O debate sobre drogas é uma batalha campal de ideia. No meio desse fogo cruzado, as vítimas muitas vezes são os fatos. Em um dos tiroteios mais recentes, a cetamina, um anestésico dissociativo, tem sido alvejada por uma saraivada de matérias superficiais, sensacionalistas, equivocadas e preconceituosas.
O caso envolvendo a empresária Djidja Cardoso, dona de uma rede de salões de beleza em Manaus, encontrada morta aos 32 anos, pode e deve suscitar discussões sobre o uso abusivo dessa e de outras substâncias.
A importância do cuidado com as informações veiculadas sobre a droga em questão ganha ainda mais relevância por causa da enorme repercussão da morte da empresária manauara.
Com o objetivo de trazer informações mais qualificadas para o debate, o blog conversou com diversos especialistas que pesquisam a cetamina. Todos concordam que a droga tem efeitos antidepressivos potentes, mas alertam que não há nenhum contexto seguro fora do ambiente médico que possa justificar sua utilização.
Estudos demonstraram redução da ideação suicida
Desenvolvida como uma droga anestésica e analgésica, a cetamina foi testada pela primeira vez em humanos na década de 1960. Começou a ser comercializada em 1970 e, devido ao uso recreativo, foi classificada em 1999 na lista 3 de substâncias controladas dos Estados Unidos.
Estudos realizados a partir dos anos 2000 demonstraram evidências dos efeitos antidepressivos da cetamina administrada em doses mais baixas que as anestésicas.
A forma intravenosa para depressão é fora da bula, mas é muito comum o uso off-label de medicações que têm sua segurança padronizada pela Anvisa.
“Pesquisas apontaram que a cetamina tem um efeito potente no tratamento de depressão bipolar e unipolar”, conta um especialista.
Na clínica, localizada na Vila Mariana, na zona sul da cidade, de agosto de 2023 até maio deste ano, foram atendidos aproximadamente 70 pacientes e realizadas cerca de 500 infusões de cetamina.
Estudos com cetamina demonstraram também um grande efeito na redução da ideação suicida e dos sintomas de anedonia (a falta de prazer pela vida), traços característicos em quadros graves de depressão.
É um tratamento seguro?
Na Unifesp, o tratamento completo de cetamina envolve cerca de oito aplicações. Segundo o médico, são duas doses por semana no primeiro mês, uma vez por semana nos meses subsequentes, com redução progressiva até completar mais ou menos seis meses.
“A cetamina é muito segura quando usada dentro de um contexto médico, mas não se deve usar fora de um ambiente clínico, da mesma forma que outros medicamentos anestésicos, como o propofol, por exemplo”, explica um especialista.
Quem deve buscar o tratamento com cetamina?
De acordo com especialistas, a indicação deve partir de uma avaliação de riscos e benefícios realizada pelo médico no momento do atendimento.
A indicação da bula, na forma intranasal, que é a padronizada, é para depressão resistente ao tratamento e com ideação suicida.
Causa dependência?
“A cetamina pode causar dependência, mas seu potencial não é tão alto quanto o de outras substâncias. No entanto, quando ocorre, pode ser muito grave. Por isso, é crucial usar com cautela”, explica um especialista.
“Com doses adequadas e supervisão médica, o uso é seguro”, acrescenta outro especialista.
Mecanismo antidepressivo
A cetamina é um anestésico dissociativo que pode ter uma função psicodélica, mas difere dos alucinógenos clássicos, como psilocibina, ibogaína, ayahuasca, mescalina e LSD.
O efeito anestésico dissociativo produz uma desconexão do corpo. Nas dosagens menores usadas na psiquiatria ela possui um efeito dissociativo, mas não anestésico.
O mecanismo pelo qual a cetamina atua como antidepressivo é complexo.
Cetamina pelo SUS
Tratamentos com psicodélicos através do SUS já são uma realidade também em Natal (RN). Há vários anos, o Hospital Onofre Lopes da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) realiza, inicialmente de forma pontual, a aplicação de cetamina subcutânea para pacientes com depressão resistente ao tratamento.
“Houve uma redução imediata na tendência suicida, ocorrida 24 horas após a dose inicial, que persistiu por sete dias durante o período de administração, e observamos níveis mais baixos de ideação suicida durante um acompanhamento de seis meses”, detalha um especialista.
‘Uso de substâncias que alteram a mente é inerente à condição humana’
O uso de substâncias que alteram a mente é inerente à condição humana, opina um especialista.
O médico critica o tom sensacionalista e maniqueísta com matizes morais que frequentemente turva o debate público sobre o tema.
O psiquiatra defende que a sociedade precisa ser informada tanto sobre os riscos do abuso recreacional de psicodélicos quanto sobre seu uso clínico em ambientes controlados, como é o caso da cetamina.