Tarifaço sobre os BBBs? Sim! Mas também sobre os AAAs!

Corporações de Álcool, Agrotóxicos e Alimentos ultraprocessados causam imensos impactos negativos na sociedade, drenam recursos naturais e financeiros, e precisam ser finalmente reguladas, em meio à atual mobilização por justiça tributária

por Susana Prizendt

A comunicação visual corporativa é um campo irrigado de dinheiro gordo, de onde brotam materiais que vão ativar muito mais do que os olhos de quem os vê. Não é porque o CEO de um conglomerado empresarial curte a figura de uma caravela – ou de uma carambola – que ela entrará na composição do que chamamos de identidade visual de sua corporação. Cada traço é fruto de muita especulação sobre sua simbologia e seus efeitos no imaginário humano – e os estudos neurológicos não ficam de fora dessa torração de grana, considerada como investimento mais do que estratégico pelo chamado andar de cima. 

As tais peças de design gráfico estão umbilicalmente ligadas às posições ocupadas pelas empresas, que as criam e as publicizam, dentro do universo político, econômico e financeiro globalizado, em uma trama em que se entrelaçam tanto os valores ideológicos como os monetários… E podemos encontrar associações mais ou menos óbvias entre significante e significado, a depender do nível de cara-de-pau de cada organização corporativa.

Dentro desse panorama, há um logotipo que traz uma mensagem inequívoca (verdadeira afronta em um país com o nível de desigualdade do Brasil): o logo do Banco Alfa. Trata-se de uma grande pirâmide, formada por uma pilha de pirâmides menores, de modo que uma pequena pirâmide do topo (que, como as demais, simula a letra A), se destaque por ser de um tom dourado, diferente das restantes. Sim, estamos falando da letra A de Alfa, nome da empresa. Mas, veja bem, não é de qualquer letra A, e sim da que está acima de tudo, a que tem a cor de ouro, a de quem pertence à classe AAA, a elite da elite da elite, a nata da nata da nata… 

Pois é essa elite que vem vampirizando o planeta como se sua sede de cifrões fosse insaciável e estivesse Acima e Além de povos, de leis e da própria natureza. É pelos privilégios abusivos dessa minoria da minoria que entramos na metade da segunda década do século 21 com mais de 700 milhões de pessoas passando fome ao redor do globo, e que estamos sofrendo uma explosão de desequilíbrios ambientais e climáticos que nos coloca, pela primeira vez na história, a possibilidade real de extinção enquanto espécie. O fato dessa cambada praticamente não pagar impostos é o tapa final na nossa cara, tapa que arde ininterruptamente e deveria gerar a mais vulcânica das rebeliões. 

Alfa & Beto 

Após anos tratando com cordialidade os agentes políticos que tripudiam sobre a cabeça de um governo dito progressista (e sobre nossas próprias cabeças), finalmente, começamos a ver uma reação mais consistente por parte da sociedade. E, aqui, outra letra do alfabeto assumiu o protagonismo: a letra B.

O golpe que o Congresso Nacional aplicou no governo Lula, derrubando, no final de junho, o decreto que aumentava o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), acabou gerando uma áspera crise entre os poderes legislativo e executivo, em que o poder judiciário também meteu sua colher. Mas seu principal feito é que ele acabou acendendo o fogo da revolta popular contra a falta de pudor, para dizer o mínimo, revelada por parte de parlamentares que, sendo eleitos pelo povo, só têm representado o topo dourado da pirâmide. E foi nesse caldeirão fervilhante que surgiu a campanha nacional “Taxar os BBBs – Bilionários, Bancos e Bets” – e que ela conquistou a aprovação de quase 60% da população brasileira. 

Como diz um outro slogan que anda circulando bastante nas redes, trata-se da luta dos 99% – que formam a base da população e penam para sobreviver em um planeta cada vez mais à beira do colapso – contra o 0,1% que sapateia sobre essa base, enquanto tenta gastar com mimos infindáveis as fortunas igualmente infindáveis que seus integrantes acumularam com a exploração de todos os seres vivos que habitam nossa Gaia. 

E, atualmente, não dá pra falar nessa exploração sem mencionar os tais BBBs. Quando Bilionários estão a ponto de virar trilionários e o número de pessoas sem condições mínimas de enfrentar a fritura climática só aumenta, é porque passou da hora de cobrar deles essa fatura. Nesse sentido, a proposta feita pelo governo federal, através de um Projeto de Lei, é bem modesta e só se refere à possibilidade de cobrar o pagamento de 10% do imposto de renda de quem ganha mais de 1 milhão de reais ao ano. Na outra ponta da balança, seria possível isentar quem ganha até 5 mil reais ao mês e dar desconto a quem ganha até 7 mil reais ao mês – o que contemplaria, também, quem não está nas faixas mais empobrecidas da população, mas está a anos-luz da elite abusada. 

Bilionários e Bancos são duas palavras indissociáveis há muitas gerações, e os valores que drenaram de nossas veias abertas, sobretudo na América Latina, como diria nosso mestre Eduardo Galeano, podem ser traduzidos em miséria, injustiça e devastação – fenômenos socioambientais que vêm castigando nossos povos com o mesmo furor com que a elite gere seus negócios e negociatas. Pois, a essas duas palavras, veio se juntar uma mais jovenzinha, mas que chegou como um furacão na teia do financismo: as tais Bets. 

Explorando a tendência que boa parte da população possui de se envolver em jogos de apostas, e a onipresença que os meios digitais conquistaram nos últimos anos, essas máfias de arrancar dinheiro alheio vêm causando prejuízos individuais e coletivos cada vez mais vultosos, chegando a arrecadar centenas de bilhões de reais ao ano. Basta dizer que até no sagrado dindin do Bolsa-família elas estão botando as mãos, sempre com o empurrãozinho das celebridades do momento, que mandam a ética às favas, frente aos generosos cachês que recebem para anunciar as plataformas de apostas e estimular a jogatina.

Sobre Bilionários, vale acompanhar o trabalho feito pela Oxfam para mapear o nível das desigualdades que o egoísmo deles tem causado internacionalmente e aqui mesmo, no Brasilzão. Quando, em nosso território, 6 deles possuem uma riqueza equivalente à quase metade da população brasileira, como revela o relatório A Distância Que Nos Une, é porque algo deu muito ruim em nossa capacidade de regular a sanha cumulativa desses gatos pingados inescrupulosos. 

De acordo com a lista de biliardários da Revista Forbes deste ano, as fortunas das 10 pessoas mais ricas do Brasil somadas alcançaram mais de 106 bilhões de dólares. E tem um detalhe: quase 80% dessa quantia está nas mãos de 4 delas, o que nos lembra o tal topo do topo do topo dourado da pirâmide. E aqui voltamos nós para o Banco Alfa, já que ele foi adquirido recentemente pelo Banco Safra, pertencente, não por coincidência, à família mais rica do país. Sim, quem já tem tanto ainda quer – e faz de tudo para ter – mais!

Como já escrevi outras vezes, fazem parte da lista de “supostos ultra mega hiper financeiramente sortudos”, tanto aqui quanto internacionalmente falando, justamente os donos de conglomerados dos setores bancário, alimentício e de tecnologia – as áreas corporativas que, em inglês, também são BBBs: Bigh Money, Bigh Food e Bigh Tech. 

De porre da indústria da bebedeira

Que a riqueza dos banqueiros seja tão “exuberante” no Brasil não deveria ser motivo de surpresa para ninguém, já que o nível do valor dos juros que cobram pelos empréstimos que fazem é estratosférico. Se valendo de uma gama de mecanismos infalíveis, como os empréstimos consignados para aposentados/as e servidores/as públicos/as (grana fácil e garantida que já é subtraída de cerca de um terço dessas pessoas), os grandes bancos multiplicam seus lucros, ano após ano, batendo recordes mesmo em meio às crises que castigam outros setores. E nem estamos entrando na questão cabeluda da tal dívida pública, que vem sendo investigada por gente de responsa, como Ladislau Dowbor e Maria Lúcia Fattorelli. 

Mas vamos olhar melhor essa listinha de bem-aventurados. Vemos que, junto aos banqueiros, aparecem empresários de um setor bem diferente, o da velha manguaça. Os donos de uma corporação transnacional de bebidas alcoólicas, a AMBEV, disputam pau a pau o podium de “os mais sanguessugas das riquezas da nação” e têm um trunfo que não é nenhum pouco menosprezável, considerando que somos o terceiro maior mercado consumidor do produto no mundo: a cerveja. 

Depois de se unir com empresas internacionais, como a belga Interbrew, e de comprar a fabricante da Budweiser (a estadunidense Anheuser-Busch), hoje elas compõem uma organização ainda maior, a AB InBev, responsável pela produção de 25% de toda a cerveja que circula pelo globo. É um verdadeiro império, que impactou todo o sistema empresarial do país (e até de fora dele), para delírio dos aspirantes a bilionários que frequentam a Faria Lima. Como dinheiro puxa dinheiro nesse meio, seus donos brasileiros também possuem outros negócios de peso e vale a pena lembrar do escândalo das Lojas Americanas, uma rasteira bem dada pela elite da elite da elite, que teve consequências fatais para muitas empresas menores e deixou na rua mais de 5 mil trabalhadores/as. 

Investindo pesadamente em publicidade e em patrocínios culturais via renúncia fiscal, a dita corporação controla uma fatia rechonchuda do mercado brasileiro (algo em torno de 60%), sendo dona das marcas Brahma, Antarctica, Bohemia e Skol, entre outras das mais conhecidas e consumidas. Seus garotos e suas garotas-propaganda vão desde jogadores de futebol, influencers digitais e atrizes de novelas, até artistas que são admirados/as por setores da própria esquerda – meio anestesiada quando se trata de debater a regulação do álcool, já que também celebra as conquistas ou afoga as mágoas na companhia das tais geladas. 

Mas vamos dar uma cutucada nesse vespeiro, começando de onde deve-se começar: do início, ou seja, da terra. Sendo a cerveja uma bebida feita a partir da fermentação de cereais, como a cevada maltada, mas também o centeio e o trigo, a mega indústria que a domina se vale de grandes monoculturas espalhadas por muitos locais do globo. Atualmente, a composição das versões que circulam nos mercados traz, ainda, o milho transgênico, versão do cereal que é cultivada de forma quase unânime em muitos países, dentro de um processo agressivo de extermínio das variedades tradicionais de seus povos. 

Sabemos que essas plantações ocupam áreas que antes eram destinadas às roças de alimentos biodiversos, aos espaços de vegetação nativa ou aos territórios de populações indígenas. Sabemos que elas expulsam essas famílias camponesas e originárias de seus solos ancestrais, e que drenam uma quantidade absurda de água para irrigar suas plantations hightech, nas quais há muita máquina e pouco emprego. Também sabemos que se valem de um conjunto de benesses econômicas que começa com o farto crédito público para o setor do Agronegócio, destacando que todos os anos vemos recordes sendo destinados a ele, através dos planos Safra.

Mas, da terra ao copo, ainda escorrem muitas águas e recursos financeiros nesse circuito – lembrando que, para fazer um litro de cerveja, são usados cerca de 300 litros de água. Do mesmo modo, faltam medidas que cobrem do setor os prejuízos gigantescos que ele causa não só na estrutura agrária e no meio ambiente, mas na saúde do povo. A frase “beba com moderação”, estampada nas peças gráficas publicitárias, chega a ser um acinte frente ao poder das imagens (elas, mais uma vez) que mostram pessoas felizes, situações refrescantes e muita sensualidade, estimulando os sentidos e o imaginário das pessoas, inclusive da juventude. 

Resultado: lucros imensos para grandes acionistas do setor – e vício, doenças e empobrecimento por parte de quem não consegue resistir ao canto da sereia cervejeira e não tem acesso às versões artesanais. Sim, estamos de porre desse processo profundamente injusto. É urgente que o A do Álcool seja alvo de maior regulamentação!

Reino de ultraprocessados e ultraenvenenados 

Para quem pensa que uma corporação como a AMBEV só vampiriza maiores de idade, é hora de acordar. Não, não estamos falando somente do consumo de álcool por adolescentes (ou até mesmo por crianças), algo que sabemos que ocorre, mesmo com a proibição da venda direta a esse público. Acontece que, além de bebidas alcoólicas, a empresa produz outros líquidos viciantes, feitos a base de combinações minuciosamente calculadas de aditivos (e muito açúcar): os refrigerantes. 

Então, é hora de passarmos do A de Álcool para o A de Alimentos Ultraprocessados, categoria que se tornou mundialmente reconhecida a partir da publicação pioneira do Guia Alimentar para a População Brasileira, referência para a criação de políticas públicas em Segurança Alimentar e Nutricional em muitos outros países. Para quem ainda não se familiarizou com o termo, ele se refere ao que chamo de produtos engolíveis, algo um tanto diferente do conceito milenar de comida e de bebida, que acompanhou a humanidade em sua caminhada desde a Mãe África, berço de nossa espécie. 

Compostos por misturas de derivados de certos alimentos, como os grãos e cereais cultivados em grande escala pelo Agronegócio – às quais são acrescentados ingredientes que não costumamos usar nas nossas receitas caseiras, como os espessantes, aromatizantes e conservantes artificiais -, esses produtos são elaborados nos laboratórios das indústrias alimentícias para sequestrar nossa capacidade de dizer não a eles. Através de composições que ativam os circuitos cerebrais de prazer, eles fazem com que as pessoas sintam necessidade de consumi-los, mesmo que saibam que não são saudáveis. 

No caso dos refrigerantes, eles já tomaram o espaço dos sucos caseiros, dos chás de ervas refrescantes e até da própria água, já que há muitas pessoas que a substituíram de vez pelos líquidos borbulhantes das latinhas e garrafinhas – embalagens que são uma desgraça do ponto de vista sanitário e ambiental. E estão diretamente relacionados com o aumento das DCNTs, as doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, obesidade e até câncer, inclusive em crianças. Se estima que o valor gasto no SUS com os efeitos dos refrigerantes na saúde cheguem a 3 bilhões de reais ao ano, despesa pública que se une a mais 3 bilhões anuais concedidos de isenção fiscal, num total de 6 bilhões da nossa grana!

Considerando a forte presença de outros alimentos ultraprocessados na dieta popular – como biscoitos recheados, salgadinhos do tipo chips, margarinas e embutidos -, temos assistido a uma acelerada transformação dos organismos humanos, cujas consequências ainda não estão totalmente mapeadas. Desde as papilas gustativas até o próprio metabolismo básico do corpo, é possível encontrar alterações que nos alertam para um cenário problemático do ponto de vista da saúde pública. 

Voltando ao começo da cadeia produtiva (ou seja, ao solo), esses produtos, como no caso do álcool, também têm sua origem nas grandes plantations de commodities. Soja, cana-de-açúcar, milho, trigo etc … são colhidos nessas imensas monoculturas e processados de diversas formas, para que seus óleos, açúcares e farinhas componham a massa que, acrescentada de aditivos sintéticos, vai dar forma ao que é vendido nos pacotes das gôndolas dos supermercados. Sim, lá vem outro A nessa ciranda: o A de Agrotóxicos. 

Mesmo causando danos dramáticos à natureza (incluindo nela os seres humanos), a conjugação de alimentos ultraprocessados e alimentos ultraenvenenados, apontada como trágica por movimentos e organizações sociais, como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e a Aliança Pela Alimentação Adequada e Saudável, não foi alvo de uma regulação que ponha limites à sua expansão acelerada no território nacional. 

O rombo fiscal que as isenções de impostos para agrotóxicos e “não-alimentos”, como os refrigerantes, vêm gerando nas últimas décadas tem sido denunciado por ativistas e cientistas. São bilhões e mais bilhões todos os anos e a Reforma Tributária em tramitação ainda não conseguiu enquadrar de vez esses setores, cujo lobby é poderoso, domina bancadas inteiras no Congresso Nacional e influencia muitos altos funcionários do executivo. Mas a briga segue firme nessa terceira fase do processo, iniciado em 2023, com a promulgação da Emenda Constitucional 132, que inovou, ao criar o imposto seletivo no Brasil. Depois de passar por uma segunda fase, no ano passado, em que foram definidos os setores a serem atingidos, chegou a hora de definir as alíquotas aplicadas. 

Para que a medida não seja simplesmente cosmética, a sociedade civil pode (e deve!) se manifestar. Isso é possível através de mobilizações que estão em curso, como o Manifesto em defesa da saúde na Reforma Tributária, iniciativa da ACT Promoção da Saúde. Ele propõe o estabelecimento de alíquotas do imposto seletivo que realmente contribuam para reduzir o consumo de tabaco, álcool, bebidas açucaradas e bets, bem como frear a incidência das doenças e mortes associadas a eles. 

A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida também abre espaço para essa mobilização, vale conferir a página especial do site sobre o assunto, chamada Agrotóxico precisa pagar mais imposto. Ela traz um conjunto de publicações digitais que não deixam pedra sobre pedra na construção erguida pelo lobby veneneiro. Um levantamento recente mostrou que só o que a Syngenta deixa de pagar de impostos em nível federal equivale a mais do que todo o orçamento de 2024 do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima… Dá pra digerir esse absurdo? 

E, já que estamos falando sobre Campanhas, é hora de caminhar com nossa reflexão sobre o alfabeto. 

Ecoar a letra C de Comunidade

Costuma-se definir como classe C a parcela da população que faz parte da classe socioeconômica considerada “média média”. Podemos entender que ela corresponderia, se não estivesse tão depauperada pelo ultra neoliberalismo, às pessoas que tem uma condição digna de vida. Isso significaria ter acesso à moradia, saúde, comida, educação, cultura, lazer, etc de qualidade. Significaria, ainda, não ter dinheiro para usufruir de uma coleção de mimos que podemos considerar dispensáveis, como é o caso das classes bem mais ricas – para as quais nem a atmosfera é o limite, dadas as aventuras espaciais de alguns de seus integrantes. 

Aqui vale entender o que queremos dizer com “dispensáveis”. Para isso, é preciso dizer que o consumo médio individual de materiais e energia de um/uma estadunidense – objetivo almejado por boa parte da população mundial – não seria viável em termos planetários. Se, hoje, todos e todas nós seguíssemos esse padrão, a sobrecarga ambiental em nossa Pachamama seria tão intensa, que iria causar uma pane na capacidade de manter as condições necessárias para nossa sobrevivência (algo que, como mencionamos, está no nosso horizonte não muito distante). 

Então, a pergunta é: por que algumas pessoas teriam o direito de usufruir de superficialidades se, em função disso, outras tivessem que passar necessidades? A realidade nos mostra que, neste momento, não há motivos naturais para a existência da fome ou de outra privação que comprometa a vida. Mas nos mostra, também, que não é possível que 8 bilhões de seres humanos anseiem por viver como fidalgos neoliberais. É preciso chegar em um equilíbrio para que todos os seres que habitam nossa Casa Comum tenham direito à existência e, no caso humano, que seja com dignidade e senso de pertencimento, assumindo suas responsabilidades quanto à esfera coletiva. 

A classe C, dentro dessa perspectiva equilibrada, precisaria se expandir, de modo que as demais classes, sobretudo a A e a E, fossem reduzidas, eliminando tanto a miséria do povão como o esbanjamento que a minoria rica vem praticando em relação ao que a ela chama de “recursos”. Esse seria o sentido de formarmos uma Comunidade Planetária, em que o luxo individual jamais poderia se sobrepor ao bem viver coletivo – e não apenas humano. 

Mas não é fácil romper com a lógica individualista, consumista e rentista (dado que boa parte da classe AAA nem mais produz algo para multiplicar sua fortuna, mergulhando num emaranhado de aplicações que não tem equivalente na materialidade). Exige luta. E não fomos nós, a massa da população mundial, que decretamos guerra aos que pertencem ao 0,1% mais rico. Foram eles que nos impuseram essa guerra, ao comprometer de modo tão radical nossa existência com sua insaciabilidade por riquezas e sua irresponsabilidade pela dimensão do Comum. 

É por isso que AAAs e BBBs têm que ser cobrados. É verdade que as Campanhas que estão sendo feitas por governos e pela sociedade civil são modestas e não vão trazer mudanças drásticas no padrão de vida da tal nata da nata da nata, mas seu êxito é absolutamente fundamental para que comecemos a vislumbrar a possibilidade de sair da situação de colapso em que essa minoria nos colocou. A tal pirâmide dourada tem que ser reconfigurada e é animador ver o próprio governo Lula criar peças nas redes sociais com o uso desse símbolo, mostrando que a comunicação está mais ágil em transitar nesses meios, o que pode ser constatado pelos vídeos feitos com uso de inteligência artificial que bombaram nas últimas semanas. 

Nós, movimentos sociais das cidades, dos campos, das águas e das florestas, estamos nessa luta. É, sim, uma luta por sobrevivência, mas não apenas por ela. Lutamos pela transformação das relações que se estabeleceram dentro da mente de cada pessoa, das relações que se estabeleceram entre as pessoas, e delas com a teia complexa que sustenta a vida no planeta. Lutamos para que AAAs e BBBs, com seus punhos cerrados – que tanto tentam reter o que extraíram a partir da exploração de nossas almas e nossos corpos -, não esmaguem nosso esperançar.

É por isso que cultivamos nossas hortas coletivas, construímos nossas cozinhas comunitárias, criamos nossas redes de compartilhamento de materialidades e imaterialidades. É por isso que buscamos a confluência com os ciclos que fazem da nossa Casa Comum essa pequena esfera azul tão vibrante de sensibilidades, em meio à extensão desconhecida do Cosmos. 

Em tempos de recrudescimento do embate entre as forças políticas no Brasil (com o Congresso Nacional querendo assumir o papel do poder executivo, manejando emendas parlamentares maiores que muitos orçamentos de órgãos públicos) e em tempos de recrudescimento do embate internacional (com um festival de tarifaços, promovido pelo presidente megalomaníaco dos EUA, sobre países que se recusam a se subordinar totalmente aos seus interesses); temos que assumir nosso papel e não perder esse bonde que pode nos conduzir em direção às transformações estruturais dentro e fora do nosso território. 

Vamos, juntos, juntas e juntes, fazer ecoar nossos cantos de luta para que este momento tão crucial em nossa jornada não se desfaça em meio ao comodismo e às pressões corporativas. Que ressoem, já, nossos tambores de guerra, para que, num futuro mensurável, tenhamos alguma chance de viver em paz. 

Susana Prizendt, arquiteta urbanista, integra a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e o Movimento Urbano de Agroecologia (MUDA)

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Last Update: 22/07/2025