Em um país marcado pela história de intervenções militares e golpes de estado, o julgamento recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que formou maioria para validar punições disciplinares de militares com base em regulamentos internos, é um sinal alarmante. A decisão do STF representa um retrocesso significativo na luta por um controle civil efetivo sobre as Forças Armadas – um dos pilares de qualquer democracia sólida.
O cerne da questão está na decisão que permite que as Forças Armadas estabeleçam e apliquem punições disciplinares por meio de decretos, sem a necessidade de uma lei formal aprovada pelo Congresso Nacional. Para entender a gravidade disso, é preciso lembrar que o poder militar, em um estado democrático de direito, deve estar subordinado ao controle civil. Esse controle não é apenas uma formalidade; é a garantia de que o uso da força e o exercício do poder dentro das fileiras militares não se afastem dos princípios que regem a nação.
O que o STF fez, ao referendar essa prática, foi essencialmente abrir mão de uma das ferramentas mais importantes que a sociedade tem para evitar o surgimento de práticas autoritárias dentro das Forças Armadas. Regulamentos disciplinares definidos internamente, sem o escrutínio do poder legislativo, podem se tornar uma porta aberta para abusos de poder, que acabam por corroer os direitos individuais dos próprios militares e, por extensão, fragilizar a própria democracia.
A decisão do STF e a distinção perigosa
No centro dessa decisão está a distinção feita pelo STF entre crimes militares – que devem ser definidos por lei – e transgressões disciplinares, que podem ser regulamentadas por decretos. Essa distinção, à primeira vista técnica, na prática cria uma zona cinzenta onde as Forças Armadas podem atuar sem o devido controle externo. Pior: ao validar essa separação, o STF permite que as normas internas possam escapar do rigor democrático, abrindo margem para interpretações arbitrárias e decisões que não passam pelo crivo do Legislativo.
Essa autonomia excessiva dada aos militares é um golpe contra o princípio de que todas as instituições do Estado, inclusive as Forças Armadas, devem estar sujeitas a mecanismos de controle e supervisão estabelecidos pela sociedade civil, através de seus representantes eleitos. Quando esse equilíbrio se rompe, a história nos mostra que os riscos de autoritarismo e abusos de poder se tornam reais.
Fragilização do Estado Democrático de Direito
A decisão do STF também reflete uma compreensão equivocada da relação entre disciplina militar e direitos fundamentais. Ao admitir que as infrações disciplinares não exigem a mesma precisão legal que os crimes militares, o STF abre um perigoso precedente para que essas infrações sejam punidas de maneira menos rigorosa do ponto de vista da legalidade. Isso pode parecer uma questão menor, mas na prática, representa uma erosão dos direitos fundamentais dos militares, que são cidadãos e merecem a mesma proteção legal que qualquer outro brasileiro.
Ao permitir que os militares regulem suas próprias punições disciplinares, o STF contribui para um enfraquecimento do estado de direito. É uma concessão perigosa que pode resultar em uma cultura de impunidade dentro das fileiras militares, onde a falta de supervisão externa pode levar a abusos que, uma vez iniciados, podem se espalhar e afetar a sociedade civil como um todo.
O Caminho para a democracia
O controle civil sobre os militares é mais do que uma questão técnica; é uma condição sine qua non para a sobrevivência de qualquer democracia. Quando esse controle é fragilizado, o estado de direito se encontra em risco, e com ele, a própria liberdade dos cidadãos. A decisão do STF coloca o Brasil em uma trajetória perigosa, que precisa ser urgentemente revertida.
O Brasil não pode se dar ao luxo de esquecer as lições de sua história recente. A autonomia militar sem o devido controle civil já nos levou a períodos sombrios de nossa história. É imperativo que a sociedade, através de seus representantes, reforce os mecanismos de supervisão sobre as Forças Armadas, garantindo que essa instituição continue subordinada ao estado democrático de direito e à vontade popular. Se falharmos nessa missão, estaremos plantando as sementes de futuras crises, cujas consequências podem ser devastadoras para a democracia brasileira.