Por Frei Betto
Nas sociedades pré-industriais os alimentos tinham mais valor de uso que de troca. Mesmo os servos dos feudos medievais dispunham de um pedaço de terra para cultivar ao menos o necessário às suas famílias. Hoje, alimento com valor de uso só existe nas etnias indígenas tribalizadas na selva. Fora disso, têm apenas valor de troca: quem pode comprar, se alimenta; quem não pode, fica condenado à fome. É a lógica do capitalismo, no qual os privilégios do capital estão acima dos direitos humanos.
Em raros países, como Cuba, a alimentação é um direito do cidadão e um dever do Estado. A toda família cubana é garantida, mensalmente, uma cesta básica. Outros países, como o Brasil, adotam políticas sociais para assegurar que ninguém passe fome.
O Bolsa Família assegura uma renda básica para mais de 21 milhões de famílias em todos os 5.570 municípios do país. O programa beneficia 54,37 milhões de pessoas, das quais 25 milhões são crianças e adolescentes de zero a 18 anos incompletos.
O mundo produz comida suficiente para alimentar 12 bilhões de bocas. E somos, atualmente, 8,2 bilhões de habitantes. Portanto, não há falta de alimentos. Há falta de justiça, de partilha.
Hoje, 733 milhões de pessoas ao redor do globo não têm acesso a calorias e nutrientes suficientes, e 2,8 bilhões, que não podem pagar por uma dieta saudável, sobrevivem em insegurança alimentar.
Na reunião do G20 no Rio, em novembro último, Lula lançou o Pacto Global contra a Fome e a Pobreza. O tema sempre lhe foi sensível, pois Lula não veio da pobreza, veio da miséria. Dos 12 filhos de sua mãe, dona Lindu, 4 morreram de fome.
O Pacto visa a acionar mecanismos de cooperação entre países, projetos, instituições financeiras e fundos econômicos para desenvolver ações que minorem essa grave violação ao direito humano fundamental – o acesso à alimentação.
Além de transformar o alimento em uma mercadoria com valor de troca, o capitalismo criou mecanismos para controlar toda a cadeia produtiva alimentar como fator de lucros acumulados em mãos privadas. As três maiores gestoras de investimentos do mundo são BlackRock, Vanguard e State Street. Três empresas estadunidenses.
Em 2022, as três possuíam US$ 19,7 trilhões em ativos – equivalente a 10,5 PIBs do Brasil. Elas controlam as ações de 21 das 31 corporações que comandam o comércio de alimentos no mundo, entre as quais Coca-Cola, Pepsico, Tyson Foods (carnes) e Bunge (grãos).
A BlackRock detém mais de 5% das ações da Nestlé. As fatias podem parecer pequenas, mas suficientes para exercer pressão. As ações dão direito a voto, o que abre espaço para incidir sobre as diretrizes de uma corporação.
Essas corporações controlam todo o sistema alimentar globalizado: agrotóxicos, sementes, fertilizantes, máquinas agrícolas, farmacêutica animal, processadoras de grãos (tradings), indústria da carne, fabricantes de ultraprocessados e supermercados.
Como enfatiza o cientista político italiano Ricardo Petrella, líder do movimento Slow Food, a BlackRock quer o mundo a seus pés: “Reconfigurar [o mundo] à luz do gigantismo significa principalmente fortalecer a concentração de poder que os últimos 50 anos confirmaram ser perversa. A concentração, especialmente a financeira, ocorre de acordo com os princípios, objetivos e interesses dos sujeitos financeiros e tecnocráticos mais ricos. Os direitos fundamentais à vida e ao bem-estar dos povos da África, América Latina e Ásia são cada vez mais ignorados.”
Segundo dados do relatório financeiro da empresa em 2022, o mercado total de ações e títulos no mundo é estimado em US$ 130 trilhões. Para efeito de comparação, as dez maiores economias do planeta somavam US$ 67,2 trilhões em 2023, ou seja, a metade disso.
Hoje, o capital financeiro em circulação no mundo é muito maior que o chamado “capital produtivo”, dedicado a atividades de comércio, serviços e indústria. Dessa maneira, é fundamental entender a influência das maiores gestoras de investimentos sobre as empresas integradas aos processos produtivos.
Para manter-se poderosa no mercado financeiro, uma corporação precisa sempre entregar melhores resultados. Isso leva a uma pressão por redução de custos, o que significa violações laborais, redução de salários e demissões. E também fraudar o pagamento de impostos, seja legal (elisão) ou ilegalmente (evasão).
Bem como pressão sobre governos e parlamentos para que reduzam impostos, cortem direitos dos trabalhadores e promovam ajustes fiscais que afetam prioritariamente as políticas sociais.
O sistema alimentar controlado por corporações é, hoje, responsável por muitos problemas de escala global. Uma das principais preocupações é a ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, câncer e hipertensão, provocadas pelos ultraprocessados.
A pressão pela redução de custos de produção leva à substituição de ingredientes integrais, como farinhas, gorduras, leite e ovos, por fragmentos e derivados, como soro de leite, isolados proteicos e gorduras hidrogenadas. Somados a aditivos, esses fragmentos resultam em produtos que têm composição nutricional pior e cujos efeitos à saúde física e mental no longo prazo ainda não são totalmente conhecidos. Porém, o que se sabe é suficiente para afirmar que os ultraprocessados são um fator associado a doenças e morte precoce.
Investimentos das maiores gestoras do mundo podem dar ainda mais impulso a que essas corporações tenham posições oligopólicas, excluindo concorrentes menores, e provocando milhares de falências ao longo das últimas décadas. Quem passou dos 50 anos de idade deve se perguntar: onde estão as quitandas, os mercadinhos e os armazéns de nossa infância?
Além disso, as corporações reduzem cada vez mais os preços dos ultraprocessados. No Brasil, 2022 marcou o momento histórico no qual eles se tornaram, na média, mais baratos que alimentos in natura e minimamente processados.
Muitas empresas do sistema alimentar globalizado estão associadas direta ou indiretamente ao colapso climático que afeta o futuro da humanidade e de milhares de espécies animais e vegetais. As emissões de gases de efeito estufa e a pecuária estão entre as maiores causas de aquecimento global. Monoculturas de grãos (soja, milho etc.) e criação de gado são duas das principais explicações para o desmatamento e a grilagem de terras. No Brasil, em 2022, a quase totalidade da derrubada de matas e florestas esteve relacionada a essas duas atividades.
Diante disso, o que fazer? Valorizar a agroecologia e a agricultura familiar; comprar nos Armazéns do Campo, caso o seu município tenha um; promover compras comunitárias; organizar hortas coletivas; pressionar políticos e empresas que favorecem o comércio de ultraprocessados. É o mínimo.
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