Sistemas genitais, gametas e a santa camisinha.
por Felipe A. P. L. Costa [*].
APRESENTAÇÃO. – A despeito do sexo genético que herdam, os mamíferos iniciam a vida embrionária em uma rota sexualmente neutra. É a presença do cromossomo Y que promove o desenvolvimento dos testículos. Estes, por sua vez, liberam hormônios que fazem com que os tecidos do corpo sigam a rota masculina. Na ausência do cromossomo Y, os testículos não se desenvolvem e o embrião segue a rota feminina. Nas primeiras semanas, a aparência externa nada revela a respeito do sexo do embrião. Os traços que denunciam se o embrião é macho ou fêmea só se tornam evidentes a partir da sétima semana, lembrando que gravidez demora em média 40 semanas [1].
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Uma exclusividade óbvia do sistema genital masculino é a presença do pênis; uma exclusividade óbvia do sistema genital feminino é a presença do útero. No que segue, vamos nos debruçar um pouco sobre as particularidades de cada um dos dois sistemas [2].
1. SISTEMA GENITAL MASCULINO.
O sistema genital masculino consiste no funículo espermático e escroto, testículos e epidídimos, ductos deferentes, próstata, glândulas seminais e pênis. O pênis é atravessado pela uretra. Lembrando aqui que a uretra masculina serve como via de saída tanto da urina (micção) como do sêmen (ejaculação).
Como ocorre com outros mamíferos, o início da idade reprodutiva coincide com o momento em que as glândulas sexuais (testículos) começam a produzir gametas. Quando o menino tem entre 12 e 13 anos de idade, o corpo começa a produzir espermatozoides, um processo chamado de espermatogênese e que é desencadeado pela ação combinada de alguns hormônios. A espermatogênese abrange ao menos quatro fases ou processos, multiplicação, crescimento, maturação e espermiogênese.
Na primeira fase, as células germinativas primordiais – um tipo de célula que tem origem ainda no estágio embrionário – dão origem por mitose às espermatogônias, células que também se proliferam por mitose. Na fase de crescimento, as espermatogônias param de se dividir, crescem e se transformam em espermatócitos de primeira ordem (ou citos I), células diploides cujos 46 cromossomos estão duplicados. Em seguida, na fase de maturação, os citos I passam pela primeira divisão meiótica, dando origem aos espermatócitos de segunda ordem (citos II), células haploides com 23 cromossomos duplicados. Após dois ou três dias, os citos II passam pela segunda divisão meiótica, dando origem às espermátides, células haploides com 23 cromossomos simples. Por fim, na fase de espermiogênese, as espermátides se transformam em espermatozoides. Toda a espermatogênese ocorre nos túbulos seminíferos, dentro dos testículos; o processo tem início na puberdade e se estende até o final da vida do homem [3].
O fluído (sêmen) que sai pela uretra durante a ejaculação não contém apenas espermatozoides. Trata-se, na verdade, de um complexo de secreções, contendo (i) substâncias nutritivas – abastecem e nutrem os espermatozoides; (ii) lubrificantes – facilitam a navegação dos gametas dentro do trato reprodutivo feminino; e (iii) neutralizadores de pH – neutralizam a acidez típica da uretra.
Com um volume médio de 3-3,5 mL de sêmen, o ejaculado de um adulto humano pode conter entre 40 milhões e 1 bilhão de espermatozoides [4]. Muitos desses espermatozoides, diga-se, não são viáveis – i.e., não são capazes de fecundar o óvulo [5].
2. SISTEMA GENITAL FEMININO.
O sistema genital feminino consiste no trato genital inferior (vulva e vagina) e no trato genital superior (útero e cérvice, com as tubas uterinas e os ovários). Nas fêmeas humanas, não custa repetir, o sistema genital tem uma via própria para o exterior, de modo que pela uretra feminina passa apenas urina.
Como anotaram Hildebrand & Goslow (2006, p. 293):
“Nos mamíferos térios, o septo embrionário continua para trás até que um reto dorsal esteja completamente separado das estruturas urogenitais que, então, se abrem na frente do ânus. Nos machos, urina e esperma são liberados por uma uretra comum. Nas fêmeas da maioria dos mamíferos, os tratos urinário e genital se abrem por um seio urogenital comum. Nos primatas e em alguns roedores, no entanto, a eversão fetal da passagem comum elimina o seio urogenital pela separação da abertura, cranial, de uma uretra da abertura vaginal, caudal.”
A vagina – um canal musculoso, recoberto por uma mucosa pregueada, rica em glândulas secretoras de muco – recebe o pênis durante a cópula e serve como o canal do parto, pois está ligada ao útero, uma bolsa musculosa situada acima e mais atrás.
O início da idade reprodutiva coincide com o momento em que as glândulas sexuais (ovários) começam a liberar gametas. A liberação periódica de óvulos (ovulação) é acompanhada de um segundo ciclo, a menstruação, cujo papel, aliás, ainda é motivo de discussão (ver Apêndice 3).
Quando a menina está com uns 12 anos de idade, é retomada a maturação dos seus óvulos (oogênese), um processo que teve início lá na vida embrionária. Assim como no caso da espermatogênese, a oogênese é controlada por vias hormonais. O processo todo ocorre no ovário e pode ser dividido em três fases: multiplicação, crescimento e maturação.
Na primeira fase, as células germinativas primordiais dão origem por mitose às oogônias, células que também se dividem por mitose. Na fase de crescimento: as oogônias crescem e acumulam reservas, dando origem aos oócitos primários (citos I), células diploides com os 46 cromossomos duplicados. O desenvolvimento do oócito primário é suspenso logo no início da primeira divisão meiótica (prófase I) e assim permanece durante anos. Mais adiante, na fase de maturação, os citos I concluem a primeira divisão meiótica – cada cito I dá origem ao um oócito secundário (cito II), células haploides com 23 cromossomos duplicados, e a um glóbulo polar. O cito II inicia a segunda etapa da meiose, mas para na metáfase II, continuando a partir daí apenas se for fecundado por um espermatozoide viável.
2.1. O ato sexual.
Como o leitor talvez já saiba, os dois sistemas genitais referidos acima são complementares. Não é de estranhar. Afinal, desde que a fecundação é interna e cruzada, machos e fêmeas devem se envolver em atos sexuais (ou cópulas).
Na caracterização de Berne (1988, p. 44, 48, 55-6):
“O vigor sexual masculino tem três elementos: potência, força e impulso. A potência é mostrada pela firmeza de sua ereção, a força pelo ardor de sua penetração, e o impulso pela velocidade inicial de sua ejaculação. […]
“O macho e a fêmea se complementam, e o vigor dela tem três elemen-tos correspondentes: profusão, força e garra. A profusão é representada pela lubrificação, a força se manifesta na contrapenetração e a garra aparece nas contrações musculares. […]
“Recapitulemos os acontecimentos biológicos. A ereção máxima e a lubrificação máxima asseguram a penetração máxima, ajudada pelo empuxo e pela contrapenetração. No momento crítico, o impulso máximo é reforçado pelo aperto máximo. Tudo isso faz com que a quantidade máxima de sêmen percorra o maior trajeto possível, e esta é a melhor situação para assegurar a fecundação. Como já foi notado, o contraste seria uma pequena quantidade de sêmen escorrendo para fora de uma vagina seca, o que daria pouca chance ao óvulo de ser fertilizado […]. […]
“Algo para ser lembrado, todavia, é que mesmo sem a ereção, sem lubrificação, e sem penetração, a probabilidade de fecundação é maior do que zero. É possível a qualquer ejaculação na região dos órgãos sexuais femininos produzir, mais ou menos raramente, um rebento perfeitamente saudável, ou até gêmeos. (É possível ter gêmeos, como aprendeu o bem-intencionado clérigo, para sua grande surpresa, mesmo que só se tenha sido desobediente uma única vez.)”
Além de noviços e clérigos desobedientes, a gravidez indesejada é um fantasma que assombra muitos jovens. A principal dúvida em geral é a seguinte: ‘É possível evitar a gravidez sem ter de abrir mão de uma vida sexual ativa?’. É uma pergunta perfeitamente válida e compreensível. A resposta, como muitos de nós já sabemos, é um sonoro sim – ‘Sim, é possível’.
3. CODA.
Ocorre que não há método anticoncepcional inteiramente seguro e confiável, com exceção, talvez, da abstinência. Em outras palavras, para reduzir a zero as chances de uma fecundação, só há um jeito: não transar. Como esse tipo de recomendação não costuma se sustentar por muito tempo, sobretudo entre homens e mulheres em idade reprodutiva (digamos, entre 20 e 40 anos), há uma forte e compreensível demanda por métodos anticoncepcionais que possam ser usados por quem ainda está em idade fértil.
Entre os vários métodos disponíveis (físicos, químicos etc.), o uso da camisinha masculina talvez seja o mais simples e recomendável de todos. Em primeiro lugar, por ser bastante eficiente como anticoncepcional. (Lembrando apenas que é necessário vestir o pênis corretamente; caso contrário, a camisinha poderá se romper durante a cópula.) Em segundo lugar, por ser uma barreira tremendamente efetiva contra a disseminação de infecções sexualmente transmissíveis (e.g., uretrite, gonorreia, sífilis, verrugas genitais e herpes genital) [6]. E é aqui que deveria então entrar a voz do seu anjo da guarda: “Casais recém-formados jamais deveriam transar – em qualquer de suas modalidades – sem que o pênis do parceiro esteja devidamente vestido com uma santa camisinha.”
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NOTAS.
[*] Artigo extraído e adaptado do livro Por que envelhecemos? – Alguns tópicos de biologia que o seu médico deveria ter estudado (no prelo). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, pacotes com os quatro livros do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote ou algum volume específico, ou para mais informações, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui. [1] Para detalhes, ver Standring (2010). [2] O significado dos termos sistema e aparelho não é uma unanimidade. Na opinião de muitos autores, o termo sistema deve ser usado em alusão a um coletivo de órgãos, de mesma origem e estrutura, cujas funções se integram para realizar funções ainda mais abrangentes e complexas. O corpo humano, por exemplo, teria ao menos 11 sistemas de órgãos (Dangelo & Fattini 2007): sistema esquelético, s. articular, s. muscular, s. circulatório, s. linfático, s. respiratório, s. digestório, s. urinário, s. genital, s. nervoso e s. tegumentar; além das glândulas endócrinas e dos órgãos dos sentidos (outrora sistema endócrino e s. sensorial, respectivamente). Alguns desses sistemas trabalham de modo intimamente integrado, tanto em termos físicos como funcionais. Seria o caso do aparelho locomotor (reunindo os sistemas esquelético, articular e muscular) e do aparelho urogenital (reunindo os sistemas urinário e genital). Para detalhes, ver, e.g., Dangelo & Fattini (2007), Hickman et al. (2004), Hildebrand & Goslow (2006) e Standring (2010). [3] A ejaculação costuma ocorrer com o pênis ereto e na forma de uma sucessão de jatos fortes e rápidos. Embora a ereção involuntária do pênis se manifeste desde os primeiros dias de vida do menino, a ejaculação só ocorre após os 12-13 anos, quando ele passa a produzir espermatozoides. A primeira ejaculação costuma ocorrer no início da adolescência, na forma de uma polução noturna. Eis a descrição de Baker (1997, p. 126-7): “Para um em cada cinco homens, o primeiro orgasmo ocorre espontaneamente. Na maioria das vezes, essa primeira ocorrência é uma polução noturna, mas para alguns pobres meninos a ejaculação acontece em lugar público. Geralmente, isso se deve a um estímulo subliminar (como ver um filme, subir numa árvore) ou a um momento de profundo estresse (ler na frente da turma). Porém, depois de umas poucas vezes, quase todas as ejaculações espontâneas acontecem em particular, à noite, quando estão dormindo – na forma de polução noturna. Em algum momento da vida, 80% dos homens passam por esse evento noturno. […] Uma polução noturna pode ocorrer em qualquer momento da vida, mas é mais comum [da] adolescência aos vinte e poucos anos, geralmente após longos períodos de abstinência de relações sexuais ou de masturbação. Mas é somente na adolescência que ela ocorre com freqüência suficiente para ser tomada como uma substituta direta de outras formas de ejaculação. […] Mais tarde, acontecem muito raramente […]. Dos vinte e cinco anos, mais ou menos, para a frente, mesmo que um homem deixe de ejacular através da masturbação ou de relações sexuais por vários dias e até semanas, pode ser que não ocorram poluções noturnas. Ele vai continuar tendo ereções noturnas durante o sono REM (do tipo mais profundo) e nos sonhos, mas o corpo parece inibir a ejaculação. Os seres humanos não são, de maneira alguma, as únicas espécies que ejaculam espontaneamente. Ratos, gatos e provavelmente a maioria dos mamíferos volta e meia irão ejacular durante o sono, especialmente na época da puberdade.” [4] Para detalhes, ver Barlow (2016). [5] Para detalhes, ver Higginson & Pitnick (2011); em port., Baker (2009). [6] Para exemplos adicionais e detalhes, ver Tortora et al. (2005).*
REFERÊNCIAS CITADAS.
+ Baker, RR. 1997 [1996]. Guerra de esperma. RJ, Record.
+ Barlow, PW. 2016. Why so many sperm cells? Not only a possible means of mitigating the hazards inherent to human reproduction but also an indicator of an exaptation. Communicative & Integrative Biology 9 (4): e1204499.
+ Berne, E. 1988 [1970]. Sexo e amor, 2ª ed. RJ, J Olympio.
+ Dangelo, JG & Fattini, CA. 2007. Anatomia humana: sistêmica e segmentar, 3ª ed. SP, Atheneu.
+ Hickman, CP, Jr & mais 2. 2004. Princípios integrados de zoologia, 11ª ed. RJ, G Koogan.
+ Higginson, DM & Pitnick, S. 2011. Evolution of intra-ejaculate sperm interactions: do sperm cooperate? Biological Reviews 86: 249-70.
+ Hildebrand, M & Goslow, G. 2006 [2004]. Análise da estrutura de vertebrados, 2ª ed. SP, Atheneu.
+ Standring, S, ed. 2010 [2008]. Gray’s, anatomia, 6ª ed. RJ, Elsevier.
+ Tortora, GJ & mais 2. 2005 [2004]. Microbiologia, 8ª ed. P Alegre, Artmed.
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