O ministro Flávio Dino, relator do processo no Supremo Tribunal Federal (STF), apresentou em dezembro a tese de que o crime de ocultação de cadáver, como ocorreu em casos de desaparecimento de militantes na Guerrilha do Araguaia, é um delito permanente que não pode ser perdoado pela Lei de Anistia de 1979.

“O sumiço dos corpos, sem que as famílias possam sepultá-los dignamente, configura uma dor irreparável e um crime que transcende o tempo”, afirmou Dino, defendendo que tais condutas devem ser excluídas dos benefícios anistiáticos.

O caso em questão surge a partir de um recurso do Ministério Público Federal, que busca a condenação dos militares Lício Maciel e Sebastião Curió – o Major Curió, que faleceu em 2022 – por crimes cometidos durante a Guerrilha do Araguaia. O MPF argumenta que, embora esses crimes tenham início durante a ditadura militar, seus efeitos permanecem vivos, causando sofrimento contínuo às famílias dos desaparecidos.

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Repercussão geral e os ecos da ditadura

A discussão sobre a aplicação da Lei de Anistia a crimes que se estendem até os dias atuais ganhou força após a maioria dos ministros – entre eles Flávio Dino, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Edson Fachin e Alexandre de Moraes – reconhecer a existência de matéria constitucional com repercussão geral. Essa decisão, se confirmada, terá efeito vinculante em casos semelhantes por todo o país, abrindo caminho para uma reavaliação dos limites da anistia em contextos de crimes permanentes.

Casos emblemáticos, como o desaparecimento de militantes na Guerrilha do Araguaia e a não localização do corpo do ex-deputado Rubens Paiva, continuam a simbolizar a dor de famílias que jamais puderam realizar um sepultamento digno. O impacto emocional e social desses eventos, exemplificado pelo filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, reforça a necessidade de se repensar os benefícios da Lei de Anistia.

A voz da história

O historiador Romualdo Pessoa Campos Filho, autor de livros sobre a Guerrilha do Araguaia, avaliou a relevância da decisão do STF. Em entrevista ao Portal Vermelho, ele destacou que o crime de ocultação de cadáver não perde sua validade com o passar do tempo e que a própria história está em constante movimento.

Romualdo Pessoa Campos Filho, historiador

“Isso não fecha a história, ela permanece aberta. A falta de resposta sobre o destino desses corpos é um crime que persiste e continua a afetar as famílias há mais de quatro décadas”, afirmou Romualdo.

Ele comparou a situação com a tragédia de Mariana, onde a busca pelos corpos perdurou mesmo anos após o desastre.

“Se os corpos fossem entregues às famílias, a comprovação seria clara. Mas o desaparecimento intencional e o acobertamento – com relatos de execuções frias, torturas e até queima de restos mortais – foram estratégias para ocultar a violência. Isso não pode ser ignorado nem perdoado”, completou o historiador.

Romualdo também ressaltou que decisões judiciais anteriores, como aquelas promovidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e por procuradores de São Paulo, sempre demonstraram a necessidade de se retomar as investigações sobre esses crimes.

“Uma decisão do STF, mesmo que não resolva definitivamente a questão, reabrirá o debate e pressionará o Estado a prestar contas, garantindo que as famílias tenham o direito de encontrar e sepultar seus entes queridos”, enfatizou.

Ele ainda apontou que, historicamente, o desaparecimento forçado é reconhecido internacionalmente como um dos crimes mais graves, justamente por impedir que se confirme o que o Estado autoritário fez com as vítimas.

“Não se pode encerrar uma investigação se o corpo da vítima não for encontrado. Isso é uma marca indelével dos regimes autoritários e deve ser objeto de punição, para que não se repita”, concluiu Romualdo.

O desafio de revisitar a Anistia

A análise do STF se concentrará inicialmente na existência de repercussão geral, sem adentrar imediatamente no mérito da questão. Se reconhecida a relevância constitucional, o tribunal poderá rever a extensão da Lei de Anistia, questionando se crimes que continuam a causar dor – como a ocultação de cadáver – devem ser abrangidos pela legislação que concedeu perdão a delitos políticos entre 1961 e 1979.

Além do recurso envolvendo os militares da Guerrilha do Araguaia, o Ministério Público Federal busca que o STF revise a aplicação da anistia em processos relacionados à morte do ex-deputado Rubens Paiva, cujos restos nunca foram localizados, como tantos outros.

Expectativas e impactos futuros

Com a conclusão do julgamento prevista para sexta-feira (14), o país aguarda uma decisão que poderá redefinir os limites da impunidade para crimes cometidos durante o período da ditadura militar.
O resultado deste julgamento tem implicações profundas não só para a memória e os direitos das vítimas, mas também para a forma como o Brasil confronta seu passado autoritário e busca justiça e reparação.

A expectativa é que, ao reabrir a discussão sobre a validade da Lei de Anistia para crimes permanentes, o STF force o Estado a agir de maneira mais transparente e a dar respostas às famílias que, há décadas, aguardam a localização e o sepultamento de seus entes.

Esta decisão pode marcar um ponto de inflexão na história brasileira, reafirmando a importância de revisitar e corrigir os legados de um passado de violência e repressão.

Leia os principais trechos da entrevista com o historiador Romualdo Pessoa Campos Filho, autor de Guerrilha Do Araguaia A Esquerda Em Armas e Araguaia. Depois da Guerrilha, Outra Guerra:

Pergunta:
Estamos acompanhando este julgamento no STF, em que o ministro Flávio Dino propôs essa tese dos crimes contínuos da ditadura, como a ocultação de cadáver. Sabendo que você acompanhou de perto a trajetória do pós-guerrilha da Araguaia, que repercussão uma decisão dessa pode ter, Romualdo?

Romualdo Pessoa:
Olha, César, essa questão já vinha sendo debatida por alguns procuradores de São Paulo. O crime de ocultação de cadáver não perde sua validade, é algo que permanece. Em termos históricos, a história nunca se fecha; ela está em constante movimento justamente pela falta de resposta sobre o destino desses corpos. Eu costumo comparar com a tragédia de Mariana, onde mais de 200 pessoas morreram e, dois anos depois, ainda se busca os restos mortais. Se, por exemplo, o penúltimo corpo foi encontrado recentemente, por que se recusa a indicar os locais onde foram depositados? Isso perpetua a angústia das famílias por mais de quatro décadas.

Pergunta:
Já houve decisão judicial pedindo que o Exército liberasse arquivos sobre esses casos, mas nada foi cumprido. Você acha que, com um resultado positivo nesta sexta-feira, a maioria que está se formando no STF, algo vai mudar?

Romualdo Pessoa:
Não, mas… nunca foi pelo STF. Sempre foi tratado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por uma juíza de Brasília – se não me engano, a doutora Solange Salgado – e por alguns trabalhos de procuradores de São Paulo. Essas questões sempre ficaram retidas no STF, sem discussão ampla. Acho que se o STF decidir agora, pelo menos reabrirá essa discussão e pressionará o próprio Estado a dar respostas.

Pergunta:
Então, não significa uma solução, mas sim uma reabertura das investigações, certo?

Romualdo Pessoa:
Exatamente. Houve até uma tentativa de apagamento durante o governo Bolsonaro, e agora o governo Lula reconstituiu a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Essa decisão do STF é importante, pois já há reação no meio militar; alguns veem isso como revanchismo. Mas, se temos um crime não solucionado, a busca pela justiça exige que os corpos sejam entregues às famílias. É, afinal, uma questão de justiça e da própria história – uma ferida que permanece aberta.

Pergunta:
Parece que esse tipo de crime, a ocultação de cadáver ou o desaparecimento forçado, é considerado internacionalmente como um dos mais graves, pois é uma prática típica de regimes autoritários. Você concorda?

Romualdo Pessoa:
Sim, exatamente. Não se pode encerrar uma investigação se o corpo da vítima não é encontrado. Em casos de sequestro e execução, é natural buscar onde esses cadáveres foram escondidos. Do ponto de vista histórico, essa decisão é não só natural, mas já bastante tardia. É uma questão que nunca se fecha, e, para a história, é fundamental que isso aconteça.

Pergunta:
Romualdo, que diferença faria se a ditadura tivesse matado essas pessoas e liberado os corpos para as famílias? Isso impactaria o processo de anistia?

Romualdo Pessoa:
Bom, se os corpos fossem entregues, a comprovação seria mais objetiva e clara. Poderiam ser exumados e verificada a forma das execuções. E é justamente por isso que os corpos não são entregues: para mascarar os fatos.

Pergunta:
Então, o desaparecimento dos corpos serve para dizer que não houve violência, certo?

Romualdo Pessoa:
Isso mesmo. Eles desapareceram, muitos foram executados com tiros na nuca, torturados. Há depoimentos de ex-soldados, como o relato da execução de Valquiria, a última guerrilheira presa, que foi morta friamente. Esses corpos foram sumidos, levados para a Serra das Andorinhas ou queimados, muitas vezes envoltos em pneus, exatamente para não deixar marcas. Essa decisão do STF pode reabrir todas essas questões.

Pergunta:
E quanto ao filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que trata desses desaparecimentos – como ele influencia a conceituação da Lei de Anistia após um julgamento como esse? A atriz Fernanda Torres tem denunciado o fato da Lei da Anistia ter sido elaborada pelos próprios perpetradores dos crimes.

Romualdo Pessoa:
São situações diferentes. O crime de sequestro e execução não pode ser acobertado pela Lei de Anistia, que foi feita para proteger os executores. Tudo vai passar pelo crivo das decisões judiciais, mas depende da pressão das famílias e da sociedade organizada para que esses executores sejam punidos. Caso contrário, eles poderão sempre justificar suas ações, inclusive exigindo proteção legal. O filme já chama atenção para isto ao reabrir a discussão, e uma decisão do STF reforçaria a necessidade de revisão dessa lei.

Pergunta:
Esse julgamento pode gerar repercussões futuras, criando um receio de como o Estado possa praticar esses crimes?

Romualdo Pessoa:
Sim, certamente. Uma decisão do STF nesse momento vai reabrir toda a discussão. O filme já fez isso de certa maneira, e o STF agora reforça a questão. Além disso, é importante que a juventude, que muitas vezes sofre um apagamento histórico, conheça verdadeiramente nossa história. Precisamos que as feridas sejam reabertas para que as novas gerações entendam as injustiças cometidas e lutem para que isso não se repita.

Pergunta:
Por fim, Romualdo, que diferença faria se os corpos tivessem sido entregues às famílias? Isso mudaria o julgamento da anistia?

Romualdo Pessoa:
Sim, haveria uma diferença crucial. Se os corpos fossem entregues, a evidência da execução seria mais objetiva, permitindo uma comprovação clara dos fatos. A entrega dos corpos traria uma dimensão palpável da violência e eliminaria a possibilidade de se argumentar que os desaparecimentos não ocorreram. É exatamente essa recusa em entregar os corpos que perpetua a impunidade e a dor das famílias.

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Last Update: 13/02/2025