Tecnofascismo: como mais uma vez chegamos a esse ponto?, por Reynaldo Aragon
Por Reynaldo Aragon

Do Reichstag incendiado ao 8 de janeiro em Brasília, da Marcha sobre Roma ao avanço do tecnolibertarianismo, este ensaio mostra que a história repete seus erros quando a democracia se divide e hesita. Um texto visceral e combativo que revela como algoritmos, psyops e guerras culturais transformaram-se nas novas trincheiras do fascismo — e por que só uma frente ampla, lúcida e informacionalmente soberana pode impedir a repetição da tragédia.
Introdução — A pergunta que retorna
Como mais uma vez chegamos a este ponto. A pergunta se impõe neste sete de setembro que celebra independência e revela dependências. O século promete emancipação pela técnica e devolve servidão pela tela. O que chamamos de tempo presente é um palimpsesto de erros antigos reescritos com tinta de silício. O fascismo não é um fantasma preso ao entre-guerras. É uma técnica de poder que reaprende a falar a língua do nosso tempo e que encontra, nas arquiteturas digitais, uma casa confortável. A independência nacional só tem sentido se vier acompanhada de independência cognitiva e informacional. Sem isso, a bandeira hasteada é apenas pano ao vento.
Gramsci ensinou que toda política digna desse nome é disputa de hegemonia. Não se governa apenas por força. Governa-se por uma educação lenta do senso comum que faz do comando um hábito e do hábito uma moral. A história do fascismo é a história de blocos dominantes em crise que decidem reorganizar o mundo encurtando o campo do possível. No século vinte a pedagogia da obediência passou por jornais de massas, rádios, cinejornais e comícios coreografados. No século vinte e um a pedagogia do consentimento circula por interfaces que ordenam, silenciam e premiam. As antigas ligas de rua reaparecem como milícias digitais que marcham sobre feeds. Os intelectuais orgânicos do capital deixam a tribuna e entram no código. O algoritmo escolhe o que existe. O design escolhe como existe. A métrica escolhe se continua a existir.
Se a hegemonia é uma guerra de posição, nossas trincheiras hoje são timelines. Cada gesto mínimo dentro delas é uma microdecisão programada que modela a imaginação do corpo social. O behaviorismo falava em estímulos e reforços. As plataformas transformaram o diagrama de Skinner em urbanismo da atenção. Curtiu, sobe. Discordou, some. O que parecia psicologia experimental tornou-se infraestrutura civilizacional. E o que parecia livre expressão tornou-se logística de subjetividades onde a impressão de espontaneidade encobre uma governança invisível. Esse é o ponto cego do campo democrático em nosso tempo. O poder organizou um ecossistema que premia ressentimento, acelera identidades de conflito e monetiza a ruptura da confiança mútua. A mentira não vence por ser mais convincente. Vence por ser mais distribuída.
A esquerda e a direita democrática conhecem este enredo. Já subestimaram antes o inimigo que se apresentava como grotesco, porém funcional. Já acreditaram que a legalidade formal bastaria para conter a violência paraestatal. Já dividiram forças em querelas sobre detalhes enquanto a janela do possível era deslocada. Gramsci nomeou esse erro estratégico. Quem não compreende o terreno real da guerra de posição perde nas sombras antes de perder nas urnas. O fascismo não se apresenta primeiro como golpe. Apresenta-se como costume. Fala em ordem. Fala em família. Fala em liberdade por meio do mercado quando a liberdade real está desativada no cotidiano. O tecnolibertarianismo faz esta tradução contemporânea. Ele promete autonomia ao indivíduo conectado enquanto transfere soberania para infraestruturas privadas que ninguém elegeu. O MAGA brada com megafone e convoca cruzadas. O tecnolibertarianismo sussurra com UI elegante e convoca adesão. Um grita e legitima o outro. A praça e o servidor operam em sincronia.
Não escrevo estas linhas para repetir ou moralizar. Escrevo para desnudar. Esta é uma investigação sobre mecanismos e responsabilidades. O fascismo não é acidente de percurso que nos surpreende numa esquina escura. É obra da vontade de classes em momentos de crise, reempacotada por tecnologias que transformam hábitos em destino. A pergunta por que chegamos de novo a este ponto exige outra pergunta que dói mais. Onde e quando entregamos as chaves da formação do senso comum. Em que momento consideramos aceitável que a conversa pública fosse terceirizada para empresas orientadas por métricas de engajamento. Em que momento o jornalismo perdeu o fôlego para a pedagogia paciente e aceitou a ansiedade do clique. Em que momento a escola se desconectou das linguagens vivas dos bairros e das redes e se contentou com protocolos. Em que momento a militância se apaixonou pela pureza que isola e esqueceu que hegemonia é capacidade de síntese, não de purificação.
Não há vácuo de hegemonia. Onde o campo democrático hesita, a extrema-direita ocupa. Onde o Estado renuncia ao papel pedagógico, a teologia do ressentimento faz catequese. Onde a infraestrutura pública se degrada, o capital constrói plataformas que parecem serviço e funcionam como governo. O resultado é um Estado integral privado, palavra por palavra gramsciana, que decide o fluxo das conversas, os marcos da visibilidade e as formas de remuneração simbólica. Nesse ambiente, a política se torna mais afetiva do que programática e a verdade se mede em calor, não em provas. É esta conversão da economia da atenção em economia do poder que precisa ser nomeada com precisão. Democracias não sucumbem apenas por golpes. Sucumbem por erosão.
Este ensaio toma partido da clareza. Propõe que olhemos para trás sem nostalgia e para adiante sem ilusão. As cenas que revisitaremos — Roma 1922, Berlim 1933, São Paulo 1934, Brasília 2023 — não são fotografias de museu. São espelhos. Neles se veem as boas intenções que se renderam ao cálculo, as leis que cederam à exceção, as esquerdas que se feriram por vaidade, as direitas democráticas que abriram a porta por conveniência. Neles se vê a gramática da dominação convertida em gramática de interface. Neles se vê que a independência que celebramos no calendário será vazia enquanto não ousarmos falar de soberania informacional como condição de possibilidade da liberdade política.
O objetivo é duplo e simples. Primeiro, reconstituir com rigor histórico e materialista como erros concretos abriram caminho a regimes de exceção e como esses erros retornam sob novas formas. Segundo, nomear sem eufemismo o que fazer para não repetir. Isso significa enfrentar a infraestrutura, reorganizar a cultura, formar intelectuais orgânicos populares, tecer frentes de posição que não se desfaçam no dia seguinte à eleição. Significa revalorizar a paciência estratégica e abandonar a ilusão de que a técnica, deixada a si mesma, resolverá o problema que a própria técnica ajudou a criar.
Chegamos de novo a este ponto porque não disputamos com seriedade a fabricação cotidiana do consentimento. Porque confundimos comunicação com publicidade. Porque reduzimos educação política a calendário eleitoral. Porque tratamos a tecnologia como ferramenta e não como ambiente. Este texto não promete salvação. Promete incômodo. Propõe que chamemos as coisas por seus nomes e que aceitemos o trabalho lento da construção hegemônica em tempos de velocidade. A independência que comemoramos precisa reaprender a significar. Sem povo que fale por si, falarão as máquinas por ele. Sem corpo coletivo que organize sua palavra, organizarão nossa fala os que lucram com o ruído.
Se há um fio que percorre tudo, ele é claro. O fascismo é paciência cruel. A democracia precisa ser paciência obstinada. Este ensaio é um convite para trocar pressa por método, ressentimento por projeto e improviso por estratégia. A pergunta que retorna só se cala quando a respondemos com prática organizada. Aqui começa essa resposta.
O fascismo no século XX: lições amargas do passado
O fascismo não surgiu como acidente, mas como resposta estratégica de classes dominantes em crise, apoiadas por massas desorganizadas e democracias divididas. Foi sempre a tradução política do medo das elites diante do avanço popular. Na Itália, após o Biennio Rosso, quando trabalhadores ocupavam fábricas e experimentavam conselhos operários, a burguesia encontrou nas esquadras de Mussolini a força de choque para esmagar essa insurgência. O erro da direita liberal foi abrir a porta acreditando que poderia domesticar a fera: Giovanni Giolitti incluiu fascistas no Bloco Nacional, e a monarquia, hesitante diante da Marcha sobre Roma em 1922, preferiu ceder o governo em nome da ordem. A lição é cristalina: elites que apostam em cooptar o fascismo terminam por entregarlhe o poder.
Na Alemanha, o padrão se repetiu em outra escala. A República de Weimar cambaleava entre a hiperinflação e o peso do Tratado de Versalhes, e a crise de 1929 abriu as portas ao desastre. O chanceler Brüning respondeu com deflação e austeridade, mergulhando milhões no desemprego e corroendo qualquer legitimidade do regime. A direita conservadora, na esperança de manipular Hitler, entregou-lhe a chancelaria em 1933. Do outro lado, a esquerda implodia: comunistas e social-democratas trocavam golpes sectários, o KPD tratando a SPD como “social-fascista”, enquanto os nazistas cresciam nas ruas. O incêndio do Reichstag forneceu o pretexto para suspender direitos e instaurar a exceção como regra. Mais uma vez, a combinação de elites cúmplices e esquerda dividida pavimentou o caminho para a catástrofe.
Na Espanha, a tragédia seguiu roteiro semelhante. A Segunda República prometia reforma agrária e secularização, mas a lentidão e as disputas internas enfraqueceram sua base. Quando Franco se ergueu em armas em 1936, a esquerda fragmentou-se em múltiplas trincheiras: comunistas, socialistas, anarquistas e o POUM lutaram mais entre si do que contra o inimigo comum. Enquanto isso, Alemanha e Itália enviavam apoio maciço a Franco, e França e Reino Unido se refugiaram na covarde política da não-intervenção. A República morreu não apenas pela força das armas, mas pela divisão de seus defensores e pela omissão dos que poderiam tê-la sustentado.
Na França, as ligas de extrema-direita ocuparam as ruas em fevereiro de 1934 e testaram os limites da democracia. A Frente Popular de Léon Blum conquistou avanços sociais em 1936, mas sofreu sabotagem patronal, fuga de capitais e, em nome da estabilidade, anunciou uma “pausa” que desmobilizou sua base. O erro fatal foi repetir a não-intervenção diante da Guerra Civil Espanhola, isolando seus aliados e fortalecendo o fascismo internacional. Quando os tanques alemães atravessaram as fronteiras em 1940, o Estado francês dividiu-se e entregou Vichy ao colaboracionismo. Mais uma vez, a hesitação e o apaziguamento abriram a porta para a derrota.
Portugal e Japão seguiram caminhos diferentes, mas convergentes. Em Portugal, a instabilidade da Primeira República levou ao golpe de 1926 e à ascensão de Salazar, que consolidou o Estado Novo em 1933, apoiado no corporativismo, na Igreja e na polícia política. No Japão, as Leis de Preservação da Paz de 1925 esmagaram movimentos populares, enquanto militares se autonomizaram do poder civil. Golpes sucessivos nos anos 1930 transformaram o império em máquina de guerra, projetando o autoritarismo para além das fronteiras. Em ambos os casos, elites entregaram o destino do país à promessa de ordem, transformando autoritarismo em solução.
No Brasil, a Ação Integralista Brasileira chegou a mobilizar centenas de milhares sob o lema “Deus, Pátria e Família”. A esquerda, isolada e sectária, precipitou a Intentona de 1935, que ofereceu ao governo o pretexto para repressão ampla. A Frente Única Antifascista mostrou força na Batalha da Praça da Sé em 1934, barrando os integralistas, mas não conseguiu transformar a vitória em projeto duradouro. Em 1937, Vargas instaurou o Estado Novo apoiado no falso Plano Cohen, fabricado como ameaça comunista. O integralismo cresceu nos vácuos da democracia e foi contido apenas quando o próprio Estado autoritário monopolizou a exceção.
A síntese dessas histórias é brutal: elites liberais que acreditaram poder controlar o fascismo e acabaram devoradas; esquerdas fragmentadas que não souberam se unir; democracias que confiaram na lei enquanto a violência paraestatal se organizava nas ruas; países que escolheram a neutralidade e colheram a submissão. Gramsci nos advertia: onde a hegemonia democrática hesita, o fascismo ocupa; onde o campo popular se divide, o bloco autoritário se recompõe; onde se confia apenas na legalidade, a exceção se torna norma. O fascismo do século XX não é apenas memória. É aviso.
O presente em espelho: fascismo reconfigurado
O fascismo do século XXI não veste mais camisas negras nem organiza marchas sobre capitais. Ele desfila no anonimato digital, veste avatares e hashtags, e convoca multidões não pelas praças, mas pelos feeds. Seu terreno de batalha não é a fábrica ocupada nem o parlamento incendiado, mas a subjetividade conectada. O que no século XX se apresentava como mobilização de massas em ruas e comícios, hoje se condensa em milícias digitais, bots, fake news e campanhas de desinformação que dissolvem a confiança social. A pedagogia da obediência que antes usava rituais, símbolos e bandeiras agora se traduz em notificações, métricas de engajamento e algoritmos de recomendação. O fascismo reconfigurado opera na lógica da guerra híbrida: mistura violência discursiva, manipulação informacional e assédio psicológico em larga escala para corroer as instituições democráticas.
Nos Estados Unidos, o movimento MAGA de Donald Trump reativou um nacionalismo branco, religioso e conspiratório que desafia abertamente a democracia liberal. É a versão estridente e de megafone da nova extrema-direita. Já no Vale do Silício, o tecnolibertarianismo apresenta-se como discurso suave de liberdade e inovação, mas cumpre a mesma função: corroer a capacidade regulatória do Estado e entregar soberania às plataformas. De um lado, o grito de guerra; do outro, o sussurro sedutor. Diferentes na forma, complementares no efeito. O nacionalismo cristão do MAGA e a ideologia libertária do Vale formam um bloco histórico funcional: um mobiliza afetos e ressentimentos, o outro captura infraestruturas e regula a vida social por termos de uso.
No Brasil, o laboratório da guerra híbrida latino-americana, o bolsonarismo mostrou como religião, algoritmos e ressentimento podiam ser convertidos em força política. O 8 de janeiro de 2023 não foi improviso, mas a culminação de meses de incubação digital. Assim como o Reichstag foi incendiado para justificar a exceção, Brasília foi invadida para performar a ruptura. As milícias digitais que antecederam o ato operaram como legiões virtuais, treinadas para condicionar afetos, alimentar ódio e deslegitimar instituições. A lição é dolorosa: não se trata apenas de discurso radical, mas de infraestrutura organizada de mobilização.
Na Europa, a ascensão de partidos neonazistas e nacional-populistas revela que a história continua a se repetir. No leste, governos capturam judiciário e mídia sob a justificativa da soberania nacional; no oeste, ligas anti-imigração e partidos eurocéticos colonizam o debate público, deslocando a janela do possível cada vez mais à direita. O que antes era discurso de guetos hoje pauta parlamentos. O apaziguamento e a hesitação, mais uma vez, cumprem o papel de abrir caminho.
O fascismo contemporâneo aprendeu a explorar a arquitetura informacional como arma. Cambridge Analytica mostrou que dados pessoais podiam ser transformados em munição eleitoral. O Project 2025 nos EUA escancara que a extrema-direita não pretende apenas ganhar eleições, mas capturar o Estado em seus níveis mais profundos, aparelhando burocracias, sufocando políticas públicas e neutralizando a resistência. A guerra cultural de Gramsci transformou-se, no século XXI, em guerra algorítmica. Se antes a batalha era pela escola, pela igreja e pelo jornal, hoje é pelo feed, pelo app e pelo código.
O campo democrático, entretanto, repete erros do passado. Fragmenta-se em disputas internas, subestima a profundidade da ameaça, fetichiza a legalidade como se leis bastassem para conter legiões digitais, e delega à iniciativa privada a governança da esfera pública. Como no entre-guerras, hesita diante da violência e do ódio organizados. O resultado é um espelho perverso: o fascismo aprendeu com a história, mas a democracia não.
O presente, portanto, não é repetição mecânica, mas repetição transformada. O fascismo reconfigurado não é cópia do século XX, mas variação da mesma lógica: resposta autoritária à crise do capital, mediada por novas tecnologias. O erro seria pensar que estamos diante de um fenômeno novo e imprevisível. Não estamos. Estamos diante da mesma tragédia com novos instrumentos. E a pergunta que nos assombra permanece: por que, sabendo disso, ainda chegamos a este ponto?
As lentes críticas do ensaio
Para compreender o fascismo reconfigurado, não basta descrevê-lo em sua superfície. É preciso examinar as engrenagens que o sustentam. Behaviorismo, marxismo, ciências sociais, comunicação e tecnologia são lentes que, quando articuladas pelo materialismo histórico-dialético, revelam como comportamento, estrutura e técnica convergem em uma nova pedagogia da dominação.
O behaviorismo nasceu como tentativa de reduzir o homem a um organismo condicionado por estímulos e respostas. O que foi laboratório de Skinner tornou-se arquitetura de plataformas digitais. Cada like é reforço positivo, cada cancelamento é punição. A timeline é a caixa de Skinner global, um espaço em que milhões de sujeitos são treinados a reagir, repetir e se adaptar a padrões invisíveis de recompensa. O fascismo sempre precisou de rituais: o braço erguido em Roma, o hino entoado em Nuremberg, a saudação integralista nas praças brasileiras. Hoje, os rituais se dão em cliques e compartilhamentos, mas cumprem a mesma função: coreografar comportamentos em escala massiva, transformar repetição em obediência e obediência em senso comum.
O marxismo nos lembra que nenhuma forma política surge do nada. O fascismo do século XX foi a resposta de uma burguesia ameaçada pelo avanço socialista. O fascismo do século XXI é a resposta de elites transnacionais ameaçadas pela crise de legitimidade da globalização neoliberal. Se ontem o capital industrial financiou Mussolini e Hitler, hoje o capital financeiro e as Big Techs financiam novas formas de autoritarismo. Os algoritmos não são neutros: são os intelectuais orgânicos do capital digital, moldando consciência e delimitando o campo do possível. Gramsci escreveria que o feed é a nova praça pública, e que a batalha pela hegemonia cultural hoje se trava no código.
As ciências sociais, divididas por décadas em especializações fragmentárias, precisam recuperar a análise da totalidade. O fascismo não se importa com fronteiras disciplinares: ele atua na economia, na cultura, na psicologia e na religião ao mesmo tempo. Quando a academia se perde em relativismos pós-modernos, abandona a luta pela interpretação da realidade e deixa espaço para que o obscurantismo ofereça explicações fáceis. É aqui que o materialismo histórico-dialético mantém sua força: só ele é capaz de recompor estrutura e superestrutura, mostrar como as mudanças tecnológicas não são neutras, mas se inscrevem no conflito de classes e reconfiguram a luta pela hegemonia.
A comunicação científica e política é outro terreno crucial. O fascismo sempre operou pelo anti-intelectualismo e pela negação da ciência. Os integralistas ridicularizavam Darwin; os nazistas fabricaram uma “ciência racial”; os negacionistas de hoje espalham dúvidas sobre vacinas e clima. A estratégia é a mesma: destruir a confiança coletiva no conhecimento para substituir razão por fé cega e ciência por dogma. O erro do campo democrático é não transformar ciência em linguagem popular, deixando que think tanks, influenciadores e pregadores ocupem esse espaço com discursos sedutores e falsos. Gramsci já alertava: a hegemonia não é apenas controle material, mas também pedagogia moral e intelectual. A batalha pela verdade é também batalha pela forma como ela é comunicada.
Por fim, a tecnologia da informação. O rádio foi a arma do fascismo clássico; a televisão, a vitrine das ditaduras do pós-guerra; hoje, os algoritmos são a infraestrutura da política. Plataformas são Estados integrais privados: definem o que pode circular, estabelecem regras de visibilidade, organizam fluxos de opinião. Governam sem voto, punem sem processo, premiam sem critério público. O erro do campo democrático tem sido aceitar a ficção da neutralidade técnica, como se arquitetura fosse apenas engenharia e não poder. Mas cada linha de código é também uma linha de comando. Cada regra de moderação é também lei. Cada design de interface é também pedagogia política. E quando o Estado abdica de regular, abdica de governar.
Essas cinco lentes mostram a mesma conclusão: o fascismo de hoje é continuidade transformada do fascismo de ontem. Não é resíduo irracional, mas projeto racional de classes que se reorganizam. Ele se alimenta do condicionamento comportamental, da crise do capital, da fragmentação das ciências, do desprezo pela verdade e da captura da tecnologia. Só compreendendo essa totalidade é que podemos evitar repetir os erros históricos.
Lições para hoje: o que não repetir, o que construir
O fascismo reconfigurado nos devolve o espelho da história. O que vemos nele não são apenas rostos diferentes, mas os mesmos gestos de hesitação e os mesmos erros estratégicos repetidos com outras cores. O primeiro erro é o apaziguamento. Assim como liberais italianos e alemães acreditaram que poderiam controlar Mussolini e Hitler, elites atuais imaginam que podem tolerar ou negociar com a extrema-direita em nome da estabilidade. Cada gesto de tolerância apenas legitima o inimigo. O fascismo nunca é domado: ele é sempre alimentado pelo espaço que lhe concedem.
O segundo erro é o sectarismo. A esquerda do entre-guerras, ao dividir-se entre comunistas e social-democratas, abriu caminho para que o nazismo crescesse. Hoje, fragmentamos forças em identitarismos pulverizados, em personalismos que competem entre si, em vaidades que pesam mais que o perigo comum. Gramsci já dizia: hegemonia é síntese, não purificação. Onde a esquerda se fecha em trincheiras internas, o fascismo avança no terreno aberto.
O terceiro erro é o fetichismo do legalismo. Democracias do século XX confiaram nas constituições e nas instituições formais, enquanto milícias de rua já corroíam o chão da ordem. Hoje, confiamos que tribunais e leis bastarão para conter enxames digitais, campanhas de ódio, golpes informacionais. A lei é necessária, mas nunca suficiente: ela precisa de músculo social que a sustente. Onde a sociedade civil não se organiza, a legalidade vira peça decorativa em salões já ocupados.
O quarto erro é a neutralidade tecnológica. Assim como ontem se acreditava que a imprensa ou o rádio eram meros veículos, hoje muitos aceitam a ficção de que algoritmos são ferramentas neutras. O campo democrático repete a ilusão fatal: delega a governança da esfera pública às plataformas privadas, esperando que interesses de lucro garantam liberdade. O resultado é a captura do comum. Cada feed não regulado é uma praça pública privatizada; cada algoritmo opaco é um juiz sem rosto que decide o que existe e o que desaparece.
Evitar a repetição desses erros exige construir. Construir exige método, paciência e clareza. O primeiro passo é uma frente ampla democrática que não se dissolva em calendários eleitorais, mas que funcione como guerra de posição prolongada. A democracia não é rito de urna: é musculatura cultural. Precisa de alianças permanentes entre movimentos, sindicatos, coletivos, criadores de conteúdo, escolas, universidades e mídias públicas. Sem frente, cada setor luta sozinho; unidos, formam um bloco histórico capaz de disputar hegemonia.
O segundo passo é formar e sustentar intelectuais orgânicos populares. Gramsci nos lembra que todo grupo social precisa de intelectuais que organizem sua visão de mundo. Hoje, esses intelectuais são também influenciadores, educadores digitais, jornalistas independentes. É preciso financiar, proteger e escalar esses agentes, para que o senso comum não seja moldado apenas pelos pregadores do ódio e pelos engenheiros do capital digital.
O terceiro passo é a soberania informacional e tecnológica. A independência que celebramos é vazia se não controlamos nossos dados, nossas redes, nossas infraestruturas. O fascismo contemporâneo não marcha com botas: marcha com cabos submarinos e servidores. Reagir a isso significa criar nuvens soberanas, plataformas públicas, regulação firme e transparente, letramento digital popular. Sem soberania informacional, toda democracia é refém.
O quarto passo é a contra-hegemonia cultural. O fascismo sempre entendeu que cultura é mais poderosa que baioneta. Por isso, organizou músicas, desfiles, símbolos, filmes, hoje memes, vídeos e podcasts. O campo democrático precisa recuperar a centralidade da produção cultural: ocupar estética, linguagem e afetos. O combate não é só contra fake news: é disputa pelo imaginário. Sem estética popular que inspire, a verdade sozinha é insuficiente.
As lições são duras, mas claras: não repetir apaziguamento, sectarismo, legalismo cego e neutralidade tecnológica; construir frente ampla, intelectuais populares, soberania informacional e contra-hegemonia cultural. A democracia só sobrevive se se tornar ativa, paciente e organizada. O fascismo é paciência cruel. Resistir é ser paciência obstinada.
Conclusão — Manifesto contra o tecnofascismo
Como mais uma vez chegamos a este ponto? A pergunta não é retórica, é acusação. Chegamos porque as democracias hesitaram, porque elites preferiram cálculo à coragem, porque o campo progressista confundiu pureza com estratégia, porque entregamos a infraestrutura da vida social a empresas que transformaram engajamento em mercadoria e ódio em negócio. Chegamos porque esquecemos que hegemonia não é feita apenas de votos, mas de pedagogia lenta, cotidiana, paciente.
O fascismo do século XXI não queima livros: ele incendeia a confiança. Não marcha sobre capitais: ocupa feeds. Não precisa de censores oficiais: basta-lhe a lógica de recomendação que premia o ressentimento e silencia a divergência. Ele é o velho projeto da dominação com nova máscara tecnológica. É o mesmo pacto das elites com a violência, mas agora codificado em termos de uso. É o mesmo desprezo pela democracia, mas agora distribuído em pacotes de dados.
A independência que celebramos em calendários só terá sentido se for também independência cognitiva e informacional. Sem soberania sobre as linguagens e as infraestruturas, a bandeira é pano sem pátria. Não basta defender instituições como quem defende paredes de uma casa abandonada. É preciso reconstruí-las com alicerces novos: educação crítica, cultura popular, tecnologia pública, comunicação democrática. É preciso formar intelectuais orgânicos que falem a língua do povo, ocupar estéticas, inventar narrativas, disputar a imaginação. É preciso erguer frentes amplas que não temam divergência, mas saibam que unidade é questão de sobrevivência.
Este ensaio não é um exercício acadêmico. É um chamado. É a recusa a aceitar que a história seja condenada à repetição. É o alerta de que, se não agirmos com lucidez e firmeza, o fascismo digital consolidará o que o fascismo clássico apenas ensaiou: o controle integral da vida pela pedagogia do medo. O inimigo já entendeu a guerra de posição; cabe a nós organizar a contra-ofensiva.
Não há vácuo de hegemonia. Onde o campo democrático hesita, o tecnofascismo ocupa. Onde a sociedade se divide, o algoritmo faz a síntese. Onde falta coragem, sobra tirania. A história exige de nós não apenas indignação, mas método; não apenas memória, mas construção; não apenas denúncia, mas ação.
O fascismo é paciência cruel. A democracia, se quiser viver, precisa ser paciência obstinada. Este é o manifesto de combate: ocupar cada espaço, disputar cada narrativa, construir soberania informacional e cultural como condição de liberdade. Não perguntaremos mais como chegamos a este ponto. Perguntaremos, de agora em diante, como saímos dele.
Ensaio publicado originalmente em <código aberto>
Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. Editor do codigoaberto.net É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.
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