Rezadoras Guarani Kaiowá fazem ritual em frente à vigília de fazendeiros que ameaçam retomada Yvy Ajerê, em Douradina (MS). Foto: Aty Guasu

Por Gabriela Moncau

Ocupações de terra, processos por meio dos quais povos originários recuperam territórios tradicionais da posse de não indígenas, são um instrumento de luta. Para Karai Tiago dos Santos, liderança Guarani Mbya da Terra Indígena (TI) Tenondé Porã, em São Paulo (SP), é assim que talvez “outros olhares” vejam as retomadas indígenas. “Mas para nós, é o que garante nossa continuidade”, explica.

Cada território indígena retomado “é uma terra a menos no mercado de capital”, caracteriza a organização Amigas da Terra (ATBr), que atua por justiça ambiental. Assim, retomadas indígenas têm sido alvo constante de ataques armados de jagunços e fazendeiros, muitos dos quais organizados pelo grupo Invasão Zero, envolvido na morte de Nega Pataxó no sul da Bahia.

“Quando falamos retomada”, afirma Dinamam Tuxá, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), “é no sentido de dizer que algo nos foi tirado. E que estamos reivindicando e retornando, retomando aquilo que um dia foi nosso e que, devido a esse processo muito violento de colonização, nos foi roubado.”

Autodemarcação diante das “promessas vazias dos brancos”

Boa parte das áreas retomadas no país são territórios já reconhecidos e delimitados como de ocupação tradicional indígena, mas que estão, por imbróglios judiciais e morosidade estatal, com o processo demarcatório estagnado.

É o caso, por exemplo, das sete retomadas feitas pelos Guarani Kaiowá na TI Panambi-Lagoa Rica, no Mato Grosso do Sul, e das outras sete feitas pelos Avá Guarani na TI Guasu Guavirá, no Paraná. A primeira está com a demarcação paralisada desde 2011. A segunda, desde 2018.

Ambos os territórios estão sobrepostos por fazendas e, sob os olhos da Força Nacional, têm sido cercados por caminhonetes e atacados por homens armados.

As retomadas são, assim, uma forma de autodemarcação, defende a Apib. “Que é dada devido à inoperância do Estado brasileiro em cumprir com sua função constitucional de demarcar as terras indígenas. Não demarcando, nós fazemos esse processo de autodemarcação, para garantir a nossa vida e os nossos direitos”, resume Dinamam.

Forma de cura

“O modo de viver Guarani não é ser espremido, com casa uma do lado da outra”, explica Laura. “Quem conhecer a nossa realidade aqui nas aldeias de Guasu Guavirá, dará razão para a gente fazer essas ampliações, essas retomadas.”

“Já estávamos doentes de permanecer tanto tempo confinados. Hoje quem se mudou para as retomadas parece que se sente mais livre, se sente bem”, segue ela: “porque retomar é também uma forma de se curar”.

Ancestrais, espíritos e encantados

O retorno às aldeias “dos ancestrais”, conta Karai Tiago, que é também membro da Comissão Guarani Yvyrupá (CGY), não acontece no plano mundano: “Os espíritos dos nossos ancestrais nos guiam. A retomada é feita nessa busca. É muito difícil compreendê-la, mas nós que somos indígenas conseguimos entender perfeitamente”.

Para o Cacique Babau, da TI Tupinambá de Olivença, a segunda maior da Bahia, a retomada é uma forma de oração. “Um ritual de recuperar não só a terra, mas a nossa existência. Não nos referimos só ao território, mas a tomar na mão a vida que foi tirada”.

Espaços de oposição à tutela

Estudioso das experiências de autonomia indígena no México e das retomadas no Brasil, o antropólogo Amiel Ernenek Mejía descreve, em um artigo, que as retomadas “não se encerram no universo dos conflitos fundiários”, tampouco são apenas “uma luta por recursos para melhorar as condições de existência material e imaterial dos indígenas”.

Mais que isso, diz Mejía, “as retomadas indígenas buscam ocupar e recuperam lugares onde estão as relações indispensáveis para a produção daquilo que os torna e mantêm indígenas”.

A origem

Questionado sobre a origem das retomadas, o cacique Babau Tupinambá atesta que, “desde que o europeu chegou no Brasil, nós nos organizamos em resistência. Essa resistência recebeu diversos nomes ao longo da história”.

Mas é a partir dos anos 1970, com a articulação indígena como um movimento popular nacional, explica, que se gesta o que viriam a ser as retomadas, com esse nome.

“No início dos anos 1980, começa a se dar um novo nome à luta, com povos do Nordeste como os Pataxó, Pataxó Hã-hã-hãe, Kiriri: a retomada”, narra Babau.

“Estavam dizendo que os indígenas só estavam na Amazônia. E, então, a gente tem que fazer uma guerra de retomar. Vivemos um estado de guerra. E temos que mostrar que estamos aqui e que não vão nos aniquilar”, afirma o cacique Tupinambá.

A fala faz lembrar um trecho da entrevista dada por Ailton Krenak na série documental Guerras do Brasil, dirigida por Luís Bolognesi. “Nós estamos em guerra. Eu não sei por que você está me olhando com essa cara tão simpática”, diz Krenak. “O seu mundo e o meu mundo estão em guerra. A falsificação ideológica que sugere que nós temos paz é para a gente continuar mantendo a coisa funcionando. Não tem paz em lugar nenhum”, atesta.

Laura conta que, no oeste do Paraná, as mulheres Guarani tomaram a frente das retomadas. “Porque olhamos para nossas crianças que ainda vão crescer e sentimos essa necessidade, para que eles tenham uma vida digna”, relata. “E nós não estamos com medo. Porque, para a gente, não importa se vamos morrer ou não, se vamos tombar ou não”, afirma a liderança Avá Guarani, “porque nós temos a certeza de que para a nossa geração futura terá valido a pena essa luta”.

*Nome alterado para a preservação da entrevistada.

Edição: Martina Medina

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 13/08/2024