SUS – cada um com seu lugar na fila
por Aracy P. S. Balbani
Quem administra o espólio do negacionismo científico e se orgulha de ter privatizado a Sabesp não deve admitir que se fale de prevenção e tratamento de doenças em solo paulista
O Ministério da Saúde implementou o Programa Nacional de Redução das Filas no SUS em 2023. No Programa, cada estado fica responsável por informar as filas existentes, elaborar um plano de ação regional para atender os usuários do SUS de cada uma delas, submeter esse plano ao Ministério, programar as cirurgias eletivas (agendadas) e garantir a realização destas junto aos municípios que aderirem. Cabe ao Ministério co-financiar os procedimentos e monitorar sua execução.
Graças ao programa, o SUS efetuou um número recorde de cirurgias eletivas em 2024: 14 milhões. Porém, uma reportagem recente do Jornal Nacional divulgou que a fila de espera por cirurgias eletivas no SUS aumentou 26% no mesmo ano. Detalhe: metade da fila é formada por cidadãos e cidadãs dos estados de São Paulo e Minas Gerais.
Basta aprofundar um pouco a análise da notícia e se constata que os estados que contribuem mais para a fila de cirurgias eletivas do SUS não são apenas muito populosos, mas também governados por apadrinhados do inelegível Jair Bolsonaro.
A TV TEM, emissora afiliada da própria rede Globo, apurou que moradores da região metropolitana de Sorocaba (SP) esperam até dois anos por consultas ou resultados de exames nos Ambulatórios Médicos de Especialidades (AMEs) de Itu e Sorocaba. Os AMEs são serviços da esfera estadual do SUS, e sua gestão é terceirizada para Organizações Sociais de Saúde (OSSs).
Se um idoso com problemas cardíacos necessita de cirurgia de catarata ou hérnia, por exemplo, mas depende do resultado de um exame cardiológico feito nesses AMEs para ser liberado para marcar a data do procedimento, como fica?
É necessário a imprensa se debruçar sobre o assunto com independência e coragem e esclarecer também: quais municípios paulistas e mineiros aderiram ao Programa Nacional de Redução das Filas no SUS? Como anda a execução dos respectivos planos de ação regional? Qual a participação das OSSs na redução das filas do SUS? O que dizem os respectivos Conselhos Estaduais de Saúde? Qual a avaliação das autoridades do Ministério Público e do Tribunal de Contas de cada Estado?
No caso paulista, não se ouve falar quase nada de realizações do médico Dr. Eleuses Paiva desde sua posse como o Secretário Estadual de Saúde nomeado por Tarcísio de Freitas.
O outrora deputado federal, filiado ao DEM e, depois, ao PSD, eleito suplente e que assumiu o cargo na Câmara em mais de uma legislatura, estava muito presente na imprensa comercial e nos canais de divulgação dirigidos à classe médica.
Como gestor da Saúde no Estado, permanece em silêncio eloquente mesmo diante das inúmeras mortes violentas provocadas pela ação de alguns membros das polícias do Estado. Não falou nada de grande repercussão sobre a baixa procura dos pais pela vacina contra a dengue no SUS para as crianças e adolescentes. Também não se manifestou nem consta que foi questionado durante o surto de norovírus causado por água contaminada com esgoto não tratado no litoral paulista neste verão.
Pelo andar mudo da carruagem, a Saúde não vem ao caso no estado de São Paulo. Quem administra o espólio do negacionismo científico e se orgulha de ter privatizado a Sabesp não deve admitir que se fale de prevenção e tratamento de doenças em solo paulista. Sobretudo as relacionadas à falta de saneamento básico.
Outro aspecto a considerar na questão das filas é a judicialização da saúde. Quanto o andamento de algumas filas do SUS é afetado por decisões judiciais que impõem aos Estados ou municípios a realização imediata de procedimentos eletivos solicitados pelo cidadão demandante?
Além disso, nenhuma reportagem feita até o momento esmiuçou a questão de milhões de pessoas da classe média e da camada, digamos, “uberizada”, que não conseguiram mais pagar planos de saúde desde o aumento do desemprego na era Michel Temer, agravado pela pandemia. Elas passaram a usar exclusivamente o SUS, aumentando as filas de consultas e exames com especialistas.
Hoje, com algum sacrifício, muitos brasileiros recorrem a clínicas populares para consultas a preços módicos, mas dependem do SUS para fazer exames como tomografia computadorizada e ressonância magnética, além de cirurgias.
Por fim, e muito importante: a má remuneração no SUS em vários estados e municípios leva inúmeros médicos especialistas a deixarem de realizar cirurgias. Pior: vários trabalhadores da saúde preferem mudar de carreira a abrirem mão da ética profissional ou se submeterem a condições de trabalho e remuneração humilhantes impostas por governantes insensíveis ao sofrimento da população.
Resumindo, uma leitura apressada de um noticiário superficial pode levar a população a atribuir a culpa das filas de cirurgias do SUS somente ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou à Ministra Nísia Trindade. Entretanto, há muito mais coisas que precisam ser perguntadas e esclarecidas para que o distinto público possa tirar as próprias conclusões.
Decididamente, o finado jornalismo investigativo faz muita falta.
Aracy P. S. Balbani é médica. Atua como especialista exclusivamente no SUS no interior paulista.
Referências
Fila de espera por cirurgias no SUS cresce 26% em 2024.
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