Sol da Vai-Vai: A Luz que Nunca se Apaga
por Daniel Costa
O Vai-Vai, uma das maiores agremiações do Carnaval Brasileiro e a maior campeã do Carnaval de São Paulo, com 15 títulos e dez vice-campeonatos (a agremiação conquistou os carnavais de 1978, 1981, 1982, 1986, 1987, 1988, 1993, 1996, 1998, 1999, 2000, 2001, 2008, 2011 e 2015), é muito mais do que uma escola de samba. É também um símbolo de resistência, cultura e tradição, construído por personagens que dedicaram suas vidas aos festejos de Momo e ao samba. Entre esses nomes, destaca-se Carlos Natalino Bernardes. Ao falar esse nome, poucos saberão de quem se trata; porém, se perguntarem por seu nome artístico, Sol da Vai-Vai, todos saberão de quem se trata.
Pródiga em revelar grandes intérpretes de samba-enredo, desde Thobias, o mais conhecido, que passou a levar o nome da agremiação como sobrenome; é extensa a lista de intérpretes que deixaram sua marca na alvi-negra do Bixiga, passando pelos pioneiros Carioca, Zé Di e Chuveiro, até Luiz Felipe, o atual intérprete. Não podemos esquecer também o grande cantor e ator Aldo Bueno, responsável por imortalizar o clássico Orun Aiyê – O Eterno Amanhecer, samba de Oswaldinho da Cuíca e Serginho para o carnaval de 1982. Para completar a lista devemos mencionar ainda nomes como Almir Guineto, Agnaldo Amaral, Wantuir, Gilsinho e Wander Pires. Nesse panteão de grandes intérpretes, Sol transformou-se em uma figura que transcende o papel de intérprete para se tornar um ícone do samba paulista e um símbolo da história da escola do Bixiga. Quem viveu a época em que ainda tínhamos uma quadra lembra muito bem daquela figura que animava os intervalos dos ensaios na Rua São Vicente, com o seu “Salgueiro, Salgueiro, Salgueiro, Vai-Vai”.
Nascido e criado no Bixiga, bairro que pulsa ao ritmo do samba e da resistência cultural negra e italiana, Sol carrega consigo a alma de São Paulo. Sua voz não somente canta sambas; ela ecoa a história de um povo, a luta de uma comunidade criada nas ruas do Bixiga e a beleza de uma tradição que resiste ao tempo. Prestes a completar setenta anos, Sol é uma força da natureza. Como lembrou seu amigo Osvaldinho da Cuíca: o Sol é um farol que ilumina o caminho do samba paulista há décadas. Sua trajetória é um testemunho vivo de dedicação e amor à cultura popular, e sua presença continua a inspirar gerações.
Nosso personagem iniciou sua trajetória no Vai-Vai em 1975, quando gravou seu primeiro samba para a escola. Desde então, Sol se tornou sinônimo de dedicação e amor à agremiação. Sua história está entrelaçada com a própria evolução da escola, que nasceu humilde, em um cômodo de cozinha na Rua 14 de Julho, no Bixiga, e cresceu para se tornar um dos maiores símbolos da cultura negra e popular de São Paulo. Inspirado por mestres como Geraldo Filme, Sol aprendeu que o samba não se faz somente com instrumentos, mas com alma, com história, com resistência.
A Voz que Canta e Conta Histórias
Sol não é apenas um intérprete; ele é um contador de histórias. Quando cantava na avenida, não somente entoava versos, mas fazia o público e o componente do Vai-Vai reviver memórias, homenageando nossos ancestrais e fortalecendo a identidade de uma comunidade. Sambas como José Maurício, Músico do Brasil Colonial (1977), de Odair Fala Macio e Água de Cheiro (1985), que Sol imortalizou como Xerere, composição de Nadão e Turquinho, são mais do que músicas; são manifestos culturais, testemunhos de uma época em que o samba era feito sem patrocínios ou holofotes. Como lembrou um veterano membro da escola, o samba e o carnaval eram feitos na base da força bruta, da paixão e da união. Sol não somente interpretou esses sambas; ele os viveu, os respirou, os transformando em parte de sua própria existência, afinal, quando a comunidade lembra do citado samba de 1985, automaticamente vem a lembrança do intérprete.
Além de sua atuação como cantor na avenida, Sol também é responsável por imortalizar o Hino da Ala de Compositores do Vai-Vai, presente no álbum Vai-Vai 65 Anos de Samba. Em 1994, ele gravou o disco Estrela Guia, produzido por Sólon Tadeu, então presidente da agremiação. O álbum contou com composições de grandes nomes da escola, como Ademir, Nadão, Borrão, Brechó e Fernando Penteado, autor, em parceria com Sol, do Samba da Polícia, uma tentativa de diálogo com o samba feito por Bezerra da Silva. Em 2013, Sol gravaria Facho de Luz, samba de Wagner Santos que, mais do que uma homenagem ao próprio cantor, presta uma reverência a todos que fazem o chão da escola do Bixiga ser diferente das demais coirmãs.
Um Guardião da Tradição
Como dito acima, no Vai-Vai, Sol foi muito mais do que um intérprete. Ele é um guardião da tradição, um elo entre o passado e o presente, que deveria ser reverenciado, assim como outros grandes personagens, pela diretoria da agremiação. Cresceu ao lado de gigantes da escola, como Chiclé, Feijoada, Osvaldinho da Cuíca e Fernando Penteado, e ajudou a construir a escola com suas próprias mãos, pois além da voz, sempre esteve disponível para qualquer parada, como o mesmo afirma em depoimento. Foi um dos fundadores da ala de compositores, um espaço que organizou e fortaleceu a voz dos artistas da agremiação. Sua dedicação ao Vai-Vai avança para além do palco e da avenida; como ele mesmo diz, é uma relação de sangue, de família e de fé. A bandeira da escola está acima de tudo.
Sol também é uma referência para o samba paulista. Sua malemolência, sua cadência única e sua interpretação são reconhecidas por todos que amam o samba feito na Pauliceia. Ele não canta; ele ginga, ele dança, ele conta cada história a seu modo. Cada nota que entoa é um convite para mergulhar nas raízes do samba, para sentir o pulsar dos tamborins, a batida única dos surdos do Vai-Vai que remete aos bumbos de Pirapora, a energia que vem das ruas e dos terreiros. Ele é a voz de um povo que resiste, que celebra, que vive.
A História do Vai-Vai e Seus Protagonistas
A trajetória do Vai-Vai é marcada por grandes líderes e personagens que ajudaram a construir a agremiação. Desde Seu Livinho, o primeiro apitador e mestre da bateria, que comandou o cordão de 1930 a 1951, cada um contribuiu para o crescimento e a consolidação da escola. Pé Rachado, Seu Chiclé, Sólon Tadeu Pereira, Thobias da Vai-Vai são nomes que também fizeram parte dessa jornada.
A bateria do Vai-Vai, com sua batida inconfundível, sempre foi um dos pilares da agremiação, desde os tempos de cordão. Desde os tempos de Seu Livinho, passando por Pé Rachado e Pato n’Água, até o comando atual de Mestre Tadeu, que assumiu em 1973, sendo considerado patrimônio vivo do Vai-Vai e do carnaval paulistano, a escola sempre teve grandes mestres e batuqueiros. Mestre Tadeu, com 16 títulos de campeão do carnaval, é o maior colecionador de vitórias da história do Vai-Vai e detém o recorde de mestre há mais tempo comandando uma mesma bateria.
A corte do Vai-Vai também é parte fundamental de sua história. Dona Olímpia foi responsável por mais de duas décadas pela corte do cordão, onde Teléco e Claudete ostentaram o cargo de rei e rainha por muito tempo. Cleuza, que mais tarde se tornaria porta-bandeira, e sua irmã Clélia, que dançava à frente da bateria nos anos 1950, são nomes que marcaram época. A primeira ala – show do cordão, criada em 1968 e liderada por Clodoaldo (Tida), trouxe grandes passistas como Bagulé, Edney e Edna, que se destacaram em concursos de samba.
O Legado de Sol da Vai-Vai
Sol da Vai-Vai é, acima de tudo, um ser de luz. Nomes como Osvaldinho da Cuíca e Fernando Penteado afirmam que sua presença ilumina não somente a avenida, mas também os corações daqueles que o veem como um exemplo de dedicação e amor ao samba. Ele é a prova viva de que o samba é mais do que música; é história, é identidade, é resistência. E enquanto seu corpo estiver presente, ele continuará a ser uma das vozes que guia o Vai-Vai e inspira o samba paulista.
Como ele mesmo afirma, com a humildade de quem sabe o valor de sua missão:
“Sou eu, Sol. E quero morrer simplesmente sendo o Sol.”
Valeu, Sol! Valeu, Saracura! Valeu, Vai-Vai!
Daniel Costa é jornalista, historiador e compositor.
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