A propósito de O senhor dos anéis (2)
por Helena Costa
No cinema, O senhor dos anéis se vale dos caminhos de Harry Potter, que renderia oito filmes. Este, sim, é um fenômeno totalmente criado por um espertíssimo marketing, apelando para um setor bastante desprotegido que é o das crianças. Mas os livros são razoavelmente bons, Deus seja louvado, piorando à medida que se multiplicam, e os filmes também. Em cima disso montou-se o circo.
A proeza de marketing elevou J. K. Rowling à posição de mulher mais rica da Inglaterra, nisso desbancando a própria rainha Elizabeth, que passou para o segundo lugar. Restou à rainha o consolo de ser pessoalmente a dona de todos os cisnes do país – um dos mais belos títulos do mundo. Ficamos pensando, com infinita pena, no marido da escritora, que a abandonou com um bebê recém-nascido. No inverno de Edimburgo, ela era obrigada a escrever nos bares, pois não podia pagar calefação – versão depois refutada por ela mesma. O ex-marido deve penitenciar-se, arrependido por ter tratado tão mal aquela que viria a ser uma galinha de ovos de ouro (com perdão pelo símile machista…)
Já O senhor dos anéis é uma realização menos feliz. O pobre Tolkien debateu-se com ele durante 17 anos e mesmo assim não conseguiu conclui-lo a contento. O entrecho proliferava para todos os lados, e as coisas deram para multiplicar-se como coelhos. Um livro virou três. O anel virou nove anéis, a espada mágica virou três espadas, o maligno Sauron virou nove Cavaleiros Negros, e assim por diante. A tal ponto que Tolkien perdeu totalmente o controle daquele mundo e morreu sem achar um fecho ou encerramento satisfatório. Mas, pior que tudo, o senso de humor (britânico?) que comandava a concepção de O hobbit desapareceu, e em vão o procuramos nas páginas da trilogia.
Tudo repousa sobre a utopia nada original de um universo pré-urbano, localizado num passado remoto, prévio a toda tecnologia mas em compensação anterior ao desencantamento do mundo
O primeiro filme de O senhor dos anéis tampouco conseguiu dar o salto de que os próprios livros ficaram aquém. É visualmente suntuoso e oferece uma sucessão de efeitos especiais de sarapantar. Entretanto, dá a impressão de se alongar em demasia e de não ter entrecho, mas apenas uma série de batalhas com multidões de entes horrendos, provenientes de filmes de terror e de ficção científica. A leveza e a graça que se encontram em O hobbit, como também nos livros e filmes de Harry Potter, pelo menos nos primeiros, passam longe. Em todo caso, o sucesso de bilheteria não deixa nada a desejar, a orquestração é planetária e garantiu o êxito da seqüência em dois outros filmes.
Não esquecer que, no ínterim, houve o fenômeno cinematográfico que foi Guerra nas estrelas, com todas as suas numerosas continuações: ou nove ou onze, conforme a fonte. Juntos, O senhor dos anéis, Harry Potter e Guerra nas estrelas deram um empurrão poderoso no rumo da infantilização do cinema, com a boa ajuda do Spielberg de Tubarão, E.T. O extraterrestre e Jurassic Park. Sem falar em Indiana Jones, ressurreição do seriado outrora destinado à garotada nas matinês de sábado, que fez o favor de reativar todo o preconceito racista e colonialista do cinema do passado. São esteticamente aparentados e o cinema só há pouco deu mostras de reagir contra o empurrão, fazendo filmes mais complexos. Mas a tendência sobrevive – é só ver o sucesso de Game of thrones, que também dá filhotes. Não deixa de ser curiosa a participação marcante da Inglaterra, que prima pela excelência em dois setores da literatura, em que é imbatível: a infanto-juvenil e a policial,
Há alguns anos, Guerra nas estrelas ganhou remasterização das películas e relançamento festivo. Alec Guinness, o querido Obi-wan Kenobi da série, renegava sua participação. Reconhecia que a série o calçara economicamente, já que recebia porcentagem e não salário, e foi a primeira vez na vida que ganhou dinheiro. Calejado ator shakespeareano, dizia que jamais recitara falas tão indigentes. E se recusou a comparecer à festa de relançamento. Conforme conta em suas memórias, implorou a George Lucas, por não agüentar mais as continuações, que matasse a personagem, no que foi atendido.
Helena Costa é Professora Emérita da FFLCH-USP