Sobre mudanças no setor elétrico

por Heitor Scalambrini Costa

Cada vez que se fala em liberalização, reestruturação, modernização, reforma do setor elétrico, o consumidor fica de “orelha em pé”. Sabe, pela experiência dos últimos anos, que coisa boa não virá para ele. As promessas e justificativas para as mudanças continuam as mesmas: atingir a modicidade tarifária, melhorar a eficiência na prestação dos serviços, realizar grandes investimentos em inovação tecnológica, etc, etc, etc. É o blá, blá, de sempre. E agora é a vez da democratização, resumida no poder de escolha do consumidor, em decidir de qual empresa comprará a energia elétrica. Não é a democratização exigida pela cidadania, com participação e controle social, além da imprescindível transparência, quando se trata de definir políticas públicas.

Desde a chamada reestruturação do setor elétrico no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), final do século passado, a energia passou a ser considerada uma simples mercadoria, seguindo a lógica neoliberal da época (aplicada também a outros setores da economia), e não mais um serviço essencial prestado pelo Estado. A partir de então o desarranjo no sistema elétrico teve início, refletindo no alto valor das tarifas, nas interrupções frequentes no fornecimento elétrico com os “apagões” (nacional) e “apaguinhos” (estadual). Outra constatação visível diante dos acontecimentos meteorológicos extremos (ventos fortes, chuva intensa, enxurradas, desmoronamentos de encostas, …) provocando quedas de energia, foi o atraso e mesmo o não atendimento das demandas de serviços básicos. O número de equipes qualificadas disponibilizadas para atendimentos foi reduzido drasticamente pelas distribuidoras ao longo dos anos.

No contexto pós privatização surgiram um emaranhado de órgãos públicos e privados, que fragmentaram a lógica do sistema elétrico brasileiro, até então baseado em uma operação colaborativa, cooperativa, cuja base era a geração hidrelétrica. Que ainda continua contribuindo com pouco mais de 50% na matriz elétrica nacional. 

A reforma pretendida pelo governo Lula3, como em governos anteriores, carece de democracia. Deixou de lado nesta discussão (e, em outras), o maior interessado, o povo consumidor brasileiro, que não tem os canais para intervir, participar e lutar em defesa de seus direitos e interesses. A falta de democracia no setor elétrico é (re)conhecida e denunciada há décadas, permitindo que grupos lobistas tenham papel decisivo nas escolhas do setor.

A proposta de reforma, enviada pelo Ministério de Minas e Energia (MME) para a Casa Civil, em 16/04 último, fala em “mudanças estruturantes”, propondo utilizar todas as fontes de energia existentes (renováveis e não renováveis). Tal posição é coerente com o que propaga o ministro falastrão, garoto propaganda de mais usinas nucleares no território brasileiro, defensor das pequenas usinas nucleares espalhadas na região Amazônica.

Apoiar a nucleoeletricidade inviabiliza a proposta da reforma que anuncia baratear a conta de luz. O custo da eletricidade nuclear atualmente pode chegar a 4 vezes maior que a energia gerada pelas fontes renováveis. E o ministro, para amenizar esta amência econômica, propõe ratear o sobre custo da energia nuclear com todos os consumidores cativos e livres, na tentativa de viabilizar, às custas do consumidor, esta insanidade que é a instalação de usinas nucleares no país.

E como militante ativo e fervoroso em defesa dos combustíveis fósseis, o ministro alardeia o uso do petróleo até a última gota, desconsiderando o que a ciência, os cientistas bradam, “os combustíveis fósseis são os principais responsáveis pela emissão dos gases de efeito estufa que provocam o aquecimento global, e suas consequências com eventos extremos climáticos, dramáticos para a população e meio   ambiente”. O ministro e sua trupe demonstra um claro desprezo pela ciência tornando assim um negacionista da ciência, um negacionista do clima.

Segundo declaração do próprio ministro Silveira, uma das medidas da reforma “será quebrar o monopólio das distribuidoras na venda de energia e democratizar a compra para todas as energias, e assim aumentar a competição entre as distribuidoras na venda da energia, democratizando a compra de energia elétrica, aumentando a competição entre os geradores de energia para poder promover um menor custo para a classe média brasileira”.

Assim os consumidores poderão escolher o seu fornecedor ou pela fonte de energia de sua preferência, ou pelo preço mais em conta ofertado. Para os consumidores residenciais, o mercado livre ocorrerá a partir de 10 de janeiro de 2028. Para os consumidores de médio porte, da indústria e do comércio, em 10 de janeiro de 2027. Os grandes consumidores, em alta tensão, desde janeiro de 2024, já escolhem de quem comprar energia elétrica. Alguns analistas chegam a prever uma redução média de 10% na tarifa do consumidor residencial que optar pelo mercado livre. A verificar.

A gratuidade e o desconto fazem parte da proposta de reforma, com a ampliação da tarifa social, atualmente atendendo 40 milhões de pessoas com descontos até 65%. Passaria então a atender 60 milhões de brasileiros que consomem até 80 kWh/mês, com total isenção. Mais do que justa esta medida.

O equívoco é que a gratuidade seja bancada com a revisão dos subsídios dados a energia eólica e solar, como defende o lobby das distribuidoras, o que levará modificar o Marco Legal da Geração Distribuída (Lei 14.300/2022). Pela proposta, nos novos contratos ou renovados, deixariam de contar com o desconto de 50% na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD). Portanto, na visão do ministro, os escolhidos para pagar esta conta serão os que acreditaram na autoprodução, acreditam nos sistemas de geração distribuída, aqueles que instalaram sistemas fotovoltaicos em suas residências, em pequenos comércios.

Tal medida é injusta em onerar o consumidor de sistemas distribuídos. E também um contrassenso, pois dificultará a difusão da energia solar e da energia eólica; essenciais no enfrentamento das mudanças climáticas, para a descarbonização das atividades humanas. Atualmente dos 90 milhões de consumidores cativos de energia elétrica no país, somente uma pequena parcela, em torno de 5%, utilizam sistemas fotovoltaicos para produzir sua própria energia.

Outras formas de compensação financeira devem ser encontradas para atender a abrangência da tarifa social, muito importante e necessária em um país tão desigual, e tão carente. Penalizar as fontes renováveis, baratas e abundantes em todo território nacional, é de uma burrice ímpar.

Os mesmos lobbys atuantes, como a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (ABRADEE) e seus associados, que tiveram lucros faraônicos ao longo da vigência dos contratos de concessão (muitos destes contratos começam a finalizar em 2026), procuram agora renovar com antecedência suas concessões por mais 30 anos. Já admitindo que as contas de energia aumentarão para o consumidor. Serão as mesmas empresas distribuidoras que trouxeram tantos transtornos, problemas, infortúnios, prejuízos que continuarão a atender suas vítimas/consumidores até 2055-2060.

Nunca é repetitivo lembrar que os “contratos de privatização”, assinados entre o poder concedente (governo federal) e as empresas privadas que assumiram as distribuidoras de energia estaduais, foram muito favoráveis às empresas. Cláusulas draconianas provocaram aumentos abusivos e extorsivos nas tarifas, além da precária e omissa prestação de serviços, sem que houvesse uma atuação mais efetiva em relação a fiscalização e punição pelos órgãos competentes. Além da ausência de um acompanhamento mais acurado e transparente sobre se realmente os investimentos bilionários anunciados e prometidos foram efetivamente realizados.

Com modificações pontuais, os novos contratos estão sendo renovados com as empresas concessionárias que desejarem. São essas mesmas empresas que procuraram a renovação de suas concessões, é que pressionam o executivo e o legislativo contra o que chamam de impacto financeiro que as migrações de consumidores ao mercado livrede energia poderão causar ao mercado cativo. Mentem, pois com a migração de consumidores, as distribuidoras continuaram sendo responsáveis pela distribuição da energia, mesmo que o consumidor compre a energia em outro lugar.  As distribuidoras querem sempre ganhar e fazer valer no país o capitalismo sem risco.

Neste contexto também as grandes geradoras com energias renováveis (parques eólicos, usinas solares e hidroelétricas) pressionam e judicializam ações para minimizar, segundo elas, os prejuízos causados pelos cortes de energias renováveis, que não puderam ser despachadas (o chamado “curtailment”) para o Sistema Interligado Nacional (SIN). As empresas pleiteiam ressarcimento pela inoperância e incompetência governamental, que realizou leilões e mais leilões de fontes renováveis sem que fossem adotadas previsões de sincronização entre a conclusão das obras de infraestrutura para o escoamento da energia elétrica gerada com o início de operação de usinas solares e eólicas, intermitentes na geração.

Situação análoga já tinha acontecido em 2010 com o “boom” de instalações de parques eólicos no Nordeste. Nesta época a estatal, Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), pertencente a holding Eletrobrás, é quem era a responsável pela rede de transmissão, e chegou a atrasar a entrega da infraestrutura adequada, impactando o escoamento da energia elétrica produzida pelos parques eólicos. Acabou gerando processos indenizatórios, judiciais e multas. A CHESF chegou a ser vetada em leilões de linha de transmissão.

Sabemos que a energia eólica e a solar não contribuem para a estabilidade da rede da mesma forma que algumas outras fontes de energia mais antiga. Todavia a intermitência é uma característica intrínseca destas fontes, cujas vantagens comparativas são fundamentais para a transição energética. O “curtailment” não é raro em outros países que têm inserção significativa de fontes intermitentes. Este efeito é amenizado com a modernização e ampliação das redes de transmissão, da revisão de procedimentos e protocolos operacionais tornando-os mais eficientes.  O uso de Sistemas de Armazenamento de Energia por Bateria, chamados de BESS (em inglês), surge como alternativa para equilibrar o sistema entre a oferta e a demanda de energia elétrica. Se espera que à medida que a rede evolui aceitando fontes intermitentes de energia, novos métodos para mantê-la confiável e estável serão desenvolvidos.

Lamentável é que com tanta diversidade de fontes energéticas, alternativas tecnológicas, disponibilidade abundante dos recursos renováveis, quando se fala em modernização do setor elétrico, consequências negativas recaem sobre o bolso do consumidor, que acaba pagando, via aumento na sua conta de energia. Basta verificar o que aconteceu desde a privatização, com as mudanças ocorridas, garantindo que as empresas mantivessem seu “equilíbrio econômico-financeiro”, às custas do sacrifício do consumidor.

Difícil é não desconfiar, acreditar que desta vez, o ministro do MME tenha razão, e o consumidor não pague o ônus da “reforma” do setor. Infelizmente prevalecerá o ciclo vicioso persistente na tomada de decisão do setor energético/elétrico que concentra as decisões, não leva em conta a participação social, e sofre a forte influência de setores empresariais através de suas associações, ABRADEE – Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica, ABRACE ENERGIA -Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres, ABDAN – Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Atividades Nucleares, entre outras.

No setor energético, estratégico para o país, o modelo de gestão autoritário, onde poucos decidem, é inaceitável pela sociedade que luta por mais participação, pela democratização na tomada de decisões em políticas públicas. No setor existem regulamentos com regras que não são cumpridas, não são fiscalizadas, e nada acontece com as empresas privadas transgressoras.   Não existe uma política energética com planejamento, com uma visão sistêmica que leve em conta os aspectos sociais e ambientais, interligados com as escolhas feitas no contexto da emergência climática, e do que afirma a ciência. Não existe energia limpa.

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Heitor Scalambrini Costa – Professor associado aposentado da Universidade Federal de Pernambuco, graduado em Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP), mestrado em Ciências e Tecnologias Nucleares na Universidade Federal de Pernambuco (DEN/UFPE) e doutorado em Energética, na Universidade de Marselha/Aix, associado ao Centro de Estudos de Cadarache/Comissariado de Energia Atômica (CEA)-França.

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Last Update: 22/05/2025