No intervalo entre o anúncio e a viabilização de proposições e ações, no curto prazo, que pretendem a ampliação do acesso a especialidades ambulatoriais e hospitalares, se acumularam expectativas positivas e dúvidas sobre a extensão e profundidade das mudanças pretendidas.

Os indícios sugerem que a prioridade política, alcunhada pelo ministro Alexandre Padilha de obsessão, para superar barreiras, racionamento para o uso de cuidados mais complexos e caros para pacientes do SUS não será retórica.

A principal interrogação é sobre a natureza mais ou menos igualitária do Mais Especialistas (ou sua nova denominação). Em um espectro conformado por dois polos, atividades pontuais e de duração curta e reformas estruturantes no sistema de saúde, como se situará a prioridade do Ministério da Saúde?

A pergunta tem dupla justificativa: experiências, similares, na intenção de ocupar capacidade ociosa de serviços de saúde privados e públicos, com títulos no aumentativo plural, tais como mutirões, corujões vieram, mas não ficaram; a reconhecida defasagem de preços pagos pelo SUS é projeção do declarado subfinanciamento crônico da saúde pública.

Como tudo isso é mais do que sabido e repetido, as alternativas para mudar um jogo desfavorável para o SUS não são triviais. Usar superlativos para nomear programas e as práticas de compras no varejo não reduziram tempos de espera e filas, em alguns casos bagunçaram o agendamento precário.

Ao que parece, a estratégia para o acesso aos cuidados especializados (até o momento exposta de modo incompleto) pretende uma reviravolta no modus operandi da assistência a doenças graves.

A previsão de diagnosticar precocemente e tratar em tempo adequado cerca de 600 mil casos de câncer, mobilizando capacidade instalada pública e privada e acordos internacionais para a produção nacional de equipamentos e medicamentos é promissora; conjuga prioridade epidemiológica, uso racional dos recursos existentes no País e exercício pleno do papel de autoridade sanitária do Ministério da Saúde. Alvo correto é meio caminho andado. Falta saber como e quando será efetivada a promessa.

Nesse entretempo, pesquisadores e profissionais de saúde, habituados a mascatear esperanças de igualdade e melhora das condições de saúde, tiram de suas maletas aspirações que deram origem ao SUS. Alterações nos modelos e valores de pagamento podem vir acompanhadas com a superação da vergonhosa discriminação realizada em serviços de saúde com duas portas. Entradas pela frente e fundos são incompatíveis com os princípios constitucionais, não se coadunam com a oferta de cuidados à saúde, classificados como urgência, emergência, grau de condições clínicas.

A bizarrice arquitetônica, herdada da escravidão e renovada com a justificativa das dificuldades de suportes financeiros do SUS é cruel. Banhos frios, sanitários sem tampa e papel higiênico, instalações físicas feias, deterioradas para a maioria, contrastam com recepções decoradas e quartos confortáveis para a minoria.

O experimento ad hoc, porém naturalizado, é um traço grotesco do atraso. Não há nenhuma razão científica ou mesmo financeira que fundamente a separação de clientelas. Somos da mesma espécie humana e, como se sabe, são as Santas Casas, nas quais as duplas entradas se ergueram com mais frequência, que acumulam dívidas bilionárias.

O pretexto de atender diferencialmente pobres, remediados e ricos não se mostrou sustentável. A maior parte dos estabelecimentos da rede filantrópica, ainda que usufrua de benefícios tais como isenções fiscais, programas de crédito, empréstimos e da Lei aprovada em 2024, que indexou valores da tabela SUS à inflação, não encontrou a salvação.

O material de construção de espaços para separar pacientes por status social baseado em cor/raça gera resultados econômicos pífios. Romper a modorra, permanência da facilitação de acesso, velocidade, qualidade ao atendimento no SUS requer derrubar barreiras, anteriores às filas, aquelas tornadas propositalmente invisíveis e essenciais na troca de direito por favor.

Estamos no compasso de espera de transformações importantes nos fluxos assistenciais no sistema de saúde, queremos e podemos avançar. Fechar duplas portas poderá ser um pequeno gesto, mas tem alto valor simbólico. Verbas públicas devem ser alocadas para assegurar e ampliar a cidadania. Virar a página da segregação na saúde, financiada com impostos arrecadados por toda a sociedade, tem potencial para se tornar um marco histórico. •

Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘SUS e as duplas portas’

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Last Update: 15/05/2025