Revelações recentes expõem crise no comitê parlamentar responsável pela fiscalização dos serviços secretos britânicos. Falta de recursos, interferência direta do gabinete do primeiro-ministro e provas abafadas de envolvimento em tortura e sequestros ilegais revelam conivência criminosa do Estado britânico.
No dia 1º de maio, o jornal The Times revelou que o Comitê de Inteligência e Segurança (ISC, na sigla em inglês), instância parlamentar que deveria supervisionar os serviços de espionagem britânicos, enfrenta uma crise financeira tão grave que pode ser forçado a interromper suas atividades. O atual presidente do comitê, lorde Beamish, acusou o Gabinete do Primeiro-Ministro — que aloja o próprio ISC — de sufocar deliberadamente o funcionamento do órgão por meio de ingerência e controle direto sobre sua equipe e orçamento.
Segundo Beamish, esse estrangulamento institucional atinge o cerne da suposta capacidade do Parlamento de responsabilizar os serviços secretos por ações realizadas em segredo e com financiamento público. Ele denunciou que cerca de 3 bilhões de libras esterlinas são consumidas anualmente pelas agências de espionagem sem qualquer supervisão efetiva. A promessa de um reforço emergencial feita pelo governo conservador de Rishi Sunak antes das eleições de julho de 2024 foi ignorada após a vitória esmagadora do Partido Trabalhista.
A imprensa corporativa tentou relativizar as denúncias, apresentando-as como meras questões administrativas. Contudo, em declarações anteriores, o próprio Beamish já havia alertado para a falta de responsabilidade democrática nas operações dos espiões britânicos, classificando a situação do ISC como crítica e apontando o colapso iminente da estrutura. Reduzido a uma equipe mínima por cortes sucessivos do Gabinete do Primeiro-Ministro, o comitê, segundo ele, está à beira da inoperância.
Desde sua criação em 1994, o ISC é alvo de questionamentos. Diferentemente de outras comissões parlamentares, seus relatórios são previamente submetidos ao crivo do governo e das próprias agências de espionagem antes de qualquer publicação, garantindo que nenhuma informação comprometedora venha a público. O que deveria ser um mecanismo de controle funciona, na prática, como uma extensão das instituições que deveria fiscalizar.
A fragilidade do comitê não é acidental. Em tempos de repressão interna crescente, impulsionada pela insatisfação popular com a política britânica de apoio ao genocídio na Faixa de Gaza, e com o país envolvido em confrontos cada vez mais diretos contra a Rússia, o funcionamento autônomo do ISC é visto como um obstáculo a ser removido.
Em 2015, o deputado conservador David Davis, um dos idealizadores do comitê, afirmou publicamente que o ISC havia sido capturado pelos próprios órgãos de espionagem que deveria vigiar. Segundo ele, os agentes dos serviços secretos desprezavam o comitê, que só tomava conhecimento do que os próprios espiões decidiam revelar. Como exemplo, citou a postura do então presidente do ISC, Malcolm Rifkind, que defendia publicamente os programas de vigilância em massa do GCHQ, mesmo depois das denúncias feitas por Edward Snowden. Rifkind dizia que tudo era legal, sem nunca ter confrontado os chefes das agências.
Essa conivência ficou patente quando o comitê publicou um relatório sobre o envolvimento da espionagem britânica no programa de tortura e sequestros ilegais da CIA após o 11 de Setembro. O relatório, divulgado dois meses antes de uma decisão histórica da Corte Europeia de Direitos Humanos que condenou as operações do GCHQ, teve seu conteúdo alterado a pedido de Washington, exatamente como ocorrera com o relatório do Senado dos EUA sobre o mesmo tema.
No prefácio do documento, o próprio comitê admitiu que suas conclusões não poderiam ser consideradas definitivas, pois as limitações impostas pelo então governo de Theresa May impossibilitaram uma apuração séria. May proibiu o acesso do ISC aos agentes diretamente envolvidos nos abusos, e os poucos que foram ouvidos não puderam relatar detalhes nem tiveram suas declarações citadas no relatório.
Mesmo sob esse cerco, o ISC revelou que agentes do MI6 participaram de interrogatórios realizados por militares norte-americanos em prisões no Afeganistão, no Iraque e em Guantánamo entre 2002 e 2004. O comitê identificou pelo menos 13 casos em que os espiões britânicos testemunharam práticas de tortura. O Reino Unido compartilhou enormes volumes de informações com serviços estrangeiros, mesmo sabendo ou suspeitando fortemente que os detidos seriam torturados.
No total, foram catalogados 198 episódios em que os serviços secretos receberam informações obtidas sob tortura e 128 situações em que governos estrangeiros alertaram diretamente os britânicos sobre maus-tratos cometidos. Além disso, Londres ofereceu dinheiro a parceiros estrangeiros para que realizassem sequestros ilegais e participou da organização de pelo menos 28 operações desse tipo.
O relatório apontou envolvimento direto do MI5 e MI6 em 53 casos de sequestros ilegais, três deles com financiamento direto dos britânicos. Em 559 ocasiões, as agências tentaram obter informações de pessoas que sabiam ou tinham fortes indícios de que haviam sido submetidas à tortura.
Uma das provas mais contundentes veio à tona após a queda de Muamar Gaddafi em 2011, quando milhares de documentos oficiais foram encontrados em prédios abandonados na Líbia. Entre eles, estavam comunicações enviadas por Mark Allen, então chefe de contraterrorismo do MI6, ao governo líbio. Em março de 2004, ele comemorava o envio do militante líbio Abdel Hakim Belhaj e sua esposa grávida, sequestrados na Malásia com ajuda dos britânicos e entregues aos torturadores líbios.
Allen afirmava:
“Parabéns pela chegada segura de [Belhaj]. Era o mínimo que podíamos fazer por vocês, para mostrar o relacionamento notável que construímos nos últimos anos… Engraçado, os americanos pediram para que repassássemos os pedidos de informação sobre [Belhaj] por eles. Não tenho nenhuma intenção de fazer isso. A informação é britânica. Sinto que tenho o direito de tratar diretamente com vocês.”
Essas mensagens incriminatórias compunham parte de um dossiê de 28 mil páginas coletado pela Scotland Yard. Em 2014, sob a chefia de Keir Starmer no Ministério Público, nenhuma denúncia foi apresentada contra Allen. A justificativa foi a de que não havia provas suficientes. Vários outros agentes de alto escalão também escaparam de qualquer punição, apesar do vasto material reunido pelas investigações. A decisão final coube a Starmer.
A trajetória meteórica de Starmer até o posto de primeiro-ministro parece inexplicável sem o respaldo dos setores mais poderosos do aparato estatal britânico. Durante seu período à frente da promotoria pública, além de blindar torturadores e destruir arquivos comprometedores sobre o caso Assange, também encerrou investigações contra figuras notórias como o pedófilo Jimmy Savile. Agora, como chefe do governo, Starmer demonstra ser a escolha ideal para preservar os segredos e os crimes da inteligência britânica.