Quem vive de pesquisa de opinião aprende cedo que os números têm sotaque. Eles puxam o “s” no Rio de Janeiro, arrastam o “r” em Porto Alegre e, ultimamente, vocalizam um suspiro coletivo: “Quero voltar a sonhar”. É esse lamento esperançoso que explica por que, no segundo ano de seu mandato, Lula despejou um combo de novos programas sociais: Pé-de-Meia, Gás pra Todos, Farmácia Popular turbinada, tarifa zero na conta de luz… Fez isso como quem tempera feijão com coentro, na medida exata para matar a fome, mas não para dispensar o prato principal. Devemos recordar que foram com essas promessas que o presidente ganhou a eleição.

O eleitor de 2025 não é mais o mesmo do começo do século, quando o Bolsa Família inaugurou o ABC do combate à fome. De lá para cá, mais de 60 milhões de brasileiros subiram ao trem da internet, o diploma universitário virou figurinha carimbada nas periferias e o celular transformou cada consumidor em auditor de governo. Hoje, a pergunta que ecoa nos grupos de WhatsApp é menos “vai ter auxílio?”, e mais “auxílio pra que futuro?” Sobreviver deixou de bastar. O povo quer ­upgrade, não atualização de segurança.

Eis o dilema: apesar de a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do ­IBGE apontar a menor taxa de desemprego em muitos anos e uma massa salarial recorde, quase metade dos eleitores diz que sua vida não saiu do lugar. A régua subiu. Se, nos anos 2000, felicidade cabia numa geladeira frost free, agora o parâmetro é comprar tempo – tempo para estudar, empreender, curtir a família. Daí o apelo do Pé-de-Meia: transformar “futuro” em verbo no presente, premiando quem conclui o Ensino Médio.

Há quem estranhe o aumento dos gastos sociais, mas a conta é simples: as transferências cresceram porque o mercado de trabalho encolheu em prestígio. A CLT, flexionada lá em 2016, perdeu a aura de passaporte para o paraíso. Quase metade dos brasileiros considera um sonho profissional “ter um negócio próprio”. Esse empreendedorismo deixou de ser de necessidade ou oportunidade. O “corre” precisa de amortecedor. Se a venda da marmita falha, o Bolsa Família segura o prato. Criticar o programa porque ainda existe pobreza é como reclamar do cinto de segurança porque ainda há acidentes.

Um causo ajuda a entender. Em grupo qualitativo na Zona Leste de São Paulo, encontrei dona Cida, de 62 anos, que sustenta três netos vendendo bolo no pote. O gás subiu? Ela reduziu o forno e aumentou o preço. Subiu de novo? Passou a cozinhar na casa da vizinha em troca de duas sobremesas. Ao ouvir falar do Gás pra Todos, sorriu: “Não quero viver do governo, mas gosto quando ele lembra que eu existo”. A frase resume a lógica da transferência de renda: não compra voto, compra tempo para que o eleitor volte a planejar.

Por isso, o pacote social pode recuperar popularidade, mas só se virar narrativa de futuro. Programa sem história é como Pix sem chave: não chega. Se a expansão do Farmácia Popular garante remédio de graça, a comunicação deve traduzir em economia de filas e de horas de ônibus. Se a luz gratuita acende a sala, o discurso precisa clarear que estudar à noite sai mais barato que abandonar a escola.

Erradicar a pobreza exige casar assistência com inclusão produtiva. Bolsa Família sem creche, sem curso técnico e sem microcrédito vira um auxílio eterno. O governo avança – vide as compras públicas reservadas a cooperativas de catadoras ou a adoção da bandeira pelo fim da jornada 6×1 – mas deve acelerar. Como diria meu mestre de botequim, “quem chega atrasado, bebe Toddy achando que é cappuccino”.

Em resumo, ampliar programas agora é politicamente sagaz, socialmente urgente e economicamente defensável. Mas não basta pôr feijão na mesa, é preciso oferecer sobremesa de horizonte. O brasileiro quer abrir a geladeira e sentir cheiro de futuro fresquinho. Quem entregar esperança temperada com resultado leva o crédito – e, com uma boa comunicação, o voto. Programa social é vacina para hoje e ponte para amanhã: alivia a dor presente, enquanto constrói estrada longa para o filho de catadora chegar à faculdade. •

Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Subiu a régua’

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Last Update: 22/05/2025