Fragilidades econômicas da Bolívia são um fator central para compreender uma história marcada por golpes de Estado, mas no caso do levante desta quarta-feira, não se deve desconsiderar o impacto do anti-evismo – ou seja, o repúdio ao ex-presidente Evo Morales – em setores das Forças Armadas. Ainda assim, há de se questionar o real tamanho de uma conspiração que, à primeira vista, parece se limitar a figuras muito próximas ao ex-comandante do Exército.
A avaliação é de Alina Ribeiro, pesquisadora no Núcleo de Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDAC-CEBRAP) e no Núcleo de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (NEL-UnB).
O presidente Luís Arce empossou a nova cúpula militar do país horas depois de integrantes das Forças Armadas e policiais tomarem a Praça Murillo e cercarem as sedes do governo e do Congresso. Responsável pela tentativa de golpe, o general Juan José Zúñiga, chefe do Exército até esta quarta, foi preso no início da noite, por determinação da Procuradoria-Geral. A detenção ocorreu na entrada da sede do Estado-Maior, em La Paz.
No início da noite, os militares começaram a se retirar das imediações dos palácios com seus tanques.
Para Ribeiro, doutoranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo, ainda será necessário refletir sobre a verdadeira extensão do movimento desta quarta. A impressão inicial da pesquisadora, contudo, é que ele envolveu apenas as unidades do Exército mais alinhadas em torno de Zúñiga. “E me pergunto se não foi uma tentativa pessoal. Até que ponto essa tentativa de golpe foi institucional? As Forças quiseram dar um golpe no governo? Isso entenderemos ao longo do tempo.”
Ela entende que a sequência de crises políticas a abalarem a Bolívia tem raízes nas debilidades da economia, na herança colonial e, mais recentemente, nas reações à figura de Evo Morales. Atualmente, o distanciamento entre ele e Arce sacode não apenas o Movimento ao Socialismo – partido de ambos -, mas amplas parcelas da sociedade.
Essa disputa entre Luís Arce e a figura de Morales, uma figura muito simbólica e muito importante na história recente da Bolívia, tende a complicar as coisas cada vez mais. Os movimentos sociais bolivianos estão divididos: dentro de um mesmo movimento há uma ala que apoia Arce e outra ala que apoia Evo. Isso gera uma certa confusão no sentido de não haver um projeto político claro no atual momento da Bolívia.
As eleições acontecerão em outubro do ano que vem e ainda não conseguimos olhar com clareza possíveis desenvolvimentos dessas articulações políticas.
É forte na Bolívia a discussão sobre a interferência das Forças Armadas na política?
A impressão que eu tenho é que atualmente as Forças Armadas já não são mais tão unitárias como eram no golpe de 2019. Mas o que aconteceu hoje certamente é um episódio para ficarmos bastante atentos e observando com muito cuidado a articulação nas Forças Armadas.
É bom lembrar também que o governo de Luís Arce simboliza um certo distanciamento da esquerda radical por parte do MAS. Morales era mais de esquerda radical do que Arce, e isso gera certas insatisfações dentro do partido ou em movimentos sociais que gostariam de um governo mais à esquerda. Mas, em relação às Forças Armadas, a impressão que tenho é que quanto menos inclinado à esquerda, menos elas vão se organizar para agir ativamente [contra o governo].
Me parece também que a tentativa de golpe de hoje se deu por uma questão muito particular, porque o ex-comandante, que é quem a liderou, foi demitido horas antes. É como se fosse uma retaliação, tanto que ele mobilizou as unidades do Exército que estavam sob o seu comando e se dirigiu ao Palácio Central.
Talvez seja cedo para pensar em possíveis mudanças, mas acho que as eleições no ano que vem serão impactadas por esse acontecimento de hoje. E o impacto pode ser um fortalecimento do MAS enquanto partido, mas esse fortalecimento depende muito de uma resolução do conflito entre Evo e Arce.
Essa divisão enfraquece bastante um partido que é fundamental para a história política boliviana, o partido mais forte da Bolívia hoje em dia. É como se a vida política nacional dependesse, de certa forma, da resolução das questões mais fundamentais do MAS.
Esses conflitos dizem respeito a um longo histórico de constituição da Bolívia enquanto país, mas não acho que que a história política da Bolívia se distingue em grande medida da história de outros países latino-americanos.
Ao meu ver, é uma questão bastante estrutural, embora seja um pouco abstrato falar sobre isso. É uma herança colonial, mesmo, que não permitiu que os países da região desenvolvessem bases econômicas, sociais e políticas e instituições fortalecidas. Mas alguns países acabam sofrendo mais com a instabilidade política, como é o caso da Bolívia.
A Bolívia teve alguns momentos muito importantes. Evo Morales é uma figura muito forte, porque protagonizou um processo de inclusão política muito intenso na Bolívia. A partir do primeiro governo de Morales, os indígenas passaram a ocupar cargos estatais e a influir no processo de formulação de políticas públicas.