Sobre amantes e operários
por Marco Piva
Em discurso no Palácio do Planalto, na solenidade que marcou o segundo ano da tentativa de instauração de uma nova ditadura no Brasil em 8 de janeiro de 2023, o presidente Lula cometeu dois deslizes no discurso improvisado que fez. Por absoluta falta de conhecimento histórico da imprensa, a gafe comentada foi quando Lula disse que era um amante da democracia. “Muitas vezes o amante é mais apaixonado do que o marido”, afirmou, para reprovação imediata da primeira-dama Janja da Silva.
A frase retirou em parte o brilho do evento porque alguns jornalistas trocaram a importância de um ato histórico em defesa do país por um assunto menor como se um deslize fruto do improviso fosse um crime capital diante de uma tentativa de golpe de estado, felizmente fracassado.
Mas, a dita “grande imprensa” dos áureos tempos, hoje não passa de uma mídia nanica diante das novas tecnologias e da formação precária de profissionais. Por isso, quem cobriu o evento do Planalto sequer se deu conta de uma outra gafe do presidente, essa muito mais relevante quando falamos de história.
Em certo momento de auto exaltação pela sua trajetória de vida – meritória, diga-se de passagem – Lula lembrou das revoluções russa de 1917 e da cubana de 1959 salientando que nelas não houve a direção de operários, mas de intelectuais, estudantes e “gente de grau” (sic). Fossemos uma agência de checagem dos fatos, veríamos que isso não corresponde à verdade. Foram operários, camponeses e soldados que estiveram à frente do processo revolucionário russo. Em Cuba, os camponeses formaram a força vital para a derrubada da ditadura. Ousasse Lula ir um pouco mais além em seus exemplos, citaria Vietnã e Nicarágua para ver que a mobilização popular é quem faz a roda da história girar, coisa que soube fazer com maestria desde o seu surgimento como a principal liderança sindical do país nas décadas de 1970 e 1980.
No entanto, foi ao se referir ao PT, do qual se destaca como principal fundador, que Lula deslizou em seu conhecimento histórico. Afirmou o presidente que sua agremiação partidária foi a única do Brasil a ser formada por operários. Data venia, caro presidente, em março de 1922 foi criado o primeiro partido da classe trabalhadora brasileira. A direção do Partido Comunista Brasileiro (PCB) tinha alfaiate, barbeiro, ferroviário, artesão, gráfico, funcionário público e eletricista, um mosaico representativo da classe trabalhadora do início do século 20. A exceção, na escala de grau mal explicada por Lula, foi o jornalista Astrojildo Pereira, pai do famoso humorista Agildo Ribeiro, que se destacou com atuações memoráveis ao lado de Chico Anysio.
Conhecer história é fundamental para qualquer cidadão e, principalmente, para o dirigente de um país. É fundamental corrigir os erros do passado para que se possa apontar melhores perspectivas de futuro. O ato de 8 de janeiro foi simbólico nesse sentido, mas não merecia ser diminuído por conta de deslizes naturais de quem fala de improviso, característica importante de uma liderança carismática como Lula. Se reparo a imprensa tivesse que fazer seria sobre a própria história brasileira, o que talvez é exigir demais. Felizmente, ainda estamos aqui, como disse o presidente.
Marco Piva é jornalista, diretor de redação dos canais de YouTube China Global News e O Planeta Azul.
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