Desde julho de 2023, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem divulgado periodicamente dados inéditos sobre a população quilombola brasileira, um desdobramento do Censo 2022 que a recenseou pela primeira vez como grupo étnico populacional. Tratam-se de informações sobre a demografia, faixa etária, quesito de gênero, geolocalização, entre outras, até então desconhecidas sobre esse grupo populacional. No dia 9 de maio de 2025, o IBGE tornou públicos novos dados. Essas informações revelam uma realidade marcada por desigualdades e precariedades que afetam profundamente essas comunidades. Os dados corroboram com os achados de pesquisas anteriores, como “Territórios Livres, Tecnologias Livres” e “Vozes Silenciadas: Energias Renováveis”, ambas realizadas pelo Intervozes, que já apontavam para os desafios enfrentados pelos quilombolas em diversas áreas.
Segundo o Censo 2022, a população quilombola no Brasil é de 1.330.186 pessoas, das quais 61,7% vivem em áreas rurais. Nos Territórios Quilombolas oficialmente delimitados, esse percentual é ainda mais elevado, chegando a 87,37%. Contudo, a precariedade no saneamento básico é alarmante: afeta 94,6% dos quilombolas em áreas rurais que convivem com condições inadequadas, incluindo falta de acesso à água potável e sistemas de esgoto. O Piauí se destaca como o Estado com maior percentual de pessoas quilombolas residindo em contexto rural (87,87%), seguido de Amazonas (84,92%) e Maranhão (79,74%).
Além dessa violações de direitos humanos, outras ausências também foram percebidas junto à população quilombola que reside em áreas rurais e há muito tempo são denunciadas pelos movimentos sociais, a exemplo da pesquisa “Territórios Livres, Tecnologias Livres” (TLTL), realizada pelo Intervozes em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE). A pesquisa mapeou 33 territórios de comunidades rurais e quilombolas – do total, 51,5% foram territórios quilombolas de seis estados do Nordeste: Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte, dos quais dois se destacaram na última divulgação do IBGE pelo elevado percentual de população quilombola em áreas rurais.
A pesquisa TLTL evidenciou que 29% dos domicílios quilombolas mapeados não possuem acesso à internet, e 33% enfrentam dificuldades para arcar com os custos do serviço. A falta de conectividade limita o acesso à informação, educação, situação também evidenciada pela publicação do IBGE – além da dificuldade de acesso a outros serviços essenciais, agravando a exclusão social dessas comunidades.
Vale ainda mencionar que esses territórios sofrem acentuadamente as pressões dos agentes do chamado mercado verde. Um estudo realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com a Conaq, e divulgado no ano passado, revela que quase todos os territórios quilombolas no Brasil (98,2%) enfrentam ameaças provenientes de obras de infraestrutura, empreendimentos minerários e sobreposições com imóveis particulares. Entre essas, se inclui o avanço de empreendimentos para fins da transição energética pleiteada pelo Estado brasileiro, particularmente no Nordeste. São iniciativas que colocam em risco a biodiversidade dessas localidades, a cultura local e a própria sobrevivência desses grupos, agravando os indicadores de desigualdade social, racismo ambiental e injustiça climática.
Este cenário, que já é desolador, tende a se agravar caso o Congresso brasileiro aprove o Projeto de Lei 2.159/2021, que vem sendo chamado de “PL da Devastação”. O projeto, recentemente aprovado pelo Senado, voltou à Câmara para nova apreciação. Com ele, os parlamentares pretendem flexibilizar ainda mais as regras de licenciamento ambiental para a construção e implementação de diversos empreendimentos. Na prática, se abre ainda mais a porteira para deixar “a boiada passar”.
Algumas das alterações previstas no PL da Devastação restringem a obrigatoriedade de licenciamento ambiental para territórios que aguardam a conclusão do processo de titulação e homologação das terras, além de dispensar a consulta público aos povos que nelas vivem. Isso impacta diretamente os territórios indígenas e quilombolas. De acordo com uma nota técnica divulgada pelo Instituto Socioambiental, o projeto de lei compromete 80,1% dos territórios quilombolas.
O novelo das opressões sobre esses territórios se compõe de vários fios. Sobre ele, também deve ser mencionado o papel da mídia. A pesquisa “Vozes Silenciadas: Energias Renováveis” destacou a invisibilidade das comunidades quilombolas na cobertura midiática sobre a transição energética. Das 1.001 fontes analisadas em matérias jornalísticas, apenas 1,4% eram de povos e comunidades tradicionais, incluindo quilombolas . Essa ausência de representação contribui para a marginalização dessas comunidades nos debates sobre políticas públicas e desenvolvimento sustentável.
A pesquisa destaca que as vozes mais ouvidas, quase 60%, são de empresas do setor energético e de representantes do poder executivo, particularmente do governo federal e dos governos estaduais. A mídia acaba, assim, corroborando não apenas com a invisibilização das comunidades afetadas pelos megaempreendimentos verdes, mas também consolida um discurso salvacionista sobre a transição energética que, na prática, legitima a criação de verdadeiras zonas de sacrifício no coração do país. As populações mais sacrificadas são as mesmas que historicamente sofrem com os resquícios de uma nação colonizada.
Dessa forma, os dados do IBGE e os demais aqui abordados reforçam a necessidade urgente de políticas públicas que atendam às demandas específicas das comunidades quilombolas. É fundamental garantir o acesso a serviços básicos, como saneamento e internet, e promover a inclusão dessas populações nos processos de tomada de decisão que afetam seus territórios. Somente com ações concretas e inclusivas será possível superar as desigualdades históricas e construir um futuro mais justo para todos e todas.