Enquanto os psicodélicos ainda avançam lentamente rumo a uma regulamentação para uso médico, a cannabis medicinal já demonstra impacto positivo na saúde pública e um papel crescente na economia brasileira. Em 2024, o setor apresentou um crescimento significativo, movimentando 852 milhões de reais e atendendo mais de 672 mil pacientes.

No entanto, a crescente demanda por medicamentos importados à base de canabinoides enfrenta um desafio importante: a ampla oferta de produtos de diferentes marcas, aliada à falta de padronização nos processos de fabricação, gera desconfiança entre médicos e pacientes.

 Isso significa que, além de lidar com o preconceito ainda presente em torno da planta no conservador mercado brasileiro, as empresas precisam assegurar a qualidade e a eficácia dos produtos à base de cannabis para o consumidor final — uma tarefa que, assim como a comercialização em si, está longe de ser simples.

Especialistas ressaltam que é fundamental avaliar a qualidade e a pureza da matéria-prima, bem como garantir que a concentração dos princípios ativos esteja correta. Para isso, todo o processo, desde o cultivo até a fabricação, deve passar por avaliações rigorosas. 

Atenta a essa demanda, no final de 2024, a Carmen’s Medicinals, que atua no mercado brasileiro desde 2020, anunciou uma mudança importante. A empresa é a primeira do setor a realizar testes no Brasil, por meio da Rede Brasileira de Laboratórios Analíticos em Saúde, a Reblas, vinculada à Anvisa.

A parceria busca oferecer mais segurança para médicos e pacientes, além de minimizar dúvidas sobre a qualidade dos produtos — especialmente aqueles regulados pela RDC-660, a resolução que estabelece critérios para a importação de cannabis medicinal no Brasil e seu uso por pessoas físicas com prescrição médica.

Os produtos autorizados pela Anvisa para comercialização em farmácias, conforme a RDC-327, devem obrigatoriamente passar por análises em território brasileiro. No entanto, essa exigência não se aplica aos produtos regulamentados pela RDC-660.

Os produtos importados sob a RDC-660 devem apresentar um COA (Certificado de Análises, na sigla em inglês), emitido por laboratórios independentes nos Estados Unidos. No entanto, segundo Ricardo Pettená, diretor executivo da Carmen’s Medicinals, muitos fabricantes realizam essas análises em seus próprios laboratórios. “Isso pode comprometer a confiabilidade dos resultados”, alerta.

“Além de enfrentar o preconceito em relação à planta, é fundamental garantir a transparência nos processos produtivos, desde o cultivo até o produto final entregue ao paciente, acompanhado de documentos que comprovem sua qualidade”, completa Pettená.

Segundo ele, a validação em um laboratório certificado pela Anvisa assegura que os produtos apresentam o grau de pureza e qualidade exigido pela agência. “Esse processo reforça as análises laboratoriais realizadas nos Estados Unidos, demonstrando que o óleo mantém sua qualidade e estabilidade desde a fábrica até a casa do paciente”, explica.

Dados do 3º Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil, produzido pela consultoria Kaya Mind e divulgado no final de 2024, indicam que o país se consolidou como um dos mercados mais promissores da América Latina. Atualmente, existem 2.180 produtos disponíveis e 413 empresas internacionais exportando para o Brasil. Diante de tantas opções, identificar produtos de alta qualidade torna-se um desafio.

“A qualidade dos produtos à base de cannabis não é necessariamente um problema no Brasil, mas representa um desafio”, afirma Maria Eugenia Riscala, CEO da Kaya Mind. Ela explica que o certificado mais amplamente aceito atualmente para atestar a conformidade dos óleos canabinoides importados é o já mencionado COA.

A certificação americana assegura que o produto foi submetido a análises detalhadas, incluindo a verificação dos níveis de canabinoides, a ausência de contaminantes químicos e microbiológicos, e a conformidade dos padrões de pureza com as regulamentações internacionais. A certificação Reblas tem uma importância maior, pois está diretamente vinculada à Anvisa. 

Diferentemente do COA emitido nos Estados Unidos, que não é supervisionado pela FDA, agência equivalente à Anvisa, a certificação Reblas assegura a validação da qualidade e segurança sob a regulamentação de um órgão oficial brasileiro.

Para Riskala a opção pela rede Reblas é um acerto, pois, ao adotar padrões já estabelecidos pela indústria brasileira, a empresa contribui para inserir a cannabis em um espectro mais convencional.

Para o consumidor final, essas certificações representam mais do que uma validação técnica: elas garantem que o medicamento passou por rigorosos testes e oferece o nível de segurança necessário para tratar condições de saúde complexas.

Impactos no futuro do setor

A busca por certificações internacionais, como o COA, e nacionais, como a da Reblas, também podem contribuir para a elevação dos padrões de qualidade no mercado brasileiro, avalia Ricardo Pettená, diretor executivo da Carmen’s Medicinals. “É definitivamente um meio para isso”, afirma.

“Muitos médicos desejam prescrever produtos de cannabis medicinal, mas ainda desconfiam da qualidade”, observa. “Com a certificação realizada no Brasil por um laboratório Reblas, os médicos passam a ter mais segurança em relação aos importados. Naturalmente, outras empresas devem adotar o mesmo caminho”. Por isso, ele acredita que a iniciativa pode contribuir para o desenvolvimento e a expansão do setor.

Embora o setor frequentemente critique a legislação, que varia significativamente entre os países, Pettená  defende que o Brasil possui uma das melhores. “Ela permite que as empresas entrem no mercado pela RDC 660 enquanto trabalham para obter as licenças sanitárias de seus produtos pela RDC 327, que autoriza a venda em farmácias”, explica.

Na avaliação do executivo, o convívio das duas RDCs (660 e 327) é um dos principais diferenciais positivos implementados pela agência brasileira. “Essa coexistência contribui significativamente para o desenvolvimento do mercado, fomenta a competição de preços e amplia o acesso”, afirma.

É importante destacar que a RDC 327 está em processo de revisão na Anvisa, gerando grande expectativa no setor de que as mudanças possam fortalecer a legislação em torno dos produtos de cannabis. “Acreditamos que a revisão deve ampliar o acesso a produtos de qualidade e contribuir para a redução de preços”, comenta.

Enquanto o setor amadurece, cabe às autoridades e às empresas que atuam na área da cannabis medicinal assegurar que a qualidade e a segurança permaneçam como prioridades. A certificação da Rede Reblas, combinada a padrões internacionais como o COA, parece ser uma solução capaz de atender a diferentes demandas.

Isso porque, além de estabelecer um novo patamar de qualidade, incentiva outros players do mercado a adotar práticas mais rigorosas, promovendo uma abordagem que alia compromisso com a saúde pública e o desenvolvimento científico. A adoção dessas práticas também pode contribuir para consolidar a confiança de médicos e pacientes no uso terapêutico da cannabis — um passo essencial em um país onde o tema ainda enfrenta barreiras culturais e estruturais.

Entretanto, embora iniciativas como a certificação da Rede Reblas e a adoção de padrões internacionais sejam, de fato, avanços importantes, outras questões permanecem urgentes, como a necessidade de medidas que assegurem a disponibilidade ampla e igualitária para os pacientes. O alto custo dos medicamentos à base de cannabis, aliado à complexidade regulatória que ainda restringe o uso da substância, limita esse benefício a uma parcela reduzida da população.

Superar essas barreiras, é evidente, não depende apenas das empresas, mas também de avanços regulatórios e de políticas públicas capazes de assegurar tanto a acessibilidade econômica quanto a ampliação das indicações terapêuticas da cannabis.

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Last Update: 08/01/2025