Thiel vs. Bannon: Quando os Arquitetos do Caos Entram em Guerra
por Reynaldo Aragon
De aliados na construção do trumpismo a inimigos na disputa pelo comando da nova ordem global, Peter Thiel — arquiteto do tecnolibertarismo e mentor ideológico de Elon Musk — e Steve Bannon travam uma guerra silenciosa que expõe o colapso interno do império e o futuro fragmentado das direitas autoritárias. Quando os engenheiros do caos se enfrentam, é sinal de que a máquina começou a falhar por dentro.
Não é só uma briga de ego, é uma guerra por modelo de dominação.
No coração do império, dois de seus engenheiros mais influentes agora se enfrentam, e, como em toda guerra entre aristocratas, o conflito é apresentado como ideológico, mas funda-se em algo bem mais profundo: a disputa por qual forma de dominação moldará o futuro. A ruptura entre Peter Thiel, principal formulador do tecnolibertarismo autoritário no Ocidente e mentor intelectual da visão de mundo de Elon Musk, e Steve Bannon, agitador estratégico e arquiteto do populismo nacionalista que impulsionou Donald Trump ao poder, não pode ser interpretada como mero desencontro de vaidades ou estilos. Trata-se da expressão visível de uma cisão tectônica que atravessa a própria arquitetura do poder conservador nos Estados Unidos e, com ela, das direitas globalizadas que orbitam seu campo gravitacional.
O que está em jogo não é apenas quem detém o controle, mas qual será a forma da engrenagem que sustentará o próximo ciclo de hegemonia: o algoritmo ou o ressentimento? O império da vigilância ou a cruz nacionalista? O capitalismo de plataformas ou o populismo de trincheiras? Thiel e Bannon encarnam dois vetores em tensão: de um lado, o tecnolibertarismo autoritário, guiado pela crença de que a elite cognitiva pode (e deve) substituir as formas tradicionais de governança; de outro, o nacionalismo beligerante que mobiliza massas ressentidas contra elites que ele próprio ajudou a construir.
Ambos defendem a derrocada do que chamam de “ordem liberal”, mas por meios, ritmos e fins distintos. A batalha, portanto, é pelo código-fonte do pós-democrático: Thiel aposta em uma transição elegante, silenciosa, com think tanks, candidaturas financiadas e data centers; Bannon prefere o som dos tambores, as fogueiras ideológicas, o barro das redes e o caos como método. Se, durante o ciclo MAGA original, esses dois caminhos se cruzaram sob a figura de um outsider carismático, agora se distanciam, não sem fricção, não sem escândalos, e, talvez, não sem vítimas.
Com o Estado americano sendo progressivamente corroído por dentro, como mostra com o artigo “Do império ao caos: como as corporações estão golpeando o Estado americano por dentro.”, que denuncia o “golpe corporativo silencioso” em curso, o racha entre Thiel e Bannon não só revela o estado avançado de fragmentação institucional, como também escancara o paradoxo do presente: o império não está mais sendo atacado de fora, mas disputado internamente por seus próprios engenheiros, que já não concordam sobre o tipo de máquina que deve ser construída.
De aliados a antagonistas: uma breve genealogia da aliança MAGA.
Em 2016, quando Donald Trump venceu as eleições presidenciais nos Estados Unidos, poucos perceberam que, por trás do espetáculo grotesco da retórica incendiária, operava uma aliança inédita e altamente estratégica entre dois mundos que, até então, raramente se tocavam: o do capital de risco do Vale do Silício e o do populismo midiático de guerra cultural. A união entre Peter Thiel e Steve Bannon foi, nesse sentido, mais do que uma jogada tática. Foi um experimento de engenharia política que reconfigurou a direita americana e pavimentou o caminho para uma nova forma de captura do Estado.
Thiel trouxe o dinheiro, os dados e o projeto. Foi o único bilionário do Vale a apoiar abertamente a candidatura de Trump, financiando não apenas a campanha, mas também a inserção da inteligência artificial e da análise comportamental no núcleo duro do poder político. Sua empresa, a Palantir, já operava com contratos de inteligência do governo americano e passou a ser vista como peça-chave na reorganização do aparato de vigilância estatal. Mais do que isso, Thiel enxergava em Trump uma janela de oportunidade para testar, em escala real, sua aposta em uma elite tecnocrática que pudesse gerir o país como se fosse uma startup.
Bannon, por sua vez, ofereceu o campo de batalha: ideologia, mobilização e ressentimento. Recém-saído do comando do Breitbart News, onde lapidou o discurso da nova direita reacionária americana, Bannon entrou na Casa Branca com uma missão clara: transformar o caos em método. Ele acreditava que o sistema precisava ser destruído para que algo novo pudesse emergir, e esse algo novo, em sua visão, era um renascimento nacionalista com apelo religioso e conservador, capaz de capturar o imaginário popular por meio de uma guerra cultural permanente.
Durante o breve período em que dividiram o poder, Bannon e Thiel formaram uma simbiose funcional. Enquanto um incendiava as instituições por fora, o outro as redesenhava por dentro. Mas a aliança era instável. A lógica dos algoritmos não combina com o culto ao apocalipse. A frieza tecnocrática se choca com o messianismo revolucionário. O que os unia, o desejo de implodir o establishment liberal, começou com o tempo a dar lugar a desconfianças mútuas. Thiel preferia moldar o Estado ao seu gosto. Bannon, reduzi-lo a escombros.
A cisão se tornou inevitável. À medida que Bannon foi sendo expurgado do núcleo duro do governo e caiu em desgraça institucional, passou a mirar seus antigos aliados como traidores do projeto original. Thiel, por sua vez, investiu em figuras como J.D. Vance e Blake Masters, buscando perpetuar sua influência nos bastidores. Se antes eram dois generais da mesma cruzada, agora são candidatos rivais à sucessão do império.
Peter Thiel nasceu na Alemanha e se formou em filosofia e direito em Stanford, onde mais tarde se tornou uma figura emblemática da interseção entre tecnologia, finanças e pensamento político radical. Cofundador do PayPal e investidor inicial do Facebook, construiu seu império a partir de uma combinação de visão tecnocrática, desconfiança das instituições democráticas e uma aposta estratégica na inteligência artificial como instrumento de governo. Já Steve Bannon é ex-oficial da Marinha, ex-banqueiro de investimentos e ex-produtor de filmes, com formação em estudos de segurança nacional pela Georgetown e um mestrado em Harvard. Tornou-se conhecido como presidente do Breitbart News, onde forjou a estética discursiva da nova direita americana, e depois como estrategista-chefe de Donald Trump. Enquanto Thiel encarna a racionalidade fria do capital de risco e o desejo de substituir a política por código, Bannon opera com símbolos, mitos e ressentimento, buscando incendiar o espaço público em nome de um renascimento civilizacional conservador.
Tecnocracia e guerra cultural: os dois projetos de poder em confronto.
Peter Thiel e Steve Bannon não são apenas representantes de correntes distintas da direita contemporânea. Eles são a personificação de dois projetos de dominação em disputa, cada um com sua própria gramática de poder, seu próprio imaginário político e sua própria engenharia de futuro. Embora compartilhem a rejeição à democracia liberal e o desprezo pelas instituições do consenso pós-Guerra Fria, divergem radicalmente sobre os meios, os dispositivos e os sujeitos que devem conduzir a transição para a nova ordem.
Thiel representa a utopia sombria do tecnolibertarismo. Para ele, o Estado é uma máquina obsoleta, corroída por burocracias, ineficiências e sentimentalismos democráticos. Seu ideal é um sistema de governança gerido por elites cognitivas, altamente qualificadas, onde decisões sejam tomadas com base em cálculos matemáticos, previsão algorítmica e controle absoluto de dados. Inspirado por teóricos como Curtis Yarvin, Thiel não esconde sua preferência por modelos neomonárquicos, nos quais o governante atua como um CEO racional que responde apenas à performance e à lógica da eficiência. Empresas como a Palantir são, nesse contexto, muito mais do que ferramentas de análise de dados. Elas são protótipos de uma nova forma de poder, que não precisa do povo, apenas de acesso total à sua informação.
Steve Bannon opera em outro registro. Sua linguagem é a do ressentimento mobilizado, do apelo às massas descontentes, da religiosidade militante e da guerra cultural sem fim. Enquanto Thiel projeta uma elite que governa por antecipação, Bannon quer um povo mobilizado permanentemente contra os inimigos internos. Ele não confia em algoritmos, mas em cruzadas. Sua estratégia é saturar o espaço público de símbolos, mitos, ameaças e moralismos, produzindo uma atmosfera de conflito perpétuo que impeça qualquer retorno à normalidade institucional. Para Bannon, a política é guerra cultural em estado puro, e o Estado deve ser tomado por dentro e por fora ao mesmo tempo, em uma operação de choque simbólico que misture estética, teologia e tática de guerrilha digital.
Em última instância, Thiel e Bannon convergem na crítica à democracia, mas divergem na forma de enterrá-la. Thiel quer a desmaterializar, dissolvê-la nas planilhas de uma elite técnico-financeira. Bannon quer destruí-la com martelos, ao vivo e em cores. A sofisticação elitista do primeiro é a antítese da iconoclastia populista do segundo. Se a política fosse uma peça de teatro, Thiel escreveria o algoritmo que calcula o final mais rentável. Bannon, por sua vez, atearia fogo ao palco e convocaria o público a invadir a cena.
O Estado americano como território ocupado: o império virou campo de batalha interno.
Muito se fala sobre o declínio dos Estados Unidos enquanto potência hegemônica global. Menos se discute, porém, a erosão silenciosa que corrói o próprio coração de sua institucionalidade. O Estado americano, longe de ser apenas um aparato enfraquecido diante de rivais externos como China ou Rússia, tornou-se um território em disputa entre projetos de poder que se digladiam dentro de suas fronteiras e, mais grave ainda, dentro de seus próprios sistemas de comando. O império não está sendo atacado de fora. Ele está sendo tomado por dentro.
O artigo “Do império ao caos”, publicado no Brasil247, diagnostica essa nova anatomia da crise. Em vez de tanques, o que avança sobre as estruturas do Estado americano são firmas de tecnologia, fundos de investimento, consultorias estratégicas e empresas de vigilância com acesso privilegiado a bases de dados, algoritmos de decisão e infraestrutura crítica. Palantir, Microsoft, Amazon Web Services, Google, Anduril. O novo exército do império já não veste farda. Opera em regime de contrato. Seus generais são CEOs, suas armas são sistemas operacionais e sua estratégia de dominação depende mais da capacidade de minerar padrões comportamentais do que de controlar territórios físicos.
Nesse cenário, figuras como Peter Thiel não aparecem como exceções, mas como vanguardas. Ao ocupar posições-chave nos bastidores do governo, ao influenciar decisões de segurança nacional, ao propor modelos de governança privatizados e baseados em dados, Thiel encarna uma forma de golpe corporativo que não precisa de tanques nem de rupturas explícitas. Seu método é mais sofisticado. Ao invés de tomar o poder, ele o redesenha. Substitui a arena política por plataformas, a deliberação por machine learning, o voto por vigilância preditiva. A democracia, nesse modelo, não é destruída. Apenas se torna irrelevante.
Steve Bannon, em sua crítica feroz ao que chama de “tecno-feudalismo”, não deixa de ter razão sobre o processo, embora o critique a partir de outro projeto autoritário. Ao identificar na elite tecnológica uma nova forma de oligarquia que mina a vontade popular, Bannon atira contra um inimigo que ajudou a criar. Sua insurgência contra bilionários como Thiel ou Musk revela mais do que uma divergência de método. Expõe o fato de que o movimento MAGA deixou de ser uma frente unificada. Transformou-se em um campo de disputas internas, no qual cada facção busca moldar o Estado à sua imagem e semelhança, enquanto a democracia segue sendo a única perdedora certa.
O que temos, portanto, é uma forma avançada de guerra civil dentro do império. Uma guerra sem trincheiras físicas, mas com altíssimo grau de destruição institucional. Um conflito entre operadores de plataformas e evangelistas do apocalipse, entre algoritmos e cruzadas, entre CEOs armados com dados e agitadores armados com narrativas. E o Estado americano, cada vez mais esvaziado de soberania real, serve apenas como campo de testes para essa disputa entre formas de dominação incompatíveis.
E o Brasil com isso? A guerra chegou aqui há tempos.
Para quem observa os Estados Unidos à distância, é tentador imaginar que as disputas internas daquele país ainda dizem respeito apenas à sua política doméstica. Mas essa é uma ilusão confortável. A guerra entre os projetos de Peter Thiel e Steve Bannon não apenas ultrapassou as fronteiras americanas, como encontrou na América Latina, e especialmente no Brasil, um campo fértil para sua expansão. O Brasil, ao contrário do que muitos ainda supõem, não é um espectador nesse processo. É laboratório. É protótipo. É território de testes.
A atuação crescente de grandes corporações tecnológicas em setores estratégicos do Brasil não é pontual, é sintomática. Ela expressa o avanço de uma nova forma de colonialismo informacional, que já não depende de tanques ou de acordos de dívida, mas se materializa por meio da captura massiva de dados, da terceirização silenciosa de processos decisórios e da imposição de infraestruturas privatizadas de vigilância e gestão. Nesse novo arranjo, a soberania nacional passa a existir apenas no plano formal, como uma ficção jurídica mantida para consumo simbólico. O centro real de comando desloca-se para contratos com empresas transnacionais, bases operacionais hospedadas em nuvens estrangeiras e algoritmos indevassáveis que modulam políticas públicas a partir de lógicas comerciais e interesses geopolíticos alheios ao interesse nacional.
Simultaneamente, a lógica da guerra cultural promovida por Steve Bannon já foi plenamente incorporada ao cotidiano político brasileiro. As estratégias de desinformação, radicalização moral e ataque sistemático à imprensa, às universidades e à ciência foram absorvidas com uma eficácia que surpreenderia até seus formuladores originais. A disputa simbólica substituiu o debate. O ressentimento foi convertido em identidade política. O inimigo imaginário tornou-se o principal vetor de mobilização. Em vez de programa, há paranoia. Em vez de comunidade, há seitas. O WhatsApp virou trincheira. O Telegram, quartel-general. As redes, campos de batalha em constante combustão.
O resultado é uma captura dupla e simultânea. De um lado, elites políticas e econômicas dispostas a entregar infraestrutura e inteligência estatal às corporações estrangeiras, muitas delas associadas a interesses estratégicos dos Estados Unidos. De outro, operadores ideológicos que inflamam a população contra fantasmas comunistas, ao mesmo tempo, em que atuam como instrumentos úteis da mesma arquitetura de dominação que fingem combater. A extrema-direita brasileira se apresenta como antissistêmica, mas, na prática, opera como linha auxiliar da colonização digital do país.
A grande pergunta, portanto, não é apenas quem vencerá a disputa entre Thiel e Bannon, mas qual modelo de dominação se consolidará como dominante na periferia do império. A extrema-direita brasileira será tecnocrática, baseada em plataformas, dados e controle algorítmico? Ou será reacionária, baseada em fé, ressentimento e conflito simbólico permanente? Aparentemente, ela será ambas. As big techs moldam o campo, enquanto as seitas digitais oferecem o exército. A eficiência do arranjo está justamente no fato de que seus operadores fingem estar em lados opostos, quando, na verdade, são complementares. O disfarce é tão eficaz que muitos dos que acreditam resistir já se encontram há muito tempo sob domínio.
Torcendo pela briga, apostando na rachadura.
Quando duas formas de dominação se enfrentam dentro do mesmo império, não há neutralidade possível. Mas há, talvez, uma chance. A ruptura entre Peter Thiel e Steve Bannon deve ser observada com atenção, não como espetáculo de egos inflados, mas como o sinal de uma rachadura no núcleo do poder que há anos dita os rumos da política global. Quando os arquitetos do império passam a lutar entre si, não é apenas um projeto de país que está em xeque. É um modo de organizar o mundo, de controlar as subjetividades, de definir o que é governável e o que será excluído do horizonte do possível.
Ambos os lados dessa disputa compartilham um traço essencial: o desprezo pela democracia. Tanto Thiel quanto Bannon operam com categorias que excluem a soberania popular como fundamento legítimo de poder. uma aposta no algoritmo, o outro no ressentimento. Um sonha com o Estado transformado em empresa gerida por CEOs ilustrados, o outro clama por uma guerra espiritual permanente contra inimigos imaginários. Em ambos os casos, o que se busca é o colapso do espaço público, da mediação institucional e da política enquanto campo de conflito legítimo entre visões distintas de sociedade.
No entanto, a fratura é real. E é justamente nessa fenda que movimentos progressistas, democráticos e soberanistas podem encontrar brechas para resistir, reorganizar forças e disputar sentido. A ironia da história é que, enquanto os engenheiros do império duelam pelo controle da máquina, os povos sob sua sombra ainda podem escolher não ser apenas engrenagens. Mas para isso é preciso compreender a anatomia da dominação, identificar os seus operadores locais e internacionais, e recusar tanto o feitiço do controle tecnocrático quanto o delírio regressivo da guerra cultural permanente.
Torcer pela briga, nesse contexto, não é uma postura cínica. É uma aposta estratégica. Que os de cima se enfrentem, que se exponham, que se desorganizem. Que revelem, por suas contradições, aquilo que tantos ainda se recusam a enxergar: que o império já não é uno, que o seu centro está em disputa, e que seu futuro ainda pode ser desviado. O caos, às vezes, é mais fértil que a ordem.
Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia. É membro pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI).
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