A propósito de O senhor dos anéis (1)
por Helena Costa
O percurso de O senhor dos anéis revela ao menos duas fases de lançamento: uma primeira em livros e uma segunda em filmes.
Comparando ambas, vê-se como a indústria cultural se expandiu e sofisticou seus instrumentos, no intervalo de duas décadas. A primeira onda, a dos livros na Inglaterra dos anos 50, criou seus adeptos e fez dele um fenômeno cult. Mas não extravasou os limites do conjunto de seus leitores. Aqui no Brasil, isso se deu por ocasião da tradução, aliás péssima, feita no início dos anos 70..
Mas foi um sucesso: alastrou-se, as pessoas compravam, emprestavam umas às outras, mas de certa maneira sempre era coisa de iniciados. Muitos guardaram as edições, outros as jogaram fora ou venderam para sebos, onde podem ser encontradas.
Começa aí também a confecção de biografias de J.R.R.Tolkien, das quais a primeira é a mais autorizada, porque feita em vida do escritor e praticamente sob seus olhos. Os fãs a leram com sofreguidão, apreciando o que revelava sobre seus métodos de trabalho, seus embates com a universidade que negligenciava em troca de tempo para escrever, sua invenção de alfabetos e idiomas neologísticos, como o élfico ou língua dos elfos, e assim por diante.
Não menos de apreciar eram suas excentricidades, que faziam dele o estereótipo do don de Oxford, um intelectual distraído estudando coisas de arcanos como línguas mortas, que nem sequer tinham o lustro do latim e do grego. Em seu caso, era especialista em anglo-saxão, a que também se dedicava Jorge Luis Borges. A destacar ainda a amizade com C.S.Lewis e seu grupo de convívio, os Inklings, já objeto de exposições em Oxford. Há ainda um filme de ficção, Terra de sombras, centralizado em C.S,Lewis, que fala do grupo e de seu estilo de vida: quase todos solteirões, paletós de tweed, cachimbos, cervejas no pub em dia fixo.
A segunda onda, a do cinema, traz outras características. Embora antes só houvesse um desenho animado, esta é capitaneada pelos filmes de grande produção, dinheiro a rodo, muita fanfarra de marketing, anúncios em outdoors e revistas, trailers nos cinemas, entrevistas com atores e diretores a todo momento veiculadas pela televisão, e mais o merchandising que decorre de tais campanhas – canecas, camisetas, bonecos, clubes de internet, máscaras, roupas etc.etc.etc. É a essa onda audiovisual que se ligam as reedições dos livros, provocadas pelo lançamento dos filmes, tanto no original quanto na mesma e péssima tradução.
Entre uma e outra onda, multiplicam-se as biografias e, vasculhando o baú de manuscritos do pai, haurindo no manancial dos direitos autorais, o filho passou a publicar muita coisa inacabada ou inferior, que o pai mesmo, cioso da qualidade, preferira manter sob reticências.
Os méritos de Tolkien são muitos. Seu primeiro livro, O hobbit, escrito em 1937, é uma joia. O papel-título cabe a esse ser criado pelo autor, uma envolvente criatura que vive em buracos no chão, é baixinho mas não se confunde com um anão, é pacífico e até covarde, tem medo de aventurar-se para fora de sua toca, só pensa em comer e tem pés peludos. Arrastado, maugrado seu, para a busca a um tesouro roubado e guardado por um dragão, acaba liderando relutante a expedição e se tornando um heroi. Mas o tempo todo seu único anseio é voltar para casa e tomar um bom café da manhã.
Personagens como anões, elfos, orcs, dragões, trasgos povoam o livro – que, principal traço, também é cheio de senso de humor. Há um narrador que, embora aderido ao ponto de vista do protagonista Bilbo, comenta causticamente suas ações e tergiversações, mas também as das outras personagens. A narrativa ganha com o contraste entre as duas atitudes de Bilbo: de um lado o poltrão com aversão a tudo o que não seja a domesticidade, e de outro lado o prazer da aventura e do desconhecido, em que sua liderança e bravura são reconhecidas. Além de sua fome constante, incompatível com heroísmo. Tudo isso fazendo do livro, juntamente com o protagonista, alvo de afeto. No cinema, esse único livro renderia três filmes, esgarçando e diluindo o tecido da narrativa.
Helena Costa é Professora Emérita da FFLCH-USP