Surrealismo, meditação e gnose em David Lynch
por Wilson Roberto Vieira Ferreira
O surrealismo foi deixado para trás, lá no século XX, e hoje suas imagens viraram de pôsteres que decoram das casas de amantes da arte cult às psyOps publicitárias que fisgam o inconsciente do consumidores. Mas, em plena cena do chamado “cinema da meia-noite” dos anos 1970, David Lynch (que deixou esse mundo aos 78 anos no último dia 15) resgatou a essência incômoda do surrealismo: o cinema como instrumento para revelar como no cotidiano o psiquismo preenche aquele “gap” existente entre a alma e a realidade. Lynch foi o mestre em pegar histórias banais e transformá-las em labirintos obscuros de pistas falsas num mix de filme noir, gótico americano e humor negro. Em uma filmografia que surge o seu principal protagonista: o Detetive – no cotidiano banal que oculta o mundo dos sonhos (e pesadelos), somente o Detetive pode, através das imagens, resolver enigmas através da experiência de estranheza e alienação. Porém, no final, David Lynch descobre que nem o cinema é capaz disso, porque feito pela mesma lógica onírica – montagem, edição etc. Depois de desconstruir tudo, restou a ele o seu entusiasmo pela meditação transcendental: silenciar toda linguagem e a mente. E, quem sabe, encontrar a gnose.
Talvez o surrealismo tenha sido deixado para trás no século XX. Se na década de 1930, os surrealistas e dadaístas chocavam a sociedade do velho capitalismo fordista revendo em imagens os conteúdos proibidos dos sonhos, no pós-guerra tudo mudou. A publicidade, a sociedade de consumo e a indústria do entretenimento ironicamente realizaram a agenda vanguardista – transformaram a linguagem onírica dos sonhos em ferramenta mercadológica.
Por exemplo, as imagens de Dalí mostraram como era possível colocar imagens do inconsciente em uma tela. Pois a Publicidade e Hollywood transformaram isso num negócio – diariamente vemos desejos, fantasias e imagens oníricas em filmes e vídeos publicitários.
No entanto, ninguém foi capaz de trazer o surrealismo ao mundo contemporâneo com tanta arte como David Lynch. Desde a estreia com Eraserhead (1977) até o curta de 2016, What Did Jack Do? (um curta que retornou à estranheza de Erasearhead como um ciclo que se fechou) Lynch foi um diretor que entrou em mundos indescritíveis, que não podem ser entendidas através de palavras. E é por isso que é mais sensato simplesmente experimentar seus trabalhos e não os explicar.
Talvez por isso Lynch ter sido um forte adepto e divulgador da meditação transcendental – principalmente seus últimos trabalhos, desde Cidade dos Sonhos (2001), principalmente Império dos Sonhos (2006) passaram a ser exercícios de desconstrução da linguagem cinematográfica, lembrando os cut ups dadaístas e a escrita automática dos surrealistas – o exercício em registrar o que vem à mente, sem preocupação com a lógica ou o sentido racional.
Era como se Lynch quisesse ir para além da linguagem, porque os seus signos não conseguem descrever os mundos nos quais Lynch obsessivamente queria representar. Basicamente, a meditação é um exercício para silenciar a mente e a linguagem para buscar a transcendência.
E que mundos indescritíveis eram esses? Aqueles mundos entre a alma e a realidade, intervalos que são preenchidos pelo psiquismo humano – o imaginário, fantasias, desejos, ilusões e pesadelos.
Sabemos que Freud descobriu que o psiquismo era a interface entre a alma e a materialidade das funções corporais: alimento, excreção, reprodução e morte. A forma como a alma vivenciará e expressará essas experiências corporais será sempre por meio das fantasias, do desejo e dos simbolismos manifestos nos sonhos, atos falhos e neuroses.
Do corpo para a realidade cotidiana, o psiquismo será uma espécie de “airbag emocional”, a racionalização diante das experiências sejam desagradáveis ou felizes – busca sentidos, propósitos, explicações, que sempre serão imaginárias: a religião, a ideologia, o sonho, os chistes, os atos falhos etc.
Se nos escritos de Freud tudo é abordado de forma intelectual e abstrata (esses mundos imaginários são descritos em termos de formações reativas e na linguagem onírica das condensações (metáforas) e deslocamentos (metonímias), nos dadaístas e surrealistas do início do século XX está a fantástica descoberta: podemos registrar tudo isso graficamente, através de imagens, telas, instalações, performances etc.
E o cinema faria parte disso. Pelo menos era o que pensavam teóricos do início do cinema como Eisenstein, Jean Epstein e Rudolf Arheim – acreditavam que o cinema deveria evitar a mera representação realista da realidade, seja através da montagem dialética (Eisenstein), como a percepção antecede a linguagem (Arheim) ou como o filme revela não a realidade, mas o surreal, o falso, o irreal.
David Lynch e o “Cinema da Meia-Noite”
Surrealistas, dadaístas e cubistas foram os primeiros a defender o cinema como arte através da possibilidade do diretor modelar o mundo fílmico e enquadrá-lo dentro de uma ideia abstrata e se enveredar pelas imagens do psiquismo e do inconsciente.
Tudo isso foi esquecido pela vitória do realismo cinematográfico hollywoodiano do pós-guerra: a essência do cinema residia em sua capacidade de reproduzir mecanicamente a realidade, não em sua diferença da realidade.
O revival do surrealismo nos EUA só poderia mesmo ter emergido nos anos 1970, num momento de filmes esquizos (Um Estranho no Ninho ou Taxi Driver) e dos estranhos filmes que agitavam as sessões da meia-noite em Nova York de filmes estranhos como El Topo de Jodorowski ou Rock Horror Picture Show.
Nesse cenário surge Eraserhead, a estreia de David Lynch. Quando estreou em 1977 recebeu poucos comentários especializados e pobres bilheterias. Não fosse os esforços do distribuidor Ben Berenholtz em convencer proprietários de alguns cinemas de Nova York do circuito dos “Cinemas da Meia-Noite”, o filme não conquistaria a base de fãs leais que tornaria Eraserhead o mais famoso de todos os filmes cult.
O filme foi uma verdadeira carta de intenções do diretor sobre a ideia principal que defenderia em toda a carreira: nossa relação com as percepções físicas da realidade é filtrada e simbolizada pelo psiquismo. Nunca vemos a realidade como ela é, mas a partir das nossas sensações de estranhamento e alienação em relação ao real.
Não são nossos olhos que enxergam o mundo, mas o psiquismo que faz a mediação entre a alma e o mundo. Lynch se interessava nesse estranhamento, nessa fricção entre a alma e o mundo e como o psiquismo expressava isso. Caberia ao cinema, assim como os surrealistas e dadaístas pretendiam, através das imagens, representar esses mundos estranhos.
Blue Velvet (1987) é um bom exemplo. Tudo começa com uma orelha encontrada na grama de um parque público. A câmera mergulha na cavidade auricular para conhecermos um submundo ocultado pela superfície das cercas cuidadosamente pintadas e flores da frente das casas em tons pasteis – um submundo para além das aparências da normalidade, envolvendo o drug-dealler Frank (Denis Hopper) que aspirava através de uma máscara nitirito de amila para ter prazer sexual e uma galeria de personagens violentos e caricatos.
O Detetive e a paranoia
Nada é estável, tudo é aparência e miragem. Como a cantora de cabaré Dorothy Vallens (Isabella Rosellini), o fio de Ariadne de paixão e culpa que o conduz ao submundo do alucinado vilão Jack.
A atmosfera é neo-noir, de onde emerge o protagonista Jeffrey (Kyle McLachler), o proto-detetive que mais tarde retornaria como o agente especial do FBI Dale Cooper, na série Twin Peaks (1990-91).
O Detetive (no sentido literal e metafórico) é um protagonista recorrente em David Lynch. Mais do que um personagem, mas como um verdadeiro arquétipo contemporâneo – aquele que transforma a sensação de estranhamento e alienação com o mundo (marca constante dos protagonistas lynchanos) como um mistério que precisa ser desvendado. Começa a suspeitar que os objetos ao seu redor são ilusórios, precisando, portanto, discernir entre o realismo das percepções e a insanidade dos sonhos e alucinações. São personagens que vivem sempre numa espécie de limbo, correndo o risco de cair de um lado ou para outro.
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