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Tarifas Bombril: 1001 Utilidades

por Monica De Bolle

Esse não é um artigo sobre publicidade, mas as peças da Bombril foram tão bem feitas que até hoje elas têm mil e uma utilidades. Na época do meu livro sobre o governo Dilma, “Como Matar a Borboleta Azul”, de 2016, recorri aos anúncios da Bombril para abordar a política econômica de mil e uma utilidades daquela ocasião—vale lembrar que, naquela altura, a política econômica no mundo todo passava por inovações e pela multiplicação de objetivos em resposta às sequelas da grande crise global de 2008. Agora é a vez das tarifas. Um instrumento, ao menos mil e um objetivos.

Em economia, e na prática da adoção de medidas, aprende-se rápido que a formulação de múltiplos objetivos para um único instrumento pode comprometer aquilo que se pretende. Por exemplo, se o banco central de um país decide usar as taxas de juros tanto para conter a inflação, quanto para impulsionar o crescimento, há circunstâncias em que esses dois propósitos haverão de entrar em conflito. Se a inflação está alta, a autoridade monetária deveria elevar os juros. Porém, se ao mesmo tempo a economia está dando sinais de fraqueza, talvez fizesse mais sentido reduzir os juros. Como agir nessa situação quando o instrumento—os juros—são usados para alcançar ambos objetivos? Evidentemente, a resposta não é óbvia pois a economia está presa em um dilema, no caso, um dilema estagflacionário—mais sobre isso a seguir.

No caso das tarifas de Trump, como sabemos pelo exemplo brasileiro, o que as motiva não são apenas as razões comerciais. Até aí não há nada de muito novo. Conforme documentei no livro que lancei esse ano, The New Economic Nationalism, países distintos lançaram mão de tarifas por razões diversas ao longo da história. A novidade de Trump não está na diversidade de motivações, mas na sua aplicação simultânea. Um rápido apanhado das justificativas dadas pelo governo Trump para a imposição de tarifas extraordinárias sobre países distintos revela as seguintes motivações para o uso desenfreado desse instrumento comercial:

  1. Promover ambiente favorável à reindustrialização, isto é, ao ressurgimento de setores produtivos que deixaram de atuar nos Estados Unidos.
  2. Alcançar objetivos diversos que reforcem a segurança nacional. Essa justificativa é intencionalmente vaga para que possa ser aplicada à praticamente qualquer situação.
  3. Reduzir o déficit externo.
  4. Gerar receitas para os cofres públicos.

Vale a pena pensar nas chances de sucesso de cada um desses objetivos. O primeiro está bem alinhado com as experiências dos países que analisei no livro. Em todos os estudos de caso avaliados—foram cerca de 12—justificativas para o protecionismo invariavelmente ressaltavam a necessidade de usar tarifas para favorecer setores domésticos em vias de construção ou reconstrução. Ou seja, barreiras tarifárias eram, via de regra, vistas como parte fundamental das políticas industriais que esses países decidiram adotar. Objetivos atrelados à segurança nacional eram raros, e a meta de reduzir o déficit externo por meio de tarifas não existia. Alguns países até comemoraram o aumento das receitas do governo proveniente das tarifas, mas esse não era o intuito designado para o instrumento. As experiências mostraram que industrializar e/ou reindustrializar valendo-se do protecionismo duro pode até “dar certo”, mas o custo tende a ser alto e acumulam-se muitas ineficiências. Basta, por exemplo, olhar as políticas de substitutição de importações na América Latina e o desempenho frustrante da indústria na região.

Na mesma linha, o efeito das tarifas sobre o déficit externo nada tem de óbvio. Quando um país adota tarifas de importação sobre um conjunto de produtos, as importações aumentam de preço, o que desestimula a demanda por esses bens e serviços, em tese melhorando a posição externa do país. No entanto, os efeitos não param aí. Caso parte dessas importações seja usada para produzir bens que o país exporta, o encarecimento dos insumos também tenderá a reduzir as exportações devido ao aumento de custo.

Diante disso, já não é possível afirmar com qualquer grau de certeza o que acontece com o déficit externo quando se impõe uma tarifa. Qualquer economista com relativamente pouco treinamento formal sabe disso, razão pela qual países evitam justificar tarifas pelos seus impactos imprevisíveis na balança comercial. Outro problema—mas sobre esse não me estenderei—é que o “déficit externo” não é apenas o resultado da balança comercial. Tipicamente, quando nos referimos ao tal déficit externo, estamos falando do resultado da conta corrente do balanço de pagamentos. Há muitos itens na conta corrente do balanço de pagamentos de um país, inclusive certos tipos de transações financeiras que não são afetadas por tarifas. Logo, as asserções de Trump sobre como suas tarifas haverão de reverter o déficit na conta corrente do EUA são todas equivocadas.

Quanto à geração de receitas, tarifas são um imposto. Em um primeiro momento, quando se eleva ou se adota uma tarifa, há um impacto positivo nas receitas do governo, tal qual ocorreria com uma alta dos tributos. Entretanto, como as tarifas tipicamente ocasionam alguma alta de preços, é possível que consumidores deixem de consumir os produtos afetados de modo parcial ou total. Tanto em um caso, quanto no outro, uma queda da demanda por importações as reduziria, impactando negativamente as supostas receitas extraordinárias. Ou seja, o efeito de longo prazo do protecionismo sobre as contas públicas é, na melhor das hipóteses, muito pequeno. Na verdade, esse efeito pode até ser negativo caso a queda da demanda por importações seja muito abrupta—a intensidade da queda e o efeito final dependem daquilo que os economistas chamam de “elasticidades”, assunto sobre o qual escreverei futuramente.

Em suma, tarifas não só não são panaceia, como a aplicação amadora e mal-articulada desse instrumento pode ter consequências bastante ruins para o país que as adota, mesmo quando esse país é a maior economia do planeta.

As Tarifas de Trump, a Economia dos EUA, O Brasil

As tarifas de Trump, portanto, têm mil e uma utilidades inúteis. Digo isso pois se as justificativas elencadas não só não têm garantia de sucesso, como também introduzem a possibilidade de fracasso e perdas, as tarifas são um instrumento demasiado ineficiente e arriscado.

Tão ineficientes e arriscadas são as tarifas que nem uma estimativa razoável dos impactos inflacionários é possível ter, ainda que muitos por aí estejam tentado fazer projeções. O que dá para dizer das tarifas, sobretudo da forma como estão sendo aplicadas por Trump, é que causam incerteza. E a incerteza paralisa. Quando há muitas dúvidas sobre os rumos da política econômica e sobre as reações da economia, consumidores param de consumir e empresas param de investir. Com menos consumo e investimento, a economia perde dinamismo. Logo, ainda que não saibamos a extensão dos efeitos inflacionários, podemos dizer que tarifas causam aumentos de preços, além de terem efeitos negativos sobre o crescimento econômico provenientes da queda do consumo e do investimento. Ou seja, as tarifas são estagflacionárias, conforme, aliás, vêm apontando alguns economistas de renome.

A possibilidade de estagflação nos Estados Unidos é evidentemente um baque para a economia mundial, com efeitos no Brasil. Para além disso, há os efeitos diretos das tarifas excessivas recém-aplicadas em diversos produtos brasileiros. O governo brasileiro deverá anunciar essa semana as medidas para conter os estragos. Retomarei o tema das tarifas e seus efeitos na economia brasileira após o anúncio planejado para o meio da semana.

Por falar em anúncio, dizia o garoto- propaganda da Bombril que ele limpa até piada suja. Ainda que as tarifas de Trump tenham 1001 utilidades, elas infelizmente não são como Bombril. Afinal, são elas a piada suja do mundo hoje.

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Last Update: 11/08/2025