Sobre um cronopoema para Sérgio: homenagem póstuma a Sérgio Manucci

por Gérson Pereira Filho, professor.

     O ano era 1977. Eu acabava de concluir o ensino fundamental, então oitava série, no Colégio Municipal José Vargas de Souza, segundo ano da municipalização do então Colégio Marista, iniciativa esta que permitiu a alunos como eu, de família de baixa renda, ter acesso a uma das escolas mais tradicionais de Poços de Caldas, com ensino público, gratuito e de qualidade.

   O ano era 1978. Matriculei-me no Instituto Educacional São João da Escócia, para o ensino médio. Na época, obrigatoriamente, tínhamos que escolher um curso técnico-profissionalizante, de acordo com a legislação educacional fruto do acordo Mec-Usaid, da ditadura militar, que visava preparar técnicos para a demanda da expansão das indústrias multinacionais, especialmente as estadunidenses.

    Optei por Análises Clínicas, pois tinha um sonho adolescente de seguir carreira médica; quinze anos; trabalhava durante o dia como contínuo no Bradesco, e pagava meu ensino médio noturno, pois meus pais não tinham condições financeiras para tal.

      Como meu interesse fosse, naquele momento, a área biológica e da saúde, ainda que mais tarde eu tenha descoberto minha vocação nas ciências humanas e sociais (Filosofia, História, Sociologia), expressava pouco interesse pelas exatas, enfrentadas com bastante dificuldades por mim. Até vir a ser aluno do Prof. Sérgio Manucci.  Com ele aprendi a vencer as dificuldades da disciplina numérica e até mesmo a pegar gosto pela coisa, ainda que sempre um aluno mediano na área.  Mais tarde, pela Filosofia, conheci Pitágoras, Tales de Mileto, Platão (que veio a ser meu filósofo de pesquisas e sobre quem conversamos algumas vezes – eu e Sérgio – sobre o poliedro de Platão!) Descartes, Pascal, Russell… Percebi logo que Sérgio Manucci era um matemático-filósofo, como tantos na história.

     Recebi a primeira formação  política, pelo meu pai; ele ainda não estava tão ativo politicamente no momento, como passou a ser nos anos 80/90, mas já vivenciava com clareza, a Teologia da Libertação e o ecumenismo inter-religioso que ganhavam forças nos meios religiosos progressistas; e, professor de Humanas que também era, passava, ainda que discretamente, relatos sobre os tempos sombrios que vivíamos e que nós, adolescentes, pouco percebíamos, vítimas que éramos do regime ditatorial, educados em escolas que nos obrigavam a ficar em filas, fazer continência e outros atos de pseudo-civismo, diante das fotos dos generais-ditadores, Médici, Costa e Silva, Castelo Branco.

     No colégio, Rovilson Molina, nosso professor de História, e Sérgio Manucci, de Matemática, se empenhavam em nos politizar um pouco e nos despertar da alienação em que estávamos.

    Anos 80, tempos  de abertura e redemocratização.  Sérgio e Rovilson nos incentivaram a abrir um Grêmio Estudantil e a reivindicar; isto, numa escola de elite, mantida pela maçonaria. Começamos, alguns, a abrir os olhos para o contexto político que vivíamos.  Logo vieram as primeiras eleições pós ditadura. 1982. Chapa fechada, votos vinculados, de vereador a governador; devia se escolher candidatos de um mesmo partido ou aliança, de ponta a ponta. Em Poços de Caldas, área de segurança nacional, devido às reservas de urânio da Nuclebrás, ainda não se votaria pra prefeito. Embora, nessa altura – em parte culpa desses professores citados – eu já tendesse um pouco mais para a esquerda – Brizola, Lula… atendi, como vários outros colegas, ao convite do professor Sérgio Manucci para participar da campanha dele a vereador, pelo então PMDB, que representava, sobretudo em Minas Gerais, com Tancredo Neves à frente, um alternativa progressista na resistência final à ditadura e a esperança na redemocratização. Entrei assim no ativismo político para não mais sair. Participamos de reuniões de campanha, fomos às ruas, nos comícios, panfletagens e, ainda que modestamente, colaboramos para que o professor Sérgio Manucci, já chamado carinhosamente por nós de Serjão, fosse eleito vereador e, ao que parece, até hoje, com o maior número de votos ao legislativo poçoscaldense, proporcionalmente ao número de eleitores. Sérgio fez um mandato de vereador impecável. Ativo, competente, comprometido socialmente, democrata, ponderado, certeiro, e essas foram suas marcas. Posteriormente, secretário de educação numa gestão progressista, iniciou o processo de municipalização do ensino fundamental e implementação do sistema de ensino de acordo com as diretrizes inovadoras para a educação com base na constituição democrática de 1988; atuou em prol da criação do Estatuto do Magistério.  Comecei a entender o significado de educação pública, sistema educacional de ensino, o que muito me ajudou quando, anos depois, tive a oportunidade de atuar como gestor na Secretaria Municipal de Educação e dar prosseguimento a esse processo de municipalização.

     Integrante do grupo conhecido como os “meninos do MDB”, Sérgio Manucci, Rovilson Molina, Carlos Couto, Cassinho da Rocha, João Gentilini, Luis Nassif, e outros, se fizeram respeitar pela atuação política  propícia para aqueles momentos de reconstrução da democracia.

       Fui para a faculdade de filosofia na então Autarquia de Ensino. Já consolidado na militância política, junto ao Diretório Acadêmico, encontramos na imprensa local, apoio e espaço para divulgação de ideias e ações.  E o prof. Sérgio, um dos fundadores de jornais locais, nos incentivava, especialmente intermediando alguns contatos com o “Jornal da Cidade”. O respeito e admiração seguiram, no respeito discreto.

     1984, derrota dá emenda Dante de Oliveira pelas eleições ‘diretas já’ para presidente; lá estávamos em praça pública, jovens estudantes desolados, cantando  “coração de estudante”, de Milton Nascimento, bandeiras às costas. Sérgio Manucci presente em vários desses momentos; geralmente saíamos da faculdade para algum barzinho e sempre que encontrávamos o Sérgio, bom cervejeiro que era, nos aproximávamos para boas conversas políticas.

      Num desses contextos, a amiga das rodas de conversas, vivências e movimento estudantil, Cleidinha, Cleide Rossi Chagas, escreveu e foi premiada em concurso literário local, com o cronopoema (crônica poética) em homenagem ao Sérgio, que será reeditado ao final, com a permissão da autora, que sente, como nós, a despedida desse exemplar educador e formador. No cronopoema, um pouco daquele momento de amor à cultura, a Minas, à literatura, a nossos anseios, ideais, sonhos e frustrações.

      Iniciei a carreira docente cedo, 1984, ainda sem concluir a licenciatura, contratado pelo Estado. Logo vieram as primeiras greves e o envolvimento sindical. Sérgio Manucci já estava na luta, como cofundador da UTE – União dos Trabalhadores da Educação, hoje SindUte, em sua base local. Mesmo como gestor não se omitiu nos momentos de luta.

         Em 1993 me efetivei na Escola Estadual David Campista e por quase três décadas, compartilhei com Sérgio a tarefa apaixonante e desafiadora da docência.  Seja como colega ou como membro da direção por anos que ele exerceu, não conheci ninguém que não reconhecesse a irreparável conduta ética,  competente, respeitosa, paciente e amiga de Sérgio Manucci.  Assim como, igualmente, querido entre seus alunos.

         Entre uma cerveja e outra, brincando com os copos na cantiga “escravos de Jó jogavam caxangá” ou no “jogo de palitinhos” (os mais veteranos entenderão), conversamos muito sobre filosofia, educação, política e sobre o filósofo matemático Malba Tahan, autor de “O homem que calculava “, que numa de suas reflexões nesse livro dizia que “o professor é um artista, que trabalha com a matéria-prima mais nobre do mundo: o ser humano.” E, como disse a amiga Cleidinha lá nos anos 80, em seu cronopoema que segue na íntegra, “não chore de amor na primavera”, no caso de sua despedida, neste frio inverno.

     Nunca fui tão íntimo assim de Sérgio Manucci, mas senti profundamente sua morte. Mas não é preciso ser íntimo para que se desperte em nós a sensibilidade e a fragilidade da existência. 

         Vá em paz, mestre! Certo de que seus ensinamentos marcaram milhares de vidas.

          Segue o “Cronopoema para Sérgio”, de Cleide Rossi Chagas:

Não chore de amor na primavera, posso não gostar. Roube, no jardim, uma flor para mim. Ficarei oculta numa janela para ver você passar. Se você cismar em me ver, fique atônito e vá para o bar.

Ah! Eu quero você sempre e tão sempre nesta festa cheia de seresta. Não chore de amor na primavera, sem era.

Perdoe-me por essa poesia, pura fantasia, de uma primavera, sem era nem esfera. Por eu viver num boteco sem eco. Por eu ser boêmia e mio por esse meu poema ser sem luar. Na primavera, não chore de amor, eu posso não gostar.

Sou menina de fita, eterna. Me abrace com seu terno de boêmio sem fim. Saia comigo, meu vestido de fita, minha vida é filosofar. De dia, sou como o carmin, não tenho quintais, tenho problemas por viver de poemas assim: azuis, tão azuis e até violetas-pretas-laranjas-lilases e xeretas.

Me abrace, me asse, nessa festa de nossos sertões tão veredas quanto nós.  Eu, tão rosa, você, tão guimarães, de tantos sertões, tão Gerais. Não  chore de amor – a primavera pode não gostar.

Me beije um beijo breve na testa, vivo de festa. Meu poema é tão sem querer, meu caminho já foi de renda; eu sou tão feliz, que canto para Elis… Não, não chore de amor na primavera, eu posso sofrer e não ter era, tenho prendas pra lhe dar e deixar na sarjeta o rosto do luar.

Não sou tão xereta como as violetas, tão pretas. Gosto de postar essas coisas gerais, tão iguais com você, meu amigo, que só me encontro nesses festivais de seus olhos tão azuis e ancestrais. Mas tome cuidado, já vem o dia raiando de anis sonhos, enfadonhos, para nascerem os poemas que chegam assim, sem eu sentir, que ser geral, não faz mal nenhum em mim.

Você, sertões Guimarães, eu rosa veredas sejamos felizes como as violetas-pretas-lilases-laranjas e tão xeretas quanto as borboletas. Não chore de amor na primavera, eu posso não viver e querer voltar para buscar o rosto do luar que deixei na sarjeta. Não, não chore de amor na sarjeta, senão não haverá mais serestas, e eu só vivo de festas e sem esta, o que vai ser de mim? Se de dia sou como o carmin, e a noite sou tão feliz quando lhe vejo passar e roubar uma flor para mim, só para mim… não… não chore na primavera.”

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Last Update: 22/06/2025