O Congresso reabre sem surpresas. Hugo Motta e Davi Alcolumbre foram eleitos, com folga, para as presidências da Câmara e do Senado pelos próximos dois anos. Tiveram apoio tanto de governistas quanto da oposição, fenômeno incompreensível apenas para quem ignora a força das emendas, recursos para obras inseridos pelos parlamentares no orçamento federal, espantosos 47 bilhões de reais em 2024. Com raras exceções, como o PSOL, todos os partidos pertencem hoje à “santa igreja das emendas”. O gigantismo dos repasses, resultado de uma década de tomada silenciosa do poder pelos congressistas, só podia ter como conclusão a bandeira do parlamentarismo, derrotada duas vezes pelos brasileiros nas urnas. Motta a tremulou no discurso da vitória. Vai tirar da gaveta uma proposta de semipresidencialismo herdada de Arthur Lira, seu antecessor?
Por causa do tema “emendas”, a tensão permanece no ar em Brasília. No discurso da vitória, Alcolumbre, verdadeiro pai do orçamento secreto, segundo um senador petista, disse que o Congresso não pode ser “cerceado”. Dois dias depois, o Supremo Tribunal Federal também voltou das férias e, lá, Flávio Dino retomou a cruzada moralizadora das emendas. O juiz deu 15 dias para o Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Congresso, apresentar um relatório sobre o cumprimento de ordens judiciais de 2024 sobre o tema. E dez dias para ministérios informarem a observância de outras determinações. De quebra, marcou para 27 de fevereiro uma reunião com o governo e o Legislativo, para uma análise geral sobre o que foi, ou não, feito. “Não é excessivo afirmar que hoje, no mundo, há os países a) presidencialistas; b) parlamentaristas; c) semipresidencialistas; e d) o Brasil, com um sistema de governo absolutamente singular no concerto das Nações.” Palavras do juiz em um despacho de 2 de dezembro.
O compromisso dos novos presidentes da Câmara e do Senado com a transparência das emendas será testado
Dois conterrâneos de Dino estão prestes a virar réus no Supremo, acusados justamente de comércio de emendas: Josimar Maranhãozinho e Pastor Gil, do PL. A dupla e o colega Bosco Costa, liberal de Sergipe também acusado, teriam pedido propina a uma prefeitura maranhense em troca de emendas confeccionadas no governo Bolsonaro. É o que aponta a denúncia da Procuradoria-Geral da República de agosto do ano passado. Na quarta-feira 5, o relator no STF, Cristiano Zanin, tirou o sigilo do processo e o liberou para apreciação da Primeira Turma da Corte, formada pelo próprio, Dino, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Luiz Fux. Os cinco vão julgar se a denúncia seguirá e se os acusados virarão réus.
O novo segundo-vice-presidente da Câmara, Elmar Nascimento, do União Brasil da Bahia, está encrencado por causa de emendas, mas nem tanto. Um rolo em que o nome dele despontou vai continuar a correr no Supremo aos cuidados de Kassio Nunes Marques, nomeado por Bolsonaro. Foi o que resolveu na terça-feira 4 o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso. Em dezembro, a Polícia Federal tinha feito uma operação, a Overclean, sobre bandalheiras com emendas no Dnocs, órgão federal de obras contra as secas. Na batida, encontrara no cofre de um empresário um contrato de venda de imóvel a Nascimento, padrinho do chefe do Dnocs na era Bolsonaro. A descoberta do nome do deputado baiano fez a PF remeter o caso ao STF. A polícia defendia que a investigação ficasse com Dino, pois o juiz tem se esmerado em moralizar as emendas. Barroso pediu um parecer a Paulo Gonet, o procurador-geral. Este não viu motivo para trocar o relator. O magistrado concordou.
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De A a Z. Tanto Motta quanto Alcolumbre obtiveram votações avassaladoras. Nada como a força das emendas – Imagem: Kayo Magalhães/Agência Câmara
Na abertura do Supremo, em 3 de fevereiro, Gonet declarou: “Este será, certamente, um ano com pautas de sobressaído interesse aos valores democráticos”. Tradução: 2025 terá a acusação, perante o STF, de Jair Bolsonaro e associados por tentativa de golpe contra o resultado da eleição de 2022. O capitão ligou para Motta e Alcolumbre após a eleição para o comando das mesas congressuais. Corteja a dupla na esperança de que seja votada uma anistia a todos os golpistas, ele incluído. O deputado e o senador deram sinais de que topam deixar o debate andar, o que não significa apoio ou disposição de colocar a lei em votação. A anistia, declarou Alcolumbre, “não vai pacificar o Brasil”, mas “não podemos nos furtar a debater qualquer assunto”. “Vamos tratar esse tema de maneira muito tranquila, de maneira muito serena, para que não seja mais um fator para aumentar o tensionamento que existe hoje entre os Poderes”, afirmou Motta. O capitão gostou do que ouviu do deputado. Interpretou a afirmação assim: “Em havendo maioria, entrará na pauta e em votação”.
“Anistia é para os dois lados, é mútua. Não é o caso aqui. O governo Lula tinha oito dias (em 8 de janeiro de 2023), havia uma tentativa de golpe mesmo, não achavam que sairiam para a cadeia, mas que Lula sairia do poder”, diz o deputado pernambucano Pedro Campos, novo líder do PSB. Anistia não é o único sonho de Bolsonaro. Ele quer encurtar a pena de oito anos fora das urnas recebida por ter cometido abuso de poder político e uso indevido nos meios de comunicação em 2022. A punição, aplicada em junho de 2023 pelo Tribunal Superior Eleitoral, baseia-se na Lei da Inelegibilidade, de 1990, alterada em 2010 pela Lei da Ficha Limpa. Os bolsonaristas defendem um projeto do deputado gaúcho Bibo Nunes, do PL, que reduz de oito para dois anos o tempo de punição. Um escárnio. Vinte e quatro meses sem poder concorrer significa que um candidato a presidente pode fazer o diabo numa campanha que, na seguinte, dali a quatro anos, estaria apto a aprontar de novo. “Se a Justiça entender que ele (Bolsonaro) pode concorrer, ele pode concorrer. E se for comigo, vai perder outra vez”, afirmou o presidente Lula a rádios mineiras na quarta-feira 5. O petista deseja cumprir uma promessa de campanha de 2022, para se fortalecer à reeleição em 2026: a isenção de Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais por mês. A isenção será uma das maiores causas governistas no Legislativo neste ano. Está numa lista de prioridades levada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a Motta, do partido Republicanos. “Nosso esforço é para aprovar em 2025 para valer em 2026”, havia dito o ministro da articulação política, Alexandre Padilha, após Lula receber Motta e Pacheco na segunda-feira, 3.
Lula quer do Congresso a isenção de IR para quem ganha até 5 mil reais. Bolsonaro sonha com a anistia
As manifestações iniciais dos dois congressistas têm sido de boa vontade com o governo, sobretudo aquelas de Alcolumbre, do União Brasil. O senador tem um ministro para chamar de seu, o conterrâneo amapaense Waldez Góes, do Desenvolvimento Regional. “O Poder Legislativo não pode se furtar a ajudar o governo a melhorar a vida dos brasileiros”, afirmou o senador, depois da conversa com Lula no Palácio do Planalto. Os discursos de Motta e Alcolumbre até aqui são similares. Defendem a melhora das condições de vida da população, da educação, da saúde, da segurança pública. O verbo chegará à prática?
A isenção de Imposto de Renda até 5 mil será um bom teste. A proposta será acompanhada da elevação da taxação dos mais ricos, para cobrir a perda de arrecadação federal. Registre-se o óbvio: o Congresso é sempre muito sensível às demandas dos ricos. Haddad havia anunciado a isenção em rádio e tevê em 27 de novembro, mas naquele momento sua equipe não tinha concluído o modelo da tributação maior dos endinheirados. Calcular quanto deixará de recolher com a isenção é mais fácil do que ter certeza do resultado com a medida compensatória. Esta é uma das razões para o projeto não ter seguido ainda ao Congresso. Há uma segunda explicação. A divulgação da proposta será feita com cuidado pelo novo secretário da Comunicação Social de Lula, Sidônio Palmeira, a fim de que o presidente tire o máximo de dividendo político.
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Certeza. Gleisi Hoffmann ganhará um ministério. Resta decidir qual – Imagem: Joédson Alves/Agência Brasil
A reforma da renda é uma das três pautas mais importantes para os deputados do PT na Câmara, diz o novo líder da bancada, Lindbergh Farias, do Rio de Janeiro. Juntamente com ela estão o fim da escala de 6 dias de trabalho por 1 de descanso e a regulamentação das redes sociais. “O governo precisa de um choque de economia popular”, afirma Farias, a respeito das duas primeiras propostas. Quanto à terceira, ele acredita ser mais fácil uma solução via Supremo, por meio de um julgamento iniciado em novembro. A propósito, na lista de prioridades de Haddad está a regulação econômica das big techs, donas de redes sociais como Instagram, Facebook e o ex-Twitter. Na Europa, há duas legislações diferentes. Uma para o conteúdo das plataformas, outra sobre o poder de mercado. O governo quer trilhar caminho parecido.
Além de mexer no Imposto de Renda, Lula também prepara uma reforma ministerial, a fim de melhorar suas chances de reeleição e a relação com os partidos que já compõem a base. Em Brasília, há um festival de boatos a respeito de quem seria demitido e contratado. Por ora, há três certezas. Uma é a saída de Cida Gonçalves da pasta das Mulheres, decisão ainda guardada nos bastidores. Para a vaga pode ser deslocada a titular da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, do PCdoB. Outra certeza é que Gleisi Hoffmann, presidente do PT, será ministra. Falta definir o cargo. As alternativas atuais, segundo fontes graduadas, são a Secretaria Geral da Presidência e o Ministério do Desenvolvimento Social. Essas pastas têm à frente petistas de quem Lula fala mal em público (Márcio Macedo, do primeiro) ou a portas fechadas (Wellington Dias, do segundo). A última certeza é que o presidente quer que o senador Rodrigo Pacheco, do PSD, concorra ao governo mineiro em 2026 e, por isso, gostaria de fazê-lo ministro. Seria uma forma de dar a Pacheco a visibilidade que ele perderá ao deixar o comando do Congresso. Minas Gerais é o segundo maior colégio eleitoral, com 16 milhões de votantes (São Paulo tem 34 milhões). Lá, Lula bateu Bolsonaro por apenas 50 mil votos no duelo final em 2022. Uma candidatura de Pacheco garantiria ao petista um palanque estadual presumivelmente forte. “Quero conversar com ele pra dizer que é a figura pública mais importante de Minas e será governador, é só ele querer”, comentou Lula na entrevista a rádios mineiras.
A reforma ministerial a caminho busca reorganizar a base de apoio do presidente rumo à eleição de 2026
O presidente planeja reunir-se não apenas com o senador, mas com o chefe do partido PSD, Gilberto Kassab, e os três ministros da legenda, para discutir o futuro. O mesmo deve ocorrer com outras agremiações. Em um evento do tal “mercado”, Kassab comentou no mês passado que, se a eleição fosse hoje, Lula perderia. “Quando eu vi a história do companheiro Kassab, eu comecei a rir (…) Olhei no calendário e percebi que a eleição vai ser só daqui a dois anos, eu fiquei muito despreocupado”, disse o petista em 30 de janeiro, em uma entrevista coletiva convocada em cima da hora. É um sinal de uma nova postura presidencial, mais midiática, a exemplo da entrevista às rádios mineiras e outra, na quinta-feira 6, a emissoras da Bahia.
O que se desenha é um Lula parecido com aquele do segundo mandato, disposto a falar mais e a defender seus pontos de vista sobre os assuntos do momento, a ocupar espaço na mídia e tentar influenciá-la, mesmo que seja para perder, mas de menos. Era a filosofia de seu ministro da Comunicação Social da época, o jornalista Franklin Martins. O atual Secretário de Imprensa de Lula, o também jornalista Laércio Portela, era do time de Martins. A mudança de atitude é explicada pela popularidade e o clima em relação ao governo no noticiário e no mundo político. Numa pesquisa Genial/Quaest de 27 de janeiro, a desaprovação a Lula superou a aprovação pela primeira vez desde a posse para o terceiro mandato: 49% a 47%, respectivamente. No levantamento, 43% disseram ter visto mais notícias negativas sobre o governo e 28% mais notícias positivas. Outra pesquisa
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Alívio. Gonet deixou o caso de Elmar Nascimento em mãos camaradas – Imagem: Fellipe Sampaio/STF
Genial/Quaest, divulgada na segunda-feira 3, especificamente sobre a próxima eleição, traz números mais tranquilizadores para Lula. Kassab estaria errado. O presidente venceria todos os adversários do direitismo, como Tarcísio de Freitas, governador paulista, Pablo Marçal, o mago das fake news no Instagram, Eduardo Bolsonaro, filho zero três do capitão, Ronaldo Caiado, governador de Goiás cujo chefe da campanha em 2018 foi executado em 2021, e Romeu Zema, governador de Minas insatisfeito com a renegociação camarada de dívidas aceita por Haddad. O escrete direitista tem outro adversário para enfrentar, dentro de casa. Bolsonaro pretende registrar a candidatura a presidente em 2026, mesmo inelegível (e, quem sabe, preso). A confusão na trincheira oposta é um trunfo de Lula. •
Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tapas e beijos’