A líder comunitária Juliana de Souza Silva, conhecida como Nega Juh, iria disputar pela primeira vez uma eleição. Aos 44 anos, reconhecida pela militância nos bairros Carmary e São Benedito, na Baixada Fluminense, Nega Juh era pré-candidata a vereadora pelo PL em Nova Iguaçu. Na noite do sábado 15, comia em um trailer na companhia do único filho, Alexander de Souza Gomes, de 27 anos, quando quatro homens encapuzados se aproximaram e dispararam diversas vezes contra os dois, que morreram na hora. O crime é investigado pela Delegacia de Homicídios da região e os policiais apontam traficantes locais, supostamente insatisfeitos com a candidatura, como prováveis mandantes.
A morte de Nega Juh soma-se a outros cinco casos de assassinato de pré-candidatos, provavelmente por motivação política, ocorridos no País desde o fim de abril. Em 23 de maio, o vereador Juliano Balbino, do PSC, foi executado em Paty do Alferes (RJ). Uma semana depois, foi a vez de Valmir dos Santos ser abatido a tiros em Umburanas, na Bahia. No Ceará, três vereadores foram assassinados entre 28 de abril e 9 de maio: Cesar Veras, do PSB, em Camocim, Erasmo Morais, do PL, no Crato, e Geilson Lima, do PL, em Icó.
A probabilidade de o quadro de violência agravar-se com a proximidade da votação, como aconteceu em 2016 e 2020, levou a ministra Cármen Lúcia, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a equiparar os atentados à disseminação das fake news no rol de ameaças ao processo eleitoral. “As próximas eleições deverão ver os atos de violência cada vez mais presentes”, avisou a ministra.
O TSE alerta para o aumento da violência política
Os números justificam a preocupação. Segundo a Assessoria Especial de Segurança e Inteligência do TSE, em 2020 foram registrados 99 homicídios ou tentativas de assassinatos de candidatos, mais do dobro dos casos registrados quatro anos antes.
A maioria dos ataques deu-se em cidades com menos de 200 mil habitantes, onde o velho coronelismo foi agravado pela infiltração do crime organizado.
Pablo Nunes, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, fez, em 2020, um levantamento da violência contra políticos durante o período eleitoral. Foram mais de 200 casos, de lesões corporais a homicídios, o que, segundo o pesquisador, revela o uso corriqueiro da violência nas disputas políticas.
Diretor do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia da UFRJ, Luiz Eduardo Motta lembra que os assassinatos em período eleitoral acontecem desde a Nova República. “Esse tipo de violência se dá pela disputa de espaços de poder nos municípios por candidatos que, às vezes, são do mesmo campo político”, afirma. “O Brasil vive uma guerra civil de caráter simbólico e ideológico. Infelizmente, é uma linha tênue para a violência física.”
Há dois tipos clássicos de violência política no Brasil, descreve Nunes. “O primeiro deles, o mais comum, é a violência política que se mistura com criminalidade e domínio territorial”, muito claro no caso das milícias cariocas. “O próprio conceito de milícia está intimamente ligado à política institucional. Há vereadores e deputados próximos a grupos milicianos, muitos são milicianos, e isso faz com que as contendas políticas se misturem de maneira muito forte com as disputas territoriais e pelo controle de serviços e recursos.” O segundo tipo tem a ver com a “conformação tradicional e cultural” das disputas políticas no País. “Muitas vezes entre famílias, por manutenção e controle do poder, com destaque para o interior e, mais especificamente, o Nordeste. Há famílias que disputam prefeituras de pequenas cidades por muitos anos, e essas trocas de poder acabam se ligando a um ciclo de vinganças que leva a um processo de vitimização de atores políticos.”
Nos últimos anos, os velhos coronéis e os “modernos” milicianos passaram a se confundir. “O poder político municipal é o principal agente econômico local. Controlar uma prefeitura significa, na maior parte das vezes, ter nas mãos as atividades econômicas do município. Daí, o poder político e institucional ser do interesse de grupos criminosos organizados”, resume o professor Felipe Borba, coordenador do Grupo de Investigação Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. As eleições municipais, concorda Borba, são mais violentas do que as nacionais ou estaduais, tanto no volume quanto na intensidade. “Há mais mortes, principalmente no mês que antecede a eleição, esse é o padrão. E a violência local não se encerra com o fechamento das urnas, permanece durante todo o ciclo político, mesmo que em número menor.”
A questão ideológica também é um fator de risco. Nesse ponto, o assassinato da vereadora Marielle Franco é emblemático, diz Motta. “Foi a morte de uma liderança de esquerda, num grande centro, assassinada por suas posições políticas. Não teve caráter pessoal, foi uma eliminação de um quadro ascendente da esquerda.” Motta diz temer que ataques possam se multiplicar na próxima campanha, “tendo em vista o quadro acentuado de polarização e a forma como a extrema-direita reage, fisicamente, às candidaturas de esquerda”.
Nas cidades menores, o velho coronelismo divide espaço com o crime organizado
Viúva de Marielle e pré-candidata à reeleição, a vereadora Monica Benicio, do PSOL, afirma que ter medo seria aceitar permanecer nas margens. “E isso não estamos mais admitindo. Agora é hora de lutar para ocupar todos os espaços, inclusive os de poder, pensando na urgência que é a necessidade de desmontarmos as relações estruturais de opressão.” Ceder às ameaças e não fazer campanha, prossegue, significa aceitar um “pacto de morte”. “É um cenário perigoso e assustador, que nos faz ter um cuidado redobrado com os nossos companheiros e companheiras, mas que deve ser enfrentado. Não vamos sair de cena. Ao contrário.”
Também pré-candidato pelo PSOL, o professor André Tenreiro afirma que, com o crescimento do reacionarismo, defender pautas da esquerda é algo difícil. “No Rio, isso se torna um ativismo de alto risco. Como defender o princípio da democracia em comunidades que têm donos? Como adesivar o vidro do carro com a propaganda de candidato do PSOL em uma área de milícia?” Tenreiro resume o dilema: “O candidato de esquerda está no caminho de todo tipo de crime organizado e por isso precisa ter uma coragem enorme para continuar na militância. É, literalmente, dar a vida por uma causa, já que pode ser eliminado a qualquer momento por um inimigo armado e sem nenhum limite ético”.
Integrante do Grupo Prerrogativas, o advogado Marco Aurélio de Carvalho afirma que o sistema de Justiça tem condições de garantir a segurança e a integridade dos candidatos. “Em última análise, isso representa a segurança e a integridade do próprio sistema democrático.” A partir da preocupação externada por Cármen Lúcia, pontua Carvalho, é preciso criar mecanismos para evitar situações que possam de alguma forma afetar os candidatos: “As ameaças têm de ser duramente repelidas e os responsáveis pedagogicamente apenados, para que não sejam estimulados novos atentados contra lideranças políticas”. Monica Benicio cobra maior ação do Poder Público diante das ameaças. “Precisamos exigir que autoridades e instituições tenham compromisso na garantia de um ambiente democrático. E isso significa criar políticas públicas que apontem um caminho de segurança para todos. Sem essas garantias não há democracia que se sustente.” •
Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Temporada de caça’