Nesta terça-feira (29), Emir Sader publicou no Brasil 247 um artigo intitulado Soberania e democracia são inseparáveis. Segundo o qual, “em resposta ao ataque do governo norte-americano, Lula resgatou uma categoria que repousava no esquecimento ou mesmo no museu: a categoria de soberania”.
O texto de Sader, no fundo, tenta fazer por outra abordagem o falso embate entre democracia e fascismo, muito em moda no último período.
Apesar de toda a gritaria na esquerda, e com a devida crítica à tentativa de ingerência de Donald Trump na política brasileira, o que se vê é muito mais uma guerra tarifária. O próprio governo poderia aplicar tarifas à exportação, por exemplo, da carne e do café. Somos disparados o maior produtor de café do mundo; e o segundo colocado em carne bovina – praticamente empatados com os EUA. Ainda assim, o povo mal consegue consumir esses produtos, com os preços sempre nas alturas.
Sader escreve que “um país soberano é o que preserva seus interesses próprios. No Brasil, o governo de João Goulart era um governo nacionalista, que colocava em prática o que se denominava de reformas de base. Reforma agrária, limitação da remessa de lucros das empresas estrangeiras, entre outras”. Mas as tais reformas de base nunca saíram do papel.
O próprio João Goulart era de uma família rica de grandes proprietários de terra no Rio Grande Sul destinadas principalmente à pecuária. Seu pai era um latifundiário e ele mesmo administrou e expandiu as fazendas da família.
Goulart pretendia uma reforma agrária muito tímida e negociada. Defendia a desapropriação das terras improdutivas, indenizada, e não de todas as grandes propriedades. Mesmo após sua deposição com o golpe militar de 1964, Jango continuou expandindo seus negócios adquirindo terras no Uruguai e na Argentina.
Qual democracia?
Segundo Emir Sader, “o golpe militar de 1964 liquidou, ao mesmo tempo, a democracia no Brasil e a política de soberania nacional. A ditadura militarizou o Estado brasileiro, terminando com a democracia, que havia sido conquistada duas décadas antes. E, simultaneamente, promoveu uma política de subordinação aos interesses externos, a ponto que o primeiro-ministro de Relações Exteriores da ditadura militar afirmou, nada mais, nada menos, que ‘O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil’”.
Qual democracia o Brasil havia conquistado duas décadas antes? Em 1944, Vargas governa o País com o Congresso fechado, partidos políticos proibidos e seu governo era fortemente apoiado nas Forças Armadas.
No período de 1951 a 1954 –é provavelmente a isso que Sader se refere–, sim, Vargas chegou ao poder pelo voto popular e conheceu sua fase nacionalista. Criou a Petrobrás (1953) e fortaleceu a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) criada ainda no Estado Novo (1941).
É preciso muito esforço para se dizer que a democracia teria sido conquistada em 1951 no Brasil. Além de o voto não ser universal, pois analfabetos não votavam e as mulheres mal participaram, e houve um assédio brutal do imperialismo, que culminou com o suicídio de Vargas em agosto de 1954.
Militares paus-mandados
É verdade que no Brasil o golpe militar foi obra da “maior democracia” do mundo, os Estados Unidos. Este país esteve presente em todas as guerras pós-Segunda Guerra Mundial, e também no apoio de todas as ditaduras implementadas mundialmente. O que demonstra que democracia é apenas uma palavra vazia, pois o mundo era governado com mão de ferro pelo imperialismo. A cara do governo de cada país era pintada conforme a necessidade, mais ou menos democrático, a depender da resistência popular.
Volta da democracia?
Sader diz que com o golpe militar de 1964 “desapareciam a democracia e a soberania”, é possível concordar em parte, pois não chegamos a viver uma democracia. Em seguida, o autor completa o parágrafo dizendo que “quando foi restabelecida a democracia, mais de duas décadas depois, o país seguiu sendo o mais desigual do continente mais desigual do mundo”. E isso também é parcialmente verdade.
No Brasil, a ditadura militar estava caindo de podre, o ascenso da classe trabalhadora levou ao movimento Diretas, já!, que foi devidamente capturado pela burguesia, apesar de milhões de pessoas terem saído às ruas. Além disso, o movimento tomou um golpe: a eleição presidencial foi parar nas mãos de um colégio eleitoral que elegeu elementos da total confiança do imperialismo e da ditadura: Tancredo Neves e José Sarney (vice).
A eleição de Collor e os governos subsequentes de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso foram marcados por autoritarismo, subserviência ao imperialismo, além da implementação do neoliberalismo na era FHC, que dizimou a indústria nacional.
Governos do PT
Emir Sader faz a seguinte pergunta referindo-se ao período da ditadura: “como se poderia caracterizar o governo como democrático, se tão desigual? Como poderiam conviver a igualdade diante da lei e a desigualdade profunda na realidade concreta?”. Portanto, se Sader defende que democracia e soberania são inseparáveis, terá que admitir que nunca tivemos nenhuma das duas.
Em seguida, Sader completa seu raciocínio afirmando que “a eleição, pela primeira vez, de um líder sindical, nordestino, de um partido de esquerda, à presidência da República, só aprofunda as contradições que caracterizam a história brasileira”. E aqui é preciso dizer que, apesar de alguns avanços, principalmente durante o boom das commodities, o golpe de 2016 varreu do mapa rapidamente o pouco que se conquistou.
As mudanças, finalmente, não foram profundas, uma vez que o movimento sindical ficou muito atrelado ao governo, pouco se mexeu com medo de criar turbulências; e, ainda, o PT foi se afastando rapidamente das bases trabalhadoras. O primeiro vice-presidente de Lula, José de Alencar Gomes da Silva, era um empresário do setor têxtil. Marcava-se assim uma política de conciliação sob a desculpa do aumento da base de apoio.
Governo sem base
Lula contestou a ingerência de Trump na política brasileira e isso bastou para se criar um verdadeiro alvoroço em quase toda esquerda brasileira. Mesmo a esquerda identitária, que a mando do imperialismo não quer que o Brasil explore soberanamente seu petróleo, gritou “somos soberanos” a plenos pulmões.
Para Emir Sader, “quando Lula retoma a categoria de soberania, reafirma a decisão do seu governo de ter uma política externa independente, soberana. Porém, ao mesmo tempo, apesar das políticas antineoliberais dos governos do PT, o capital financeiro, de caráter especulativo, segue sendo hegemônico no plano econômico.”.
O que o articulista se esquece, ou deveria enfatizar, é que “retomar” uma categoria não é o mesmo que conquistar. A política de conciliação do petista, e sua insistência em não buscar a base popular, tornou o governo extremamente limitado pelo Congresso e, ao mesmo tempo, refém do Supremo Tribunal Federal (STF).
Na política externa, como temos visto, a soberania também anda abalada, pois Lula vetou a entrada da Venezuela no BRICS que, por sua vez, teve sua mais recente cúpula, realizada aqui no Brasil, a mais esvaziada politicamente, com a ausência dos presidentes da Rússia e da China.
O embate entre Lula e Trump não vai servir para alimentar a tal “democracia x fascismo”, mesmo porque o presidente americano já ampliou prazos e isentou uma série de produtos de seu tarifaço.
Emir Sader apela para que “o governo tenha não apenas a soberania, mas a democracia, sua irmã gêmea, como seus eixos fundamentais”. O problema é que isso só pode ser conquistado com a força da classe trabalhadora, até agora deixada em segundo plano.