Sobre a “adultização das crianças” e a possível obsolescência da pedagogia do Pinóquio

por Marcos Veríssimo,  Talitha Rocha e Yuri Motta

No Brasil contemporâneo, no qual os escândalos passaram a fazer parte das rotinas das pessoas, sendo consumidos, acompanhados de narrativas moralizantes para todos os gostos, é normal que os acontecimentos mais escandalosos percam seu brilho rapidamente no turbilhão incessante de compartilhamentos e hashtags, antes mesmo que possam ser socialmente digeridos em suas consequências. Os debates políticos (incluindo aqueles travados nas casas parlamentares), não raro, descambam para a vulgaridade e o terraplanismo, dando a impressão em quem os acompanha de que o maior compromisso dos atores (sendo estes mandatários ou não), é com a divergência infinita e a espetacularização do debate público. No Judiciário, conforme há anos nos mostram os etnógrafos dos ritos forenses e cartorários, a divergência infinita, mais que a produção de consensos, faz parte da própria estrutura de pensamento e ação.

Justamente por conta disso, nos parece notável que, no caso do recente escândalo que deu origem ao debate na esfera pública sobre a “adultização das crianças”, consequência da denúncia encaminhada à sociedade por meio de um vídeo postado na internet pelo influenciador digital chamado Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, algo diverso tenha ocorrido. O conteúdo do vídeo-denúncia, que basicamente consiste na reunião de vídeos antes tornados públicos em plataformas bastante populares como Instagram e Youtube, somados a discursos performáticos do influenciador e de uma entrevista com psicóloga, provocou profundo mal-estar e um sincero repúdio nas sociedades.

Temos ali desde adolescentes sendo entrevistados como exemplo de empreendedores de sucesso, exalando arrogância e ostentando semblante blasé, afirmando que frequentar a escola os impedem de ganhar dinheiro, até filmagens de festas promovidas por adultos envolvendo a sexualização precoce de crianças e adolescentes, alguns emancipados por seus responsáveis, alimentando assim um lucrativo mercado de pornografia infantil nas redes sociais.

No vídeo, Felca afirma que além daquela veiculação difusa, se colocava à disposição das autoridades competentes para contribuir com a apuração dos crimes perpetrados. Muito rapidamente a polícia prendeu pessoas que aparecem denunciadas. Mas não só. Em duas semanas, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei 2628, que estava engavetado desde o ano passado, e que em suma obriga as plataformas digitais a efetivamente investirem esforços no controle do acesso de crianças a conteúdos inadequados. Logo foi apelidado como Eca Digital, em uma referência ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990.

Às vésperas da publicação desse artigo, a Justiça do Trabalho proibiu que Facebook e Instagram permitam o trabalho de crianças e adolescentes como influenciadores digitais sem autorização judicial, sob pena de multa diária de 50 mil reais por caso identificado. O aparente consenso em torno da indignação com a exploração monetária da exposição sexualizada de crianças e adolescentes exigiu dos adultos uma resposta à altura e envolveu os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, bem como a chamada “sociedade civil”.

Adultização das crianças

Como antropólogos, devemos estar tão cientes de que a infância é uma construção social relativamente recente no mundo ocidental, quanto do fato, igualmente verdadeiro, de que o cuidado responsável é uma obrigação social das gerações mais ou menos estabelecidas em relação às gerações mais novas foi e é um traço civilizatório que tende a ser onipresente no amplo e diverso rol de sociedades e culturas ao redor do mundo. Ser adulto ou criança, no mundo contemporâneo, é mais que tudo desempenhar um papel aprendido socialmente, contestando, reformando ou reafirmando consensos, valores e moralidades a cada geração que se sucede. Disso decorre que, se estamos a falar de processos de “adultização das crianças”, em algum momento teremos de nos deparar analiticamente com a sua contraparte, a saber, a infantilização dos adultos.

Não pense o leitor que estamos afirmando isso com base em fenômenos e modismos recentes, como os bebês reborn, ou a “chupeta de adulto”, uma onda que começou na China e na Coréia do Sul, que consiste em adultos que usam chupeta para reduzir o estresse, a ansiedade e para auxiliar a parar de fumar. Pensamos que um sintoma mais profundamente sociológico da infantilização dos adultos reside na relação das diferentes gerações com as tecnologias de última geração. Afinal, num mundo a cada dia sendo mais visto como um mundo digital, são as pessoas mais velhas (muitas vezes não propriamente classificáveis como “idosas”) que mais facilmente se assumem como excluídas digitais. Por outro lado, toda uma geração de pessoas que estão prestes a entrar na vida adulta nessa quadra da história já nasceram em um mundo onde conectividade internética, computadores e celulares eram praticamente uma segunda natureza.

Não é que os aplicativos sejam, como se diz, de uso “intuitivo” para as pessoas, em abstrato, e sim que a intuitividade dos mais jovens, das crianças e dos adolescentes, já foi moldada pela mesma lógica da criação dos mais recentes aplicativos, enquanto a intuitividade dos mais velhos é, por assim dizer, orientada mais analogicamente. Por isso as tecnologias não são igualmente intuitivas para todas, todos e todes, e pelo mesmo motivo é tão comum ver os adultos sendo ensinados a usar os aparelhos celulares mais modernos pelas crianças de suas famílias. Alguns entre estes ensinam mais didaticamente, mas há aqueles que se comportam como mestres cínicos ou autoritários. Porém, nada disso ainda faria, necessariamente, surgir o problema social da “adultização das crianças”.

Diversas obras etnográficas demonstram que a infância, a adolescência e a vida adulta são relativas a seus contextos. O mundo contemporâneo já não é mais imaginável sem seu universo virtual. Os ritos de passagem entre essas fases não são mais os mesmos. E por aí, a forma como as pessoas se relacionam, se comunicam, se enxergam se transformou. E se transformou também a forma como as pessoas querem ser vistas, porém, muitas vezes sem terem noção dos riscos contidos na publicização de suas imagens e rotinas. Pensando assim, a forma como se constroem as identidades também mudou.

Os casos de adultização, pedofilia e abuso de crianças e adolescentes na internet não são pautas novas, mas o vídeo-denúncia conseguiu trazer à tona ao debate público essas questões de tal forma que se tornou novamente uma problemática obrigatória. Afinal, ser adulto ou ser criança em um mundo digital é uma construção identitária que nos parece interessante tentar compreender. De nossa posição de pesquisadores vinculados ao Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC) com experiência na docência no Ensino Básico, em escolas públicas, e investimento em pesquisa acadêmica de caráter etnográfico acerca dos conflitos escolares e suas consequências, pretendemos entrar no debate da “adultização das crianças”/infantilização dos adultos na companhia de um personagem clássico da literatura ocidental: o boneco Pinóquio.

A pedagogia do Pinóquio

O folhetim “As Aventuras de Pinóquio”, criação do italiano Carlo Collodi e originalmente publicado em um jornal daquele país entre os anos de 1881 e 1883, ganhou o mundo como livro no século seguinte até se transformar, em 1940, em um filme de animação produzido pelos estúdios Disney e muito bem-sucedido ao redor do mundo. Como consequência, este interessantíssimo personagem – um boneco de madeira que ganhou vida por encanto, obra e graça da Fada Madrinha, em atendimento ao desejo de seu criador, um velho marceneiro chamado Gepeto – não apenas passou a ser conhecido por gerações de crianças e adultos, como também contribuiu para difundir uma certa moralidade. Melhor dizendo, uma pedagogia. A pedagogia do Pinóquio.

Pinóquio desejava mais que tudo ser um “menino de verdade”. Ouviu da Fada Madrinha que seu desejo seria realizado apenas se ele provasse ser uma pessoa boa, ética, corajosa e cumpridora de seus deveres. Dito de outra maneira, seria abençoado com o milagre de se tornar um “menino de verdade” se, e somente se, provasse a capacidade de se comportar como um “bom menino”, cumpridor de uma série de obrigações. No dia seguinte, logo cedo, Gepeto o mandou para a escola. Porém, segundo a narrativa da Disney, Pinóquio jamais teria chegado lá naquele dia. No caminho, encontrou uma raposa e um gato que estavam ali para representar adultos mal-intencionados que o seduziram com a promessa de torná-lo famoso no teatro. Acabou sendo preso em uma gaiola pelo dono de um circo que o explorava (ou, em termos atuais, o monetizava) por conta de sua condição sui generis de boneco de madeira que andava, falava, cantava e dançava.

Liberto por intervenção da Fada Madrinha e de seu amigo Grilo Falante (que na fábula representa sua consciência), volta para casa e encontra Gepeto desolado, para quem jura jamais se desviar dos caminhos dos “bons meninos”. Mas a promessa dura pouco, uma vez que novamente deixou de ouvir os conselhos de sua consciência e se juntou a meninos dificilmente enquadráveis como “bons”, e em alguma medida semelhantes aos meninos empreendedores arrogantes e aos adolescentes fervorosamente hedonísticos do vídeo do Felca. Foram levados por adultos exploradores para um bar, onde bebiam, fumavam, jogavam, até que em uma fantástica metamorfose como aquelas que só existem nas fábulas, nos mitos e no cinema, desaprendiam a falar e tomavam a forma de burros. Em seguida, eram vendidos como animais de carga. Se pensarmos na época em que o romance foi escrito, a tração animal ainda era muito utilizada nas cidades europeias e em outras partes do mundo.

Entre transformações sociais, tecnológicas e existenciais

Pinóquio consegue escapar novamente, graças à bondade da Fada Madrinha, e depois empreende uma gesta que o reabilita, mas não caberia contar aqui toda sua história. Cabe sim, propor uma reflexão em torno da pedagogia composta nesta narrativa. Para deixar de ser visto como um boneco, Pinóquio deseja mais que tudo se tornar um “menino de verdade”, e para isso, precisa se enquadrar no papel de um “bom menino”. Obedecer, ouvir sua consciência e ir à escola são elementos que aparecem na história como marcadores desta meta. Talvez gerações de meninos e meninas, e pessoas que aderem a outras identidades que não essas, isso não importa, tenham criado enorme empatia com aquela estranha criatura de madeira com formato de uma pessoa, e com isso aprendido, em diferentes graus, e passado para seus filhos, uma pedagogia. Uma pedagogia para pessoas de carne e osso navegarem socialmente com relativo sucesso, fluindo da infância para a vida adulta, e que em sociedades de feitio desigual como a brasileira se configura mais fácil ou “natural” para uns do que para outros.

Porém, trabalhamos aqui com a hipótese de que talvez estejamos, nos tempos atuais, diante dos sinais de falência e obsolescência desta pedagogia relativamente difundida e bem-sucedida por um tempo relativamente longo no contexto das sociedades ocidentais. As transformações sociais, tecnológicas e existenciais das últimas décadas foram muito intensas. Além do mundo “de verdade”, temos hoje uma esfera virtual paralela que faz o teatro e o circo que seduziu Pinóquio parecerem pálidos fósseis para muitos. E o vídeo-denúncia publicado por Felca mostra que os meninos, meninas e menines nos dias atuais almejam ser, não apenas “meninos de verdade” (o que soaria talvez irônico para o menino Pinóquio), e sim avatares de sucesso na esfera virtual. Pessoas que não aceitam esperar a idade adulta para ter acesso a grandes somas de dinheiro. Pessoas que dizem que o que se tem de mais proveitoso para se fazer na escola é dormir.

Para estes, talvez a pedagogia do Pinóquio soe demasiadamente obsoleta. E quando olham ao redor, não raro, encontram adultos assoberbados, desorientados, quando não infantilizados por processos sociais e tecnológicos bastante complexos. Para estes novos tempos, pensamos que novas pedagogias e tecnologias sociais terão que ser inventadas para dar conta do mal-estar – do repúdio, do asco, do desconforto – sintetizado na ideia de “adultização das crianças”.

Marcos Veríssimo é doutor em Antropologia (PPGA-UFF), Pesquisador vinculado ao INCT-InEAC, LEPIC, PsicoCult, Professor de Sociologia (SEEDUC/RJ).

Talitha Rocha é doutora em Antropologia (PPGA-UFF), Pesquisadora de Pós Doutorado Nota 10 (FAPERJ/PPGA), Pesquisador vinculado ao INCT-InEAC, Professora de Sociologia (SEEDUC/RJ)

Yuri Motta é doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (PPGSD/UFF), Pesquisador de Pós-Doutorado (PPGJS/UFF). Pesquisador associado ao PsicoCult e ao LEPIC.

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Last Update: 03/09/2025