
SPI e Funai: entre a tutela e o apagamento
por Dora Nassif
O fio que liga SPI, Funai e o marco temporal é claro: em todos os momentos, a retórica da proteção foi usada como máscara para a subordinação
As instituições estatais criadas supostamente para a proteção dos povos originários, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, e a Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1967, foram responsáveis por aprofundar a subordinação. Em nome da proteção, praticaram controle, remoções e expropriações, colocando-se a serviço de projetos econômicos e políticos que privilegiaram sempre os interesses da “integração nacional” sobre a vida dos povos originários.
É importante lembrar que os direitos indígenas são anteriores à própria Constituição. Desde o período colonial, documentos como o Alvará Régio de 1680 reconheciam os indígenas como “primeiros e naturais senhores” das terras:
4.° “… E para que os ditos Gentios, que assim descerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeas: hey por bem que senhores de suas fazendas como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer molestia. (…) e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão dadas em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero que se entenda ser reservado o prejuízo, e direito dos Indios, primarios e naturaes senhores dellas.”
A Constituição de 1988 não cria esses direitos, apenas os reconhece como originários, conforme previsão do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
Portanto, o direito dos indígenas à demarcação é protegido e reconhecido desde 1680. Mas, ao longo da história, esse reconhecimento foi sendo substituído por uma lógica tutelar: os indígenas passaram a ser tratados como incapazes, como “órfãos do Estado”, submetidos a uma tutela que lhes retirava autonomia.
O SPI nasceu nesse contexto. Inspirado por ideais positivistas e pela crença no progresso nacional, seu lema era “civilizar para integrar”. A prática se traduziu em transformá-los em mão de obra barata para a expansão agrícola e pecuária. A retórica da proteção foi desmentida pelo Relatório Figueiredo, de 1967, que revelou massacres, corrupção, trabalhos forçados, estupros e até a disseminação proposital de doenças. Não era falha pontual: era o próprio Estado, por meio do SPI, agindo como agente direto da violência.
Com a extinção do SPI, criou-se a Funai, em 1967, no auge da ditadura. A nova instituição herdou quadros, práticas e a mentalidade tutelar de seu antecessor. Sob o lema da “integração nacional”, tornou-se peça central do projeto desenvolvimentista autoritário, articulando-se a militares, grandes obras de infraestrutura e interesses minerários e agropecuários. Estradas, hidrelétricas e fazendas avançaram sobre territórios indígenas, e comunidades inteiras foram removidas. Casos como o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, em Minas Gerais, reconhecido pela Comissão Nacional da Verdade como um verdadeiro campo de concentração, evidenciam que a “proteção” estatal significava prisão, castigo e controle.
Quem decidia sobre a vida dos povos indígenas não eram eles, mas gabinetes de Brasília, alianças com frentes econômicas e projetos de ocupação da Amazônia e do interior. O Estado, por meio de SPI e Funai, não apenas falhou em garantir direitos: foi protagonista de sua violação, subordinando os povos originários a um projeto que sempre priorizou interesses de fora sobre seus modos de vida.
Essa herança persiste até hoje. A ofensiva do marco temporal é a versão contemporânea da mesma lógica tutelar. Seus defensores argumentam que: (i) a Constituição teria fixado um prazo de cinco anos (art. 67 do ADCT) para a conclusão das demarcações, transformando-o em limite para os direitos; (ii) a decisão do STF no caso Raposa Serra do Sol (2009) já teria adotado o marco temporal, vinculando a posse à data de 5 de outubro de 1988; (iii) sem esse critério, haveria insegurança jurídica para ocupantes não indígenas; e (iv) apenas as terras ocupadas fisicamente em 1988 poderiam ser consideradas “tradicionalmente ocupadas”.
Todos esses argumentos, no entanto, não se sustentam. Conforme já sublinhado, o art. 231 da Constituição reconhece os direitos indígenas como originários, ou seja, anteriores à própria formação do Estado brasileiro. O art. 67 do ADCT não limita esses direitos: ao contrário, impôs uma obrigação ao Estado de concluir as demarcações em cinco anos, obrigação que foi descumprida. Transformar essa obrigação em limite é inverter a lógica constitucional. O precedente de Raposa Serra do Sol, além de não ter efeito vinculante, foi superado pelo próprio STF no RE 1.017.365, em 2023, quando a Corte afirmou que ocupação tradicional não se confunde com um marco temporal fixo, mas deve ser compreendida à luz da história de cada povo.
Mais grave ainda: condicionar os direitos à presença física em 1988 significa ignorar que, em muitos casos, os povos foram impedidos de estar em suas terras pelo próprio Estado, seja por massacres, confinamentos ou remoções forçadas documentadas pela CNV (2014). O marco temporal, nesse sentido, representa uma anistia territorial para os crimes de expulsão.
Além disso, como apontam as autoras indígenas em Demarcar é Reparar, essa tese gera um ciclo de violência: a violência jurídica legitima a violência física, ao autorizar invasões, conflitos fundiários e ataques contra comunidades e lideranças. É a perpetuação da lógica que atravessa SPI e Funai: em nome da lei, negar a existência indígena.
O fio que liga SPI, Funai e o marco temporal é claro: em todos os momentos, a retórica da proteção foi usada como máscara para a subordinação. Enquanto isso, os povos indígenas foram perseguidos, deslocados e invisibilizados. Reconhecer essa responsabilidade é indispensável. O Brasil não pode falar em democracia plena se não encarar que sua máquina estatal produziu, e ainda produz, controle e expulsão.
Resistir a essa lógica é afirmar que os direitos indígenas não são concessões, mas direitos originários. Só quando o Estado reconhecer plenamente essa verdade será possível pensar em justiça e reparação. Até lá, SPI, Funai e o marco temporal não serão apenas passados: serão parte de uma estrutura que insiste em negar a autonomia e a existência dos povos originários.
Dora Nassif – Advogada e Mestranda em Direitos Humanos, Universidad Pablo de Olavide, em Sevilla
Referências
Alvará Régio de 1680. (1680). Reconhece aos indígenas a condição de “primeiros ocupantes e naturais senhores de suas terras”. In: Coleção de Leis do Brasil.
Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal.
Comissão Nacional da Verdade. (2014). Relatório da Comissão Nacional da Verdade: Violações de direitos humanos dos povos indígenas. Brasília: CNV.
Figueiredo, J. C. de. (1967). Relatório Figueiredo. Brasília: Ministério do Interior.
Mendonça, M., & Pankararu, M. (2023). Demarcar é reparar: povos indígenas e justiça de transição. Brasília: Fundação Rosa Luxemburgo.
Soares, G. C. (1992). Os Borun do Watu: História e resistência Krenak. Belo Horizonte: UFMG.
Souza Filho, C. F. M. de. (2012). Terras indígenas: fundamento e regime jurídico. São Paulo: Malheiros.
Supremo Tribunal Federal (STF). (2009). Petição 3.388/RR (Raposa Serra do Sol). Brasília: STF.
Supremo Tribunal Federal (STF). (2023). Recurso Extraordinário 1.017.365. Brasília: STF
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