso não for feito, a China poderá promover seus interesses geopolíticos, econômicos e tecnológicos ao redor do mundo, permitindo que Pequim molde normas e padrões tecnológicos globais sem impedimentos, prejudicando assim os interesses dos Estados Unidos e seus aliados”, alerta o documento.
O texto também critica a abordagem predominante em Washington, segundo a qual a vantagem tecnológica é analisada principalmente sob as lentes militar e econômica.
De acordo com o relatório, essa perspectiva ignora a importância da disseminação internacional das novas tecnologias, aspecto considerado essencial na competição atual.
“No entanto, a difusão global de tecnologias emergentes é igualmente importante. Infelizmente, ela é frequentemente negligenciada”, afirma o relatório.
Ações chinesas e resposta americana
Nas últimas décadas, a China intensificou sua presença no Sul Global por meio de ações como programas de intercâmbio acadêmico, treinamentos técnicos e cooperação midiática.
Segundo o relatório, essas iniciativas servem a propósitos geopolíticos ao reduzir a influência norte-americana e facilitar a inserção de empresas chinesas em mercados estrangeiros.
O documento argumenta que os Estados Unidos precisam compreender com maior profundidade as demandas e prioridades tecnológicas dos países em desenvolvimento.
Também ressalta que companhias chinesas têm obtido êxito por adaptar seus produtos e serviços às condições locais, estratégia que os Estados Unidos ainda não adotaram em escala comparável.
“O fortalecimento das relações americanas com o Sul Global ofereceria aos EUA oportunidades significativas por meio da expansão do acesso ao mercado, fomento de talentos de ponta, promoção da inovação e avanço de objetivos econômicos e geopolíticos compartilhados”, avalia o think tank.
Contexto geopolítico e tarifas
A publicação do relatório ocorre no mesmo período em que o governo dos Estados Unidos anunciou novas tarifas comerciais, inicialmente propostas pelo ex-presidente Donald Trump e atualmente suspensas por 90 dias.
O Atlantic Council avalia que tais medidas podem afetar desproporcionalmente os países em desenvolvimento, que ocupam posição relevante nas cadeias globais de valor.
A China, por sua vez, tem intensificado sua articulação diplomática. Na semana anterior à divulgação do relatório, o presidente chinês Xi Jinping visitou o Vietnã, a Malásia e o Camboja como parte de uma agenda voltada à ampliação de apoio internacional às posições de Pequim, inclusive no contexto das tarifas impostas por Washington.
Inteligência artificial como eixo estratégico
A inteligência artificial foi apontada no relatório como uma das principais áreas da disputa entre China e Estados Unidos. O texto ressalta que o desenvolvimento de modelos de IA envolve escolhas estruturais que refletem sistemas de valores e formas distintas de governança.
Segundo o Atlantic Council, a competição nesse setor transcende o domínio de mercado e expressa divisões ideológicas entre os dois países. Ambos consideram que o avanço da tecnologia terá impactos de longo alcance, tanto na ordem econômica quanto na governança política.
“A competição foi além do domínio do mercado e refletiu divisões políticas e de governança mais profundas, já que o treinamento de modelos de IA era um exercício ‘inerentemente carregado de valores’”, afirma o texto.
O relatório também indica que, diante da escassez de alternativas, muitos países estão recorrendo a sistemas chineses de inteligência artificial, mesmo com preocupações de segurança, o que poderia proporcionar à China acesso a bases de dados que empresas ocidentais não conseguiriam alcançar.
Com isso, “a China terá enorme margem de manobra para moldar a adoção e o uso global da IA”, conclui o documento.
Recomendação estratégica
O relatório considera “imperativo” que os Estados Unidos e seus aliados reformulem suas políticas externas com foco no Sul Global.
A proposta inclui o aumento de investimentos em cooperação tecnológica, adaptação de serviços às necessidades locais, expansão de programas de intercâmbio e maior atenção à criação de normas técnicas globais.
A recomendação central do Atlantic Council é que o governo dos Estados Unidos amplie sua presença e influência nessas regiões para evitar o isolamento em setores considerados críticos para o equilíbrio geopolítico nas próximas décadas.
Com informações do SCMP