
Stephen Miller: o cérebro oculto do trumpismo.
O conselheiro mais poderoso de Donald Trump não aparece em palanques nem em entrevistas de TV. Mas Stephen Miller escreve os decretos, dita a linha ideológica e pavimenta a máquina autoritária do trumpismo.
por Reynaldo Aragon
Pouco conhecido no Brasil, Stephen Miller é o cérebro oculto por trás da guerra cultural do MAGA. De políticas de deportação em massa a ataques contra refugiados e instituições democráticas, ele molda silenciosamente os rumos da maior potência do mundo. Conhecer sua trajetória não é apenas entender os Estados Unidos de Trump — é enxergar a engrenagem transnacional que alimenta a extrema-direita e ameaça a democracia em escala global.
O homem por trás da cortina
A política contemporânea é, em grande medida, uma guerra de rostos visíveis e de poderes invisíveis. Enquanto Donald Trump monopoliza os palanques e Elon Musk ocupa as manchetes, há figuras que, longe das câmeras, estruturam a engrenagem que sustenta o projeto autoritário do trumpismo. Entre esses nomes, um se destaca pela capacidade de mover peças sem jamais se expor ao escrutínio público: Stephen Miller.
Miller não é um outsider ocasional nem um assessor qualquer. Ele é, há quase uma década, o arquiteto da política anti-imigração mais agressiva da história recente dos Estados Unidos, o estrategista que construiu narrativas de guerra cultural para transformar ressentimento em programa de governo, e hoje, de volta ao coração do poder como vice-chefe de gabinete para políticas e conselheiro de segurança interna, tornou-se a caneta invisível que redige decretos e reposiciona a máquina estatal ao serviço de uma ideologia.
Pouco conhecido no Brasil, Stephen Miller é a tradução perfeita do poder que não precisa de palanque. É ele quem molda as ordens executivas que mudam a vida de milhões sem precisar pronunciar discursos inflamados. Foi ele quem idealizou o “banimento muçulmano”, a separação de famílias na fronteira e a política de “tolerância zero” que chocou o mundo. Foi ele também quem ajudou a desenhar a retórica da fraude eleitoral em 2020 e permanece, até hoje, como um dos estrategistas mais influentes na campanha permanente do trumpismo contra a democracia liberal.
Conhecer Stephen Miller é compreender que o autoritarismo não se sustenta apenas em líderes carismáticos, mas em tecnocratas ideológicos capazes de operar as engrenagens invisíveis do Estado. É entender que a política MAGA não é improviso, mas um projeto de poder duradouro. É, sobretudo, um alerta: as guerras culturais e psicológicas que testam os limites da democracia americana ecoam inevitavelmente em países como o Brasil, onde a extrema-direita reproduz os mesmos métodos de manipulação, ressentimento e lawfare.
Origens e formação ideológica
Stephen Miller nasceu em 23 de agosto de 1985, em Santa Monica, Califórnia, em uma família de classe média judia, descendente de imigrantes do Leste Europeu. Cresceu em um ambiente culturalmente progressista, mas desde cedo demonstrou uma personalidade de confronto. Já no ensino médio, rompeu publicamente com colegas e professores ao se recusar a cumprir regras de “inclusividade”, alegando que a escola “cedia demais” às demandas de minorias. Esse traço de insurgência conservadora se tornaria marca permanente de sua trajetória.
Durante a adolescência, Miller encontrou uma influência decisiva em David Horowitz, ex-militante da esquerda radical convertido em um dos ideólogos mais combativos da direita norte-americana. Horowitz defendia que as universidades estavam dominadas por uma “ditadura do politicamente correto” e que a verdadeira guerra cultural deveria ser travada no campo das ideias, com agressividade e sem concessões. Miller, ainda adolescente, absorveu esse discurso e passou a adotá-lo como programa pessoal.
Ao ingressar na Duke University, na Carolina do Norte, Miller já era um polemista em formação. Tornou-se colunista regular do jornal estudantil, onde atacava iniciativas de diversidade racial, criticava o feminismo e denunciava aquilo que chamava de “vitimização crônica” das minorias. Na prática, seus textos antecipavam o estilo de guerra cultural que, anos depois, se consolidaria como a espinha dorsal do trumpismo.
Foi também em Duke que Miller estabeleceu suas primeiras conexões com a mídia conservadora. Ele se aproximou do então radialista Tucker Carlson e de veículos como o Breitbart News, onde encontrou eco para suas ideias de que os EUA precisavam resgatar uma identidade branca, cristã e anglo-saxã. Mais do que um militante estudantil, Miller se moldava como um tecnocrata ideológico: não buscava apenas polemizar, mas traduzir ressentimentos culturais em políticas de Estado.
A universidade consolidou sua visão de mundo: os Estados Unidos estariam sendo “corrompidos” pelo multiculturalismo, pela imigração e por políticas que desafiavam a hierarquia social tradicional. O jovem Miller via nisso não apenas um debate acadêmico, mas uma guerra existencial. E foi exatamente esse espírito beligerante que o levaria a Washington poucos anos depois, onde faria da guerra cultural sua profissão.

Da colina do Capitólio à Casa Branca
Após se formar em filosofia política pela Duke, Stephen Miller não seguiu o caminho acadêmico nem se dedicou à advocacia — escolheu ir direto para o coração do poder. Começou como assessor de comunicação de congressistas republicanos, entre eles Michele Bachmann e John Shadegg, mas foi ao lado do senador Jeff Sessions, do Alabama, que Miller encontrou sua primeira trincheira política de peso.
Com Sessions, um dos mais ferrenhos críticos da imigração nos EUA, Miller tornou-se diretor de comunicação e arquiteto da narrativa anti-imigratória no Senado. Foi ele quem elaborou discursos e relatórios que ajudaram a derrubar a chamada “Gang of Eight”, um esforço bipartidário para aprovar uma reforma migratória em 2013. Enquanto democratas e parte dos republicanos buscavam uma solução negociada para a regularização de milhões de imigrantes, Miller atuou como operador de guerra cultural, alimentando veículos como o Breitbart News com informações, frases de efeito e análises prontas para inflamar a base conservadora contra o projeto.
Esse episódio consolidou Miller como um quadro estratégico: não era apenas um assessor de gabinete, mas um engenheiro de narrativas capaz de transformar política pública em conflito cultural. Ele entendeu que, em tempos de polarização, não bastava disputar tecnicamente propostas — era preciso dramatizar, transformar cada decisão legislativa em um campo de batalha existencial.
Quando Donald Trump lançou sua campanha presidencial em 2015, o discurso central contra imigrantes mexicanos, muçulmanos e refugiados encontrou eco imediato em Miller. Ele migrou para a equipe de Trump em 2016, primeiro como redator de discursos, depois como conselheiro sênior de políticas.
Sua ascensão foi meteórica: Miller foi o responsável por redigir o discurso da Convenção Republicana e, meses depois, ajudou a lapidar a fala de posse de Trump — o famoso “American Carnage” — que descrevia os EUA como um país em ruínas, tomado pelo crime, pela imigração e pela corrupção das elites. A retórica era apocalíptica, mas cuidadosamente calculada. E ali estava a marca registrada de Miller: transformar ressentimento em programa político.
A entrada definitiva na Casa Branca, em 2017, coroava sua trajetória: de jovem polemista em Duke a arquiteto das políticas do governo Trump. Discreto, avesso às câmeras, mas presente em todas as decisões-chave, Miller se consolidava como aquilo que hoje de fato é: o cérebro oculto do trumpismo.
Arquiteto da política anti-imigração
Se existe uma marca indelével de Stephen Miller na história política recente dos Estados Unidos, ela está na arquitetura da política anti-imigração mais dura da era contemporânea. Enquanto Trump encarnava o discurso agressivo, Miller operava nos bastidores para convertê-lo em normas, decretos e protocolos que alteraram profundamente o sistema migratório norte-americano.
O primeiro grande movimento foi o Travel Ban de 2017, rapidamente apelidado de “banimento muçulmano”. Miller foi o autor intelectual do decreto que proibiu a entrada de cidadãos de diversos países de maioria islâmica. A medida foi tão controversa que gerou protestos em aeroportos, uma avalanche de ações judiciais e atritos diplomáticos imediatos. Mesmo assim, o núcleo duro do governo — com Miller à frente — insistiu até que a Suprema Corte validasse uma versão modificada da política.
Pouco depois, veio a doutrina da tolerância zero, que produziu a cena mais brutal do trumpismo: a separação sistemática de famílias na fronteira. Milhares de crianças foram arrancadas dos braços de seus pais e enviadas para abrigos ou centros de detenção. Internamente, relatos mostram que Miller celebrava a medida como um “dissuasor eficiente”, ignorando o sofrimento humano. Para ele, a política migratória não era apenas administração de fronteiras — era guerra cultural, era um campo simbólico onde o sofrimento dos imigrantes tinha valor político como espetáculo.
Outro episódio revelador: quando analistas do Departamento de Saúde elaboraram um relatório mostrando que refugiados geravam superávit fiscal ao país — pagando mais impostos do que recebendo benefícios —, Miller ordenou que o estudo fosse engavetado. A ciência e os dados só interessavam se servissem à narrativa que reforçava sua agenda anti-imigrante.
Sob sua influência, o Departamento de Segurança Interna passou por uma purga institucional. Miller trabalhou ativamente para derrubar a secretária Kirstjen Nielsen, considerada “moderada demais”, e substituí-la por nomes mais alinhados. Também interferiu diretamente na escolha de lideranças do ICE e do USCIS, garantindo que todo o aparato migratório fosse colonizado por sua visão de guerra cultural.
Em paralelo, investigações jornalísticas revelaram que Miller trocava e-mails com figuras ligadas a publicações de supremacia branca, como VDARE e American Renaissance. Essas mensagens, tornadas públicas em 2019, mostravam não apenas afinidade ideológica, mas um esforço deliberado em usar materiais racistas como insumo para sua formulação política. Isso levou o Southern Poverty Law Center (SPLC) a listá-lo entre as figuras centrais da extrema-direita institucionalizada nos EUA.
O resultado de seu trabalho foi devastador: os EUA deixaram de ser vistos como terra de acolhimento e passaram a projetar uma imagem de fortaleza sitiada, onde o imigrante não era ser humano, mas inimigo interno. E se Trump era a face caricata dessa política, Miller era sua engrenagem invisível — o arquiteto frio e meticuloso que transformava preconceito em norma de Estado.
Entre eleições e lawfare: Miller como estrategista do caos
Se a imigração foi o laboratório de Stephen Miller, a disputa eleitoral e o lawfare tornaram-se seu campo de expansão. Ao lado de Donald Trump, ele entendeu que a guerra política não se vence apenas nas urnas, mas também na corrosão contínua da confiança pública nas instituições.
Em 2020, Miller esteve entre os primeiros a articular, de dentro da Casa Branca, a narrativa da fraude eleitoral. Enquanto Trump repetia slogans, Miller se encarregava de estruturar um discurso consistente — não com provas, mas com insinuações, frases de efeito e estratégias jurídicas que prolongaram a batalha para além do dia da eleição. Ele foi um dos arquitetos do plano dos chamados “eleitores alternativos”, que buscava introduzir delegados falsos no Colégio Eleitoral para reverter a vitória de Joe Biden.
Sua atuação também tocou diretamente o 6 de janeiro de 2021. Miller ajudou a preparar o discurso que antecedeu a invasão do Capitólio, um texto calibrado para insuflar a ideia de que as instituições estavam contra o “verdadeiro povo americano”. Embora não tenha subido ao palco, sua marca estava nas palavras que empurraram milhares para o confronto.
Após a derrota de Trump, Miller fundou a America First Legal Foundation, uma organização jurídica moldada para ser a “ACLU da direita”. A ideia era clara: transformar o lawfare em arma permanente contra o governo democrata e contra qualquer política progressista que pudesse fortalecer minorias, direitos sociais ou diversidade. A fundação abriu ações contra escolas que adotavam políticas de inclusão, contra programas de diversidade racial em universidades e até contra empresas que promoviam iniciativas ambientais, acusando-as de “discriminação contra brancos” ou “ideologia de gênero”.
Mais do que litígios, a America First Legal funcionava como uma usina de guerra psicológica judicial, ocupando tribunais e sufocando adversários com processos estratégicos. Era a continuidade do método Miller: transformar ressentimento em litígio, burocracia em arma, lei em campo de batalha.
Esse movimento ampliou sua influência. De estrategista da política migratória, Miller se tornou um engenheiro do caos institucional: alguém que compreendeu que a lentidão da justiça e a complexidade dos processos poderiam ser usados como instrumentos de desestabilização política. Um exemplo perfeito daquilo que hoje chamamos de lawfare.
Assim, Miller deixou claro que sua luta não era apenas contra imigrantes. Era contra qualquer avanço social que desafiasse a hierarquia racial, cultural e econômica que ele considera “natural”. E ao projetar esse combate no sistema jurídico, garantiu que o trumpismo tivesse um braço armado nos tribunais, mesmo fora da Casa Branca.
O retorno em 2025: vice-chefe de gabinete e conselheiro de segurança
A vitória de Donald Trump em 2024 trouxe de volta ao coração da Casa Branca os personagens mais leais ao projeto MAGA. Entre eles, ninguém retornou com mais poder acumulado do que Stephen Miller. Nomeado vice-chefe de gabinete para políticas e conselheiro de segurança interna, ele passou a ocupar uma posição única: redator de decretos, formulador de estratégias e coordenador de segurança nacional, com autoridade que ultrapassa secretários de gabinete.
Segundo o Wall Street Journal, Miller “escreveu ou editou todos os decretos executivos que Trump assinou” nos primeiros meses de 2025. Não é exagero afirmar que o funcionamento normativo do governo passa por sua mesa. Ele opera na lógica do “flood the zone” — inundar o espaço público com uma avalanche de ordens executivas, medidas provisórias e anúncios simultâneos, de forma a sobrecarregar a oposição, confundir a imprensa e tornar impossível responder a todos os ataques ao mesmo tempo.
Além da caneta, Miller passou a ter poder operacional direto sobre órgãos estratégicos. Coordenou, por exemplo, a resposta federal aos protestos de junho de 2025 em Los Angeles, envolvendo não apenas o Departamento de Justiça, mas também o Pentágono e o DHS. Essa movimentação revelou seu papel como homem forte de segurança interna, com trânsito em múltiplas agências.
Outro ponto delicado é sua participação financeira na Palantir, empresa de big data cofundada por Peter Thiel e que fornece tecnologia de vigilância para o ICE e outras agências. A sobreposição entre seu papel político e seus interesses privados foi denunciada por veículos de investigação como o Project on Government Oversight, que apontam risco grave de conflito de interesses: Miller molda políticas que podem beneficiar uma empresa da qual é acionista.
A influência de Miller não é apenas administrativa; é ideológica. Ele foi o motor por trás da tentativa de revogar o direito à cidadania por nascimento, medida que atingiria diretamente milhões de filhos de imigrantes. Foi também um dos principais defensores da saída dos EUA da Organização Mundial da Saúde, em meio às disputas geopolíticas, e do plano de classificar cartéis mexicanos como organizações terroristas internacionais, abrindo a porta para intervenções militares.
Em resumo, Miller voltou não apenas mais poderoso, mas mais desembaraçado. Se em 2017–2020 ainda disputava espaço com nomes como Steve Bannon, hoje ele reina quase sem rivais no núcleo duro da formulação política. É o exemplo acabado do tecnocrata ideológico que governa nas sombras, alguém que não precisa de eleição nem de carisma: sua força está na capacidade de traduzir ressentimentos em decretos e em manipular o aparato estatal como extensão de sua guerra cultural.
As redes de poder: Project 2025, Peter Thiel, Musk e Bannon
Se Miller é a engrenagem invisível dentro da Casa Branca, ele também é um dos pontos de interseção mais importantes da rede que conecta ideólogos, bilionários e estrategistas da ultradireita norte-americana. Sua força não vem apenas do cargo formal, mas da capacidade de articular interesses díspares em torno de um mesmo projeto autoritário.
Project 2025: a sombra programática
A proximidade de Miller com o Project 2025 foi tema de controvérsia durante a campanha de 2024. A America First Legal, fundação criada por ele, chegou a ser listada como parceira no conselho consultivo do projeto, iniciativa da Heritage Foundation para desenhar um governo MAGA em escala total. Sob pressão, Miller pediu que seu nome fosse retirado da lista e negou envolvimento direto. Ainda assim, vídeos promocionais e declarações públicas o vincularam ao projeto. A verdade é que, mesmo tentando se distanciar formalmente, Miller aplica hoje no governo a lógica exata do Project 2025: aparelhar agências federais, purgar servidores não alinhados, e transformar a máquina pública em instrumento de guerra cultural permanente.
Peter Thiel e a Palantir: o braço tecnológico
Outro elo fundamental é com Peter Thiel, bilionário cofundador da Palantir. Miller possui participação financeira na empresa, e sua influência em políticas migratórias e de vigilância beneficia diretamente a companhia, fornecedora de softwares de rastreamento para o ICE e outras agências de segurança. Essa conexão representa não só conflito de interesses, mas também a fusão entre ideologia autoritária e poder tecnológico: Miller garante o ambiente político, Thiel fornece a infraestrutura digital.
Elon Musk e o DOGE: a simbiose com o capital disruptivo
Miller e sua esposa, Katie Miller, aparecem como interlocutores privilegiados de Elon Musk e de seu chamado Departamento de Eficiência Governamental (DOGE). Musk perdeu o cargo onde buscava reduzir o governo ao osso, substituindo políticas públicas por modelos de gestão corporativa radicalizados. Miller funciona como tradutor ideológico desse plano: transforma o radicalismo tecnolibertário de Musk em normas estatais que esvaziam programas sociais, ambientais e educacionais. É a convergência perfeita entre capitalismo disruptivo e autoritarismo político.
Steve Bannon: o irmão ideológico
No início da era Trump, Miller e Steve Bannon eram descritos como “irmãos ideológicos”. Ambos partilhavam a visão de uma guerra civil cultural a ser travada em todas as frentes. Embora Bannon tenha perdido espaço após 2017, a marca de sua influência continua visível na trajetória de Miller: o mesmo desprezo pelas instituições democráticas, a mesma crença em um choque permanente contra o “globalismo” e a convicção de que a política deve ser guerra. Hoje, Miller não precisa mais de Bannon, mas carrega adiante a tocha que ele ajudou a acender.
Em síntese, Stephen Miller não é apenas um burocrata poderoso — ele é o nó central de uma rede que conecta think tanks como a Heritage, bilionários como Thiel e Musk, e ideólogos como Bannon. É nesse entrecruzamento que sua influência se multiplica: ele opera simultaneamente no Estado, na economia digital e na esfera ideológica. Miller é a prova de que o trumpismo é mais do que um homem ou um partido; é um ecossistema.
O risco estrutural: por que Miller ameaça a democracia
O maior risco que Stephen Miller representa não está apenas em suas ideias — que já seriam suficientes para alarmar qualquer defensor da democracia —, mas na forma como ele as transforma em arquitetura de poder. Ele não é um agitador de palanque, nem um comentarista de televisão; é um tecnocrata ideológico que sabe como ocupar a máquina do Estado e redesenhá-la de dentro para fora.
A ameaça central está em seu método: usar os mecanismos da legalidade para corroer a própria legalidade. Ao redigir decretos executivos, ao moldar políticas migratórias, ao dirigir processos de lawfare, Miller opera como engenheiro da erosão institucional. Ele não propõe um golpe clássico, visível e abrupto. Sua estratégia é mais insidiosa: transformar o funcionamento cotidiano do Estado em um instrumento permanente de guerra cultural.
Outro risco é sua concepção de cidadania. Para Miller, não basta controlar fronteiras; é preciso redefinir quem pertence e quem não pertence à comunidade nacional. A tentativa de revogar o direito à cidadania por nascimento é a expressão mais brutal dessa visão. O que está em jogo não é apenas política migratória, mas a própria ideia de inclusão democrática. Ao atacar esse pilar, Miller mina um dos fundamentos do Estado moderno e abre caminho para um Estado étnico excludente.
Além disso, sua rede de conexões amplia exponencialmente seu alcance. Ao articular-se com bilionários como Peter Thiel e Elon Musk, Miller dá ao trumpismo acesso a tecnologias de vigilância, algoritmos e infraestrutura digital capazes de controlar fluxos de informação e monitorar populações. Ao se conectar com ideólogos como Bannon, garante a narrativa que mobiliza ressentimento e ódio. Ele é o ponto de convergência entre o capital, a ideologia e o aparelho estatal.
O risco, portanto, não é apenas americano. A política moldada por Miller transborda fronteiras. O trumpismo é hoje uma força transnacional, que inspira e financia projetos de extrema-direita em países como o Brasil. O mesmo Miller que desenha políticas de deportação em massa nos EUA é também a mente que sustenta a lógica da guerra cultural global. Mesmo sem um gesto direto contra o Brasil, seu trabalho fortalece o ecossistema autoritário que alimenta o bolsonarismo e a extrema-direita latino-americana.
Em suma, Miller ameaça a democracia porque atua onde ela é mais vulnerável: nos interstícios da burocracia, nos detalhes das normas, nos decretos que passam sem debate público. Ele é o operador invisível de um projeto autoritário que se apresenta como legal, mas cujo objetivo final é esvaziar a própria democracia.
E o Brasil nessa história?
À primeira vista, pode parecer que Stephen Miller é apenas um personagem interno da política norte-americana, sem conexão direta com o Brasil. No entanto, essa leitura seria ingênua. O que Miller representa é uma matriz de poder transnacional que, embora gestada em Washington, tem efeitos globais — especialmente no Sul Global.
O trumpismo não é apenas uma corrente doméstica; é um projeto exportável. As estratégias de guerra cultural, de lawfare e de manipulação da burocracia de Estado se tornaram manual de instruções para a extrema-direita em vários países. No Brasil, vimos esse mesmo script ser adaptado desde 2015: a instrumentalização da justiça, a narrativa da corrupção como arma política, o ataque sistemático a professores e intelectuais, a demonização do imigrante e das minorias. Não é coincidência. Trata-se de uma lógica compartilhada, que encontra em figuras como Miller seus engenheiros originais.
Além disso, há paralelos concretos. A política migratória agressiva de Miller ecoa nos discursos bolsonaristas contra refugiados venezuelanos em Roraima. A lógica de que o Estado deve ser “purgado” de servidores considerados “inimigos” ressoou nas tentativas de desmonte institucional durante o governo Bolsonaro. Até a retórica de “flood the zone”, usada por Miller para sobrecarregar opositores com decretos e medidas, foi reproduzida aqui na forma de bombardeio informacional e medidas provisórias sucessivas.
A ligação não precisa ser direta para ser perigosa. O simples fato de Miller estruturar o trumpismo em escala federal nos EUA fortalece todo o ecossistema global da extrema-direita, que vai de Orbán na Hungria a Milei na Argentina, passando pelo bolsonarismo no Brasil. Trata-se de uma internacional reacionária que compartilha métodos, narrativas e financiadores.
Para o Brasil, compreender quem é Stephen Miller é crucial. Não apenas porque ele influencia o rumo da maior potência do planeta, mas porque o modelo que ele consolidou nos EUA serve de referência para as forças que atuam aqui. Saber como Miller opera significa entender os bastidores da máquina que inspira e financia a extrema-direita brasileira.
Em outras palavras: mesmo que nunca dê uma declaração sobre o Brasil, Stephen Miller já nos afeta — porque a política que ele ajuda a construir molda o terreno global em que o bolsonarismo se move.
Conclusão – Nomear para resistir
Stephen Miller não é um nome familiar para a maioria dos brasileiros. E é justamente aí que reside parte de seu poder: operar nas sombras, moldando políticas e decretos sem se expor ao desgaste da arena pública. Ele representa um tipo de ameaça diferente daquela encarnada por Trump ou Musk. Não é o bilionário performático, nem o populista de palanque. É o burocrata ideológico, frio, persistente, que entende a máquina estatal como arma e a democracia como obstáculo a ser contornado.
Ao longo da última década, Miller desenhou políticas de deportação em massa, legitimou a crueldade como estratégia de governo, sabotou dados científicos para alimentar narrativas racistas e ajudou a corroer a confiança no processo eleitoral. De volta ao coração do poder em 2025, ele ampliou ainda mais sua influência, transformando-se em uma espécie de primeiro-ministro invisível do trumpismo, aquele que escreve as regras enquanto os holofotes se voltam para outros.
Ignorar figuras como Miller é um erro estratégico. Para o Brasil, conhecê-lo significa entender a engrenagem que alimenta o bolsonarismo e a extrema-direita global. O mesmo manual de guerra cultural e lawfare que ele aplica nos EUA já circula aqui, inspirando práticas de perseguição política, ataques à diversidade, demonização de minorias e assaltos institucionais.
Nomear Stephen Miller é mais do que uma curiosidade jornalística: é um ato de resistência. É dizer que sabemos quem opera a máquina do autoritarismo, que reconhecemos os engenheiros invisíveis da guerra híbrida que atravessa fronteiras. E que, ao expor esses nomes, nos preparamos melhor para defender a democracia.
Porque, no fim, não basta combater os rostos visíveis do autoritarismo. É preciso também iluminar as sombras onde se escondem os cérebros que o tornam possível.
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Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. Editor do codigoaberto.net É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.
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