Como é possível que um dispositivo de comunicação instantânea entre pessoas conhecidas ou não tenha se transformado em um inferno de intrigas e reputações destroçadas? Refiro-me ao WhatsApp, a única “rede social” (ou antissocial) que conheço melhor. Peço aos leitores que me perdoem pela falta de interesse pelas outras. Costumo usar o aplicativo de mensagens para falar com analisandos que moram em outras cidades e não podem vir ao consultório. Espero que não me considerem uma pessoa muito primitiva por só fazer uso dessa rede social em situações de trabalho ou em conversas com meus filhos, que moram fora de São Paulo. Posso me explicar.
Antes de me afastar das redes sociais, já tive experiências de fastio beirando a angústia por ficar muito tempo olhando a telinha sem resistir diante de cada postagem. Sim, elas são viciantes. Pela facilidade do acesso, pela diversidade de “informações” (90% irrelevantes, quando não perniciosas), as plataformas, que deveriam apenas facilitar a comunicação, tornaram-se uma terra sem lei, onde as pessoas postam desde mensagens de carinho e saudades até injúrias e difamações. Sem contar, é claro, com o tempo que passamos vendo cachorrinhos fofos e gatinhos irresistíveis – cujo poder de adicção cresce na mesma proporção da inevitável sensação de vazio que não entendem de onde vem.
Hoje, uso apenas o WhatsApp, e com muita moderação. Assim como vários entre vocês, leitores, não demorei muito a descobrir o poder viciante das redes sociais, com seu repertório infindável de informações verdadeiras ou falsas, de novidades interessantes ou não, de pets encantadores. Quem já não viu jovens andando pelas ruas com risco de sofrer algum acidente, porque não conseguem desviar a atenção do smartphone, absortos com cada bobagem que aparece por ali? Uma pessoa pode desperdiçar horas com os olhos fixos na telinha, dizendo a si mesma “vou ver só mais esta postagem”, para em seguida não resistir à tentação de dar uma espiada na publicação seguinte, até se sentir deprimida ou irritada pelo excesso de passividade diante de “informações” quase sempre desinteressantes, que provocam no adicto das redes sociais um enorme sentimento de vazio.
A “atividade” à qual eles se entregam na tela do celular é, na verdade, uma forma de passividade. Então, para melhorar o tédio ou o mau humor (ou ambos) e tentar reverter essa passividade, nosso viciado começa a interagir com outros usuários das redes sociais, por vezes unindo-se aos linchamentos virtuais de pessoas que ele nem sabe quem são. O dispositivo que poderia dar ensejo a diálogos interessantes entre desconhecidos descamba, em pouco tempo, em uma arena de touradas, na qual o toureiro e o touro somos todos nós. Aí começa o adoecimento mental dos adictos das redes sociais.
O problema não pode ser menosprezado. Segundo o Digital 2024: Global Overview Report, publicado pela agência britânica We Are Social em parceria com a norueguesa Meltwater, o Brasil é o segundo país do mundo em que os usuários passam mais tempo online, com média de 9h13 diárias, atrás apenas da África do Sul, com 9h24. Boa parte desse tempo é dedicada ao trabalho, mas os indicadores de uso das redes sociais são igualmente superlativos. Os brasileiros gastam 3h37 por dia nessas plataformas, indicador que leva o País à terceira colocação no ranking mundial.
Estamos diante da formação de gerações que reduzem todo o tempo livre de suas vidas ao compartilhamento de imagens e frases que não foram criadas por elas. A capacidade de reflexão torna-se supérflua diante dos “acontecimentos” nos ambientes virtuais. “O que está rolando nas redes?”, indagam-se os adictos, como se não houvesse vida fora das telas.
“Não acredito em pessoas, acredito em dispositivos”, dizia o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981). Dispositivos de violência acionam, entre os seus usuários, mais violência. Pessoas que, mesmo dentro da lei, andam armadas, um dia hão de fazer uso do dispositivo mortífero que está às suas ordens. O superego, essa instância psíquica que nos orienta a viver (bem ou mal) dentro das condições do laço social, instiga o sujeito a agir com violência. Por quê? Porque ele pode. Para o superego, se você pode fazer algo que o atrai, você deve fazê-lo.
Existe boa dose de sabedoria entre grafiteiros que escrevem nos muros da cidade. Por isso, em vez de investirmos na violência que gera violência, seria melhor usar as redes sociais inspirados nos ensinamentos de José Datrino (1917-1996), o Profeta Gentileza. Ele usava as pilastras do Viaduto do Caju, na região portuária do Rio de Janeiro, para passar sua mensagem. A mais conhecida delas espalhou-se por todo o País: “Gentileza gera gentileza”. •
Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Terra sem lei’